segunda-feira, 15 de abril de 2024

CLAUDIO WILLER | Deixe um comentário – Parte I (2011-2012)

 

Em 2011 Claudio Willer (1940-2022) deu início à circulação diária de um blog, repleto de comentários valiosos sobre assuntos variados, firmados pela tinta preciosa de sua crítica. Agulha Revista de Cultura prestará uma homenagem ao poeta – ele próprio, entre 2000 e 2009, foi coeditor da revista – com uma seleção igualmente variada de seus textos, lembrando que uma boa parte do blog estava dedicada ao anúncio de acontecimentos culturais, incluindo as palestras e cursos ministrados pelo próprio Claudio Willer. Neste capítulo inicial cuidamos de selecionar postagens sobre situações características da cultura de massas no Brasil.

 

1. Setembro de 2011: Da flipização à bienalização

 

O poeta e dirigente cultural Frederico Barbosa postou no Facebook uma coletânea de tópicos sobre a recente Bienal do Livro do Rio de Janeiro, extraídos da página de internet daquele evento. Ilustram o manifesto a que deu o título de “M.E.R.D.A. (Mercado Editorial Reprodutor de Asneiras)”. Fiquei na dúvida sobre comentá-lo ou apenas endossá-lo na minha página no Face. Mas a coletânea que Fred selecionou é irresistível. Merece difusão ampla. Um título ou chamada como “Autor nerd vira best-seller após ser hit na web” deveria figurar em todos os manuais de redação.

Vejam o florilégio:

◦ Autor de best-seller limpou privadas antes de ser escritor

◦ William P. Young já vendeu mais de 12 milhões de cópias de ‘A cabana’

◦ ‘Vampiros não existem’, diz a escritora Anne Rice

◦ Veja diferenças entre vampiros de Rice e Meyer

◦ Bienal tem público recorde no feriado

◦ Autor nerd vira best-seller após ser hit na web

◦ Eduardo Spohr conta como vendeu 180 mil.

◦ Nadamos na incerteza, diz dra Lisa Sanders

◦ Adolescentes fazem fila para ver Alyson Noël

◦ Em entrevista ao G1, escritora fala de série teen

◦ Novo dicionário escolar reconhece expressões ‘periguete’ e ‘tuitar’

◦ Em novo livro, autor derruba mitos históricos

◦ Investimento no setor de moda aumenta 95%

◦ ‘Vender um 1 milhão de livros é razoável’, diz autor de ‘1808’

◦ Usei o Facebook para conseguir lançar meu livro

◦ ‘Uma professora muito maluquinha’

◦ ‘Não tinha hábito de ler na infância’, diz a atriz Paola Oliveira

◦ Ziraldo fala sobre confusão na Bienal do Rio

◦ Turma da Mônica vai virar gente grande

◦ Hilary Duff ‘Não gosto que pensem que sou perfeita’

◦ Atriz distribui autógrafos na Bienal do Livro

Deve haver pessoas recuperando-se do susto provocado pela revelação de Anne Rice, de que vampiros não existem. Mas a coroação escapou ao inventário de Fred, pois saiu hoje em O Estado de S. Paulo: “Conseguimos fazer a melhor Bienal de todos os tempos”, declarou a presidente do SNEL, Sonia Jardim. Viva…! É a flipização da literatura, do mercado editorial e do jornalismo.

Nada contra a FLIP: encontros de autores com o público podem ser produtivos, estimulando leitores. Um dos benefícios colaterais: a imprensa perceber que o encontro literário de Passo Fundo, que transcorre há décadas, existe.

Preferia, é claro, que a poesia tivesse lugar central, assim como em acontece em outros países – mas aqui interessa o que “vende” (falsa lógica do mercado: no Festival de Medellín, onde estive ano passado, o público comprava bastante livros de poesia).

O problema não reside nos eventos, nos quais editores, agentes e organizadores desempenham as funções que lhes cabem, porém no jornalismo que se ocupa deles. Reparei nisso ao participar em 2008 da Bienal do Livro de Fortaleza, coordenada por Floriano Martins. Um dos jornais locais criticou a falta de celebridades nas palestras e debates: observei que deviam prestar atenção no conteúdo da programação, e não na projeção de seus integrantes. Além disso, a celebridade tornou-se circular, tautológica: o autor não é mais reconhecido pela contribuição literária enquanto tal, mas por figurar na programação. E pelo desempenho em público. Nesta última FLIP, havia expectativa quanto à argentina Pola Oilaxarac. Ao que parece, não impressionou em sua apresentação: nunca mais se falou nela. Os maus modos de outro dos convidados, terão eles desestimulado possíveis estudiosos do Holocausto? O angolano “valter hugo mãe” foi antecedido por uma apreciação negativa por Alcir Pécora; mas sua fala na FLIP agradou, consolidando sua reputação. Como esse crítico já chegou, até mesmo, em ocasiões, a manifestar-se favoravelmente a algum autor, o que ele escreveu sobre “walter hugo” deveria ter suscitado discussão – mas não, nada, assim sancionando a inutilidade da crítica, inerme diante de um noticiário que, como se vê pela seleta de Fred Barbosa, copia o estilo e temas da revista Capricho, tal como era algumas décadas atrás. Aliás, hoje as colunas de “sociedade”, programas de TV e outros ramos do show-business têm mais substância filosófica do que o noticiário sobre literatura.

Insisto: nada contra eventos, nenhum reparo à eloquência e simpatia de escritores – nem poderia: tenho aceito convites e, aparentemente, consigo expressar-me em público. Não pode, porém, haver inversão, o personagem no lugar da obra. Se não, onde ficaria um Herberto Helder? (entre outros que não suportam a midiatização)

Mais grave é, à margem do desfile de banalidades – tomando o rumo, pela amostra selecionada por Fred, de uma apoteose da subliteratura nessa última Bienal do Livro (Eduardo Spohr…? Lisa Sanders…? Paola Oliveira …? Hilary quem…?!? o que…??!?) – haver tanta literatura de qualidade a ser publicada sem registros condizentes. Ainda voltarei a escrever a respeito; e também sobre a sinergia desse tipo de recepção da literatura e as recentes informações sobre resultados do ENEM, sobre continuarmos a girar em falso na educação.

Em tempo, em um comentário postado mais tarde, para deixar bem claro: se o mercado está “bombando” (dois chavões prediletos de funcionários de livrarias: de que o mercado está “bombando” e de que algum livro vende “como água”), então deviam aproveitar essa melhora de poder aquisitivo para promover alguma contribuição cultural. E aumentar as tiragens para, com a maior escala, baixar preço dos livros, demasiado caro aqui, dificultando o acesso de boa parte do público à leitura. Isso, enquanto o livro eletrônico não chega, modificando radicalmente o perfil desse mercado – talvez eventos como esta Bienal triunfalista sejam o Baile da Ilha Fiscal do mercado editorial tal como o conhecemos.


 

2. Outubro de 2011, Se Allen Ginsberg estivesse vivo, estaria marchando em Wall Street

 Ginsberg morreu em 1997, aos 71 anos. Não fossem a cirrose e o consequente câncer que o matou, teria, hoje, 85 anos – outros beats, como Ferlinghetti, McClure e Snyder, estão aí, nessa faixa etária. Estaria no front, participando dos debates políticos deste milênio. Repetiria o que já havia dito. A seguir, trecho que recortei do final do ensaio ainda inédito ‘Geração Beat e místicas da transgressão’, um dos textos do meu pós-doc:

A exaltação mística e o ímpeto messiânico de Ginsberg coexistiram com um pensamento político articulado e atento aos detalhes. A passagem de algumas décadas confere valor adicional a suas declarações e manifestações. Isso, pelas tomadas de posição que o projetaram como liderança na mobilização contra o militarismo norte-americano e a intervenção no Vietnã, e por críticas como aquela ao regime cubano, então precursoras e atualmente óbvias, em tópicos como a perseguição de homossexuais e repressão à santeria. E por precisas análises pontuais. Por exemplo, em sua palestra sobre Ezra Pound, “Poetic Breath, and Pound’s Usura”, de 1971, publicada em Allen Verbatim. Após discorrer sobre prosódia, ritmo e respiração em poemas de Charles Olson e William Carlos Williams, detém-se nos famosos versos sobre a usura do Canto XLV dos Cantos de Pound. Mostrando a musicalidade de um verso como “Azure hath a canker by usura”; comenta o modo como o próprio Pound lia esses versos; observa a escolha de “with usura the line grows thick” em vez de “with usura the line gets thick”, argumentando que em Pound o som tinha sentido e cada vogal tem substancialidade. Finalmente, levando em conta esses valores sonoros, caracteriza o Canto XLV como um “grande exorcismo da usura” e contextualiza, denunciando a privatização e controle do dinheiro por bancos, que por sua vez se tornam credores dos governos:

 

Assim, o que Pound está observando é que todo o sistema monetário, o sistema bancário, é uma alucinação, e ele está explicando a estrutura dessa alucinação e retroagindo historicamente, porque a estrutura muda em cada era da reforma bancária. […] A questão é que a franquia é comprada por um grupo de monopolistas privados; daí em diante eles possuem o negócio bancário, nesse sentido, pois pagaram um milhão ao governo e tem um milhão em seus porões, e subitamente, no papel, possuem dezoito milhões a mais do que o capital inicial.

 

Nem é preciso insistir na pertinência dessa análise; o quanto se aplica à crise econômica em curso, decorrente da condução de políticas econômicas por bancos e da especulação desenfreada. Poderia constar em artigos escritos de 2008 até hoje.

Outro exemplo da sintonia fina em análises políticas está em Indian Journals, o diário de sua estada na Índia por mais de um ano, de março de 1962 a maio de 1963. No meio de poemas, reflexões sobre criação poética, registros de leituras, relatos de alucinações e efeitos de drogas, descrições do que via no período em que, junto com Peter Orlowski, levou vida de saddhu, monge mendicante, acrescentou um recorte de jornal. É um artigo intitulado “A classe privilegiada”, denunciando que “1% dos lares do país possuem nada menos que 75% dos bens privados”. Assim argumentou que a estatização, a economia fechada e o monopólio bancário geram corrupção e acentuam a concentração de renda – também algo evidente hoje, à luz das melhoras do quadro econômico daquele país.

Ainda sobre os bons insights políticos de Ginsberg, seu exame, também precursor, do tema das drogas, tal como exposto na série de palestras-diálogos de Allen Verbatim intitulada “Political Opium” (ópio político). Nelas, ao caracterizar o tráfico de drogas como flagelo urbano, argumentou tratar-se de resultado da proibição. Focalizou especialmente o Harrison Act de 1920, que baniu o ópio e derivados, e criminalizou seus usuários – invariavelmente, conduzindo à colaboração entre policiais e crime organizado, além de desviar recursos do que realmente interessaria, pesquisas e políticas de saúde pública em favor de viciados, obrigando-os a ter nos traficantes seus únicos interlocutores.

Apontar economias fechadas e burocratização como fonte de corrupção; proclamar que a transferência das decisões de política econômica para os bancos levaria ao desastre; insistir em que a criminalização do uso de drogas fortalece o crime organizado; tomar a defesa da diversidade sexual e cultural como crítica ao ‘socialismo real’: aí estão tópicos de uma agenda que deixou de ser exclusiva de seguidores ou continuadores da Geração Beat. No entanto, Ginsberg formulou esse tipo de crítica em 1962 (relativamente às economias fechadas), 1965 (sobre Cuba), 1970 (contra a criminalização de drogados) e 1971 (sobre os bancos e a especulação financeira). Pode-se, por isso, caracterizá-lo como um lúcido analista político.

Em outras intervenções, Ginsberg foi igualmente precursor, nas manifestações pacifistas, na defesa incondicional da liberdade de expressão, do multiculturalismo, da tolerância e respeito à diferença.

Tudo isso, hoje em dia, é agenda de setores amplos da sociedade e de um diversificado elenco de personalidades públicas; mas eram temas minoritários, alguns vistos como excêntricos, quando apresentados por Ginsberg; e também, em inúmeras ocasiões, por McClure, Ferlinghetti, Snyder, Di Prima, Waldman e outros beats.

O registro dessas manifestações corrige um estereótipo relativo ao místico, como alguém isolado e alheio ao mundo. Passar metade do ano recluso, em meditação (na época em que o traduzi), e a outra metade dedicando-se a uma intensa atuação pública chega a ser uma metáfora da harmonia desses dois campos, misticismo e política.


 

3. Dezembro de 2011, Belo Monte, código florestal, desmatamento

 

 

Há essa movimentação na blogosfera, que repercute no Facebook, com manifestações contrárias à usina hidroelétrica de Belo Monte no Rio Xingu, e outras a favor, mostrando erros nas críticas.

Amostras em http://www.youtube.com/watch?v=clorZYNka4s&feature=youtu.be . Debate encarniçado. A revista Veja desta semana as cotejou, concluindo pela necessidade da construção da usina. Aparentemente, encerra o assunto. Mas não para mim. Antes de sair essa matéria, já pretendia expor as razões que me levaram a subscrever a “cause”, o abaixo-assinado pedindo sua interrupção.

Não foram examinadas as consequências da instalação de várias dezenas de milhares de pessoas na região de Altamira, por causa das obras da usina. A primeira vez que fui a Belém do Pará, do avião via-se, desde o então Norte de Goiás, aquela impressionante extensão de mata. Hoje, ao longo do baixo Tocantins, não há mais nada. Tudo devastado. Assim poderá ficar o baixo Xingu.

É apresentada uma estatística falaciosa: sem a energia gerada pela usina, o Brasil não poderá crescer 5% ao ano na próxima década. Em primeiro lugar, como Belo Monte não estará pronta no ano que vem, ou num futuro muito próximo, o Brasil crescerá, sim, 5% ao ano sem a usina, por um bom tempo.

Além disso, o desenvolvimento econômico não implica demanda de energia na mesma proporção. 5% de crescimento não correspondem necessariamente a 5% a mais de consumo. Dou um exemplo: minha geladeira resfria mais e consome menos eletricidade, comparada àquela que eu tinha há um quarto de século. Igualmente, os demais eletrodomésticos e eletroeletrônicos, e outros equipamentos, inclusive industriais. Desenvolvimento tecnológico traz melhor aproveitamento de energia. Principalmente, se passar a valer como meta: por exemplo, nos programas de iluminação pública, sempre prometidos e nunca implantados, com lâmpadas mais fortes que consomem menos. E na construção civil (prédios ecológicos…? na Dinamarca tem – aqui, insistimos nos monstros envidraçados que demandam toda essa climatização).

A propósito de desperdício e das informações deixadas de lado nesta etapa do debate: boas fontes alertam que no Brasil há uma perda de 40% entre a fonte geradora de eletricidade e o consumo. É possível reduzir essa proporção? Claro que sim. Mas governantes preferem as grandes obras, os altos negócios com empreiteiras e fornecedores, em detrimento de projetos menos espetaculares, menos permeáveis às negociatas.

E as fontes alternativas de energia? A melhor parece ser o vento, a energia eólica (embora o aproveitamento das marés venha mostrando resultados). Custa o dobro, informa a revista Veja. Por quê? Por uma questão de escala. É pouco utilizada; por isso é cara. Ora, se investissem para cobrir uma demanda como aquela a ser atendida por Belo Monte, então a escala cresceria e o custo baixaria… Energia eólica é instável, pois não venta sempre igual no mesmo lugar? Instalem em bastante lugares diferentes – teria mais lógica do que puxar fios de Altamira até aqui.

Ainda sobre o custo de outras fontes, comparado à geração hidrelétrica: é que, nessa modalidade de projeto, ninguém lança o custo ambiental. Isso, além, evidentemente, do preço final da obra acabar mostrando-se maior do que aquele inicialmente orçado. Há, ainda, o fator tempo: suponhamos que Belo Monte se torne operacional daqui a 5 anos: instalações do tipo alternativo já poderiam, enquanto isso, cobrir a eventual demanda.

Hidrelétrica por hidrelétrica, as que nunca deveriam ter sido implantadas são Balbina e Tucuruí. Há piores: as pequenas usinas construídas em Mato Grosso do Sul, ao arrepio da fiscalização, que atendem demandas irrisórias, mas estão alterando o regime dos rios que banham o Pantanal, afetando a vida aquática e o ecossistema.

Contudo, Belo Monte ser menos prejudicial não justifica a persistência no erro. Aliás, alguém, nesse debate, fala em “desenvolvimento da Amazônia”, e em usinas para produção de chapas de alumínio. Mas essa não havia sido a justificativa para a construção de Tucuruí…?

Tudo isso me soa como se viesse de muito longe – de 1950, por aí. É hora de mudar paradigmas.



Sobre o código florestal: dos 40% do território brasileiro que não são reserva ou área preservada, algo entre 20 e 30% serve ao plantio. E 40% são pastagens de baixa produtividade, com uma cabeça de gado por hectare. É mentira que preservação provocará falta de comida. Outra mentira: que nossa preservação paga a conta da devastação européia e norte-americana. Os países desenvolvidos vêm, de um século para cá, repondo biomas. Devastação, ocupação predatória, é aqui mesmo – e em proporções mais sérias do que na maioria dos demais países latino-americanos. A propósito, a estatística de 60% de mata preservada é enganadora. Engloba os 9% que sobraram de Mata Atlântica, junto com os 80% de Amazônia que teriam, obrigatoriamente, que ser preservados.

Viagem pelo Brasil. De avião ou de automóvel. É só olhar pela janela. Nas regiões produtoras, quanta lavoura imensa sem sombra dos 20% de reserva obrigatória. Nas pastagens, quantos trechos de rios sem um centímetro de mata ciliar. No Vale do Paraíba, as perpétuas encostas escalavradas de morros – claro que, a cada chuva, com novas erosões.

Desmatadores às vezes são identificados e multados. Não há, porém, instrumentos para a cobrança efetiva das multas. Nada acontece– exceto o clamor dessa gente por anistia. Também os extratores clandestinos de madeira e os contrabandistas de animais silvestres são pegos, vez por outra – e logo em seguida soltos, para continuarem sua atividade. Somos o país dos grileiros. Tanto faz essa ou aquela medida de área de preservação legal, de proteção de margens de rios etc., sem os meios para implementá-las. Tudo continuará como está. Catástrofes climáticas agradecerão – mais ainda, os que se beneficiam com elas.


 

4. Dezembro de 2011, Ensino superior privado: sempre é possível piorar

Deu na Folha de hoje, 21/12, e está no UOL: “Rede de ensino Anhanguera demite 680 professores em SP”.

Transcrevo trechos: “A Anhanguera Educacional, maior rede de ensino superior do país, demitiu neste final de ano cerca de 680 professores de três instituições adquiridas recentemente em São Paulo e na região do ABC. Somente na Uniban da capital, foram cortados por volta de 400 docentes, o que representa metade do quadro.” E mais: “Nas escolas circula a informação que a Anhanguera contratará docentes para suprir parcialmente o corte, mas com titulação menor e com hora-aula mais baixa.”

O escândalo: “Segundo professores, um mestre da Uniban ganha R$ 38 por hora. A Anhanguera pagará R$ 26 aos novatos. […] Outra mudança para 2012 é que os mestres e doutores que permanecerem terão de reduzir suas cargas de trabalho, diminuindo os salários. Legalmente, as universidades precisam ter ao menos 1/3 de professores com mestrado ou doutorado. Mas há o entendimento de que a porcentagem diz respeito ao número de docentes, não à quantidade de aulas dadas. […] Mesmo antes dos cortes, a Uniban já enfrentava problemas de qualidade de ensino. Na última avaliação federal, a escola teve nota 2 (numa escala de 1 a 5) e foi considerada reprovada pelo governo.”

Há, portanto, dois mundos paralelos: aquele das universidades públicas, nas quais é exigido o título de doutor para prestar concurso; e o de algumas corporações privadas – há outras de qualidade, porém minoritárias – nas quais a titulação é caminho para a porta da rua. E com esses salários. R$ 26,00 a hora-aula – menos do que é oferecido por boas escolas particulares no fundamental.

Universidades têm como função (e obrigação) a transmissão e a produção do conhecimento; ensino e pesquisa. Imaginem a produtividade dessa rede Anhanguera. A qualidade dos acervos de suas bibliotecas; seus laboratórios. Sua contribuição à proliferação de incompetentes e analfabetos funcionais.

Abriram a porteira para o ensino superior privado por volta de 1970, durante o regime militar. Implantaram um modelo, massificado, regido pelo pior mercantilismo e pelo mais baixo populismo, que atravessou sucessivos governos e prospera incólume, diante de autoridades inermes, qualquer que seja sua filiação política ou matriz ideológica.

Pela gravidade, penso que o debate a respeito, por ora restrito à esfera sindical, é tímido. O tema merece e requer mobilização da sociedade. Pressão sobre esses aproveitadores da leniência de autoridades educacionais.


5. Janeiro de 2012, A ocupação

 

Havia postado no Facebook, e houve um grande número de compartilhamentos e comentários. Então vai para este blog, com atualizações. É sobre o episódio do Pinheirinho, da desocupação – domingo, dia 22 de janeiro – de um terreno, parte da massa falida de uma corporação, que havia sido invadido há 8 anos e tinha cerca de 6.000 moradores, em São José dos Campos, São Paulo.
Achei repugnante. O que houve pareceu Sul do Pará, Acre, regiões que sabemos conflagradas pela ação de grileiros e expulsão de posseiros pela violência. Mas aqui, em São José dos Campos, a menos de 100 km de São Paulo? É óbvio que lugar da ocupação devia ter sido decretado de utilidade pública. Afinal, o que temos visto – aqui, não em Boca do Acre ou Marabá – é os problemas decorrentes de ocupações serem resolvidos através de negociações, e não de pauladas
Por mais que eu evite dualismos simplistas e identificação de um lado ‘bom ‘ e outro ‘mau’, sou obrigado a reconhecer: determinadas autoridades se esforçam para que lhes sejam colados os rótulos de autoritárias, omissas, mancomunadas com os piores interesses (óbvio que a pressa em desocupar foi por haver empreendimento imobiliário interessado no terreno…). E a população de S. José dos Campos me pareceu estar, majoritariamente, em um torpor doentio. Contribuição das redes sociais ampliou escândalo – isso é bom.

Para expor todas as razões do meu espanto e repúdio – éticas, é claro, e políticas, sociológicas, adminstrativas (bando de incompetentes), até mesmo estéticas: tudo isso é retrô, puro estilo de 1977 no Brasil – ou então, da invasão de Kent State em maio de 1970. Provoca uma desanimadorta sensação de volta ao passado, ou de que o futuro pode ser ainda pior. Algumas autoridades brasileiras estão sofrendo um tipo de mutação que se vê em filmes de horror, em geral, e de David Croneberg em especial: vão se assemelhando cada vez mais à horrenda caratonha do falecido Coronel Erasmo Dias. Outras praticam a complacência – treinam fazer caras de paisagem.

O tratamento tão diferenciado para ricos e pobres no Brasil – por exemplo, quando imobiliárias atropelam zoneamento, ou sonegam taxas, e fica tudo por isso mesmo, os moradores dos prédios irregulares continuam confortavelmente onde estão, os empresários fraudadores vão tocando suas vidas e seus negócios – ou então, as notícias que vemos, volta e meia, de alguém esquecido na cadeia por algo que não cometeu, ou por algum delito insignificante, enquanto criminosos em melhor situação vão protelando seus julgamentos. Não apenas nossa moldura jurídica funciona como se fosse aquela da República Velha (impressionante, o magistrado que forçou a desocupação em vez de dar algum tempo para a volta ao bom senso), porém municipalidades, saindo-se das grandes metrópoles, viraram sedes do marasmo, cenários do retorno do coronelismo. Há um problema cultural – algo que me parece tipicamente (e sinistramente) brasileiro – afinal, em outros países existem classes socais, burguesia, propriedade privada etc., e nem por isso eclosões de barbárie chegam a tal nível.

Em tempo (postado no dia seguinte, 24/01): Foi noticiado, ontem à noite, que governo do estado dará bolsa-aluguel aos desalojados do Pinheirinho, e que governo federal os incluirá no “Minha casa minha vida”. Bando de incompetentes. Tivessem feito isso antes, negociado saída de modo decente, evitariam violência, sofrimento e confusão. Essa categoria, “modo decente”, não é alcançada pelo atual prefeito de SJosé, me parece, nem pelo presidente do TJ – os que forçaram a mão e determinaram desocupação a ferro e fogo.



6. Janeiro de 2012, Homenagens a Robert Desnos, 2

 

Já havia escrito sobre o Robert Desnos autor de anagramas. A seguir, um trecho do meu “Surrealismo, poesia e poética”, publicado em O surrealismo (Perspectiva, 2008, org. J. Guinsburg e Sheila Leirner). Completo com informações e interpretações transcritas e traduzidas por mim de um livro extraordinário, Le surréalisme et le rêve de Sarane Alexandrian (Gallimard). Termino com um comentário.

◦ De “Surrealismo, poesia e poética”:


Liberar o “discurso do pensamento”, o fluxo da linguagem, foi levado a extremos por Robert Desnos em poemas feitos de significantes aproximados pelo valor sonoro, fonético ou prosódico, compondo séries de homofonias, aliterações, parônimos: Les chats hauts sur les châteaux/ d’espoir/ Croquent des poires d’angoisse/ la nuit/ l’ennui/ l’âme nuit. (há correspondências sonoras intraduzíveis; ao pé da letra: Os altos gatos sobre os castelos/ de esperança/ Abocanham as peras da angústia/ a noite/ o tédio/ a alma amola.)


Exemplos como esse, ou então L’appeau/ La peau, peau-pierre (onde a pálpebra é pele de pedra por homofonia), e L’or est hors de nos mains/ qui demain/ palpéront les cinq seins/ d’une femme plus belle que/ la qui bêle (O ouro está fora de nossas mãos/ que amanhã/ apalparão os cinco seios/ de uma mulher mais bela que a que bale), compõem o capítulo da analogia. São cabala fonética (como os designava Breton), que exibe e disfarça palavras através de outras cujo som é assemelhado, ocultando sentidos e gerando-os. Mas, ao contrário da criptografia, que é exata, tais enunciados produzem polissemia, multiplicando sentidos. Preenchem boa parte da poesia de Desnos, reunida na coletânea Corps et biens. Incluem a série Rrose Sélavy – que havia sido iniciada por Marcel Duchamp –, com anagramas como Le temps est un aigle agile dans un temple (O tempo é uma águia ágil em um templo). Através deles, Desnos indica o criador dos ready-made: Rrose Sélavy connaît bien le marchand du sel, onde marchand du sel é Marcel Duchamp com sílabas trocadas (o próprio Duchamp adotava esse pseudônimo).

Michel Leiris, por sua vez, continuaria esse procedimento, chegando, em Glossaire j’y serre mes gloses, publicado inicialmente em La révolution surréaliste (republicado em Mots sans mémoire, Gallimard, Paris, 1969), dedicado a Desnos, a criar um dicionário de parônimos, homofonias e aliterações com cerca de oitocentas entradas, desde ABÎME – vie secrète des amibes (abismo, vida secreta das amebas) e ABRUPT – âpre et brut (abrupto, áspero e bruto), passando por ÉROTIQUE, erratique? e ESCALIER – l’obstacle est son esclave lié, até ZENITH – qu’il m’attise! Et je n’hésite… e ZÉRO – oh! l’érosion de l’essor rosé… Exemplos equivalentes de anarquia verbal e desorganização dos fonemas se encontram em Roger Vitrac.

◦ De Le surréalisme et le rêve de Alexandrian – que estranho, um livro tão bom estar fora de circulação na França – o exemplar que tenho foi achado, a meu pedido, por Jean Sarzana em um ‘bouquiniste’, banca de alfarrábio, à beira do Sena, mas depois de pesquisar bastante – e Alexandrian é um autor bem conhecido; dele temos, no Brasil, a História da literatura erótica e A magia sexual; encontra-se a edição portuguesa de História da filosofia oculta. O trecho relata sessões de “sono hipnótico” a que se entregaram os surrealistas no final de 1922 (em uma próxima postagem, trarei mais a respeito):

Na penumbra, esperam com ansiedade o momento em que um golpe surdo anuncia que Desnos caiu, adormecido, sobre a mesa; levantam-no, rodeiam o poeta de olhos fechados, cujo corpo é sacudido por tremores nervosos. Não se cansam de repetir-lhe: quem é Max Ernst? O que você sabe de Paul Éluard? O que você pensa de Simone Breton? O que você vê para Gala Éluard? O que fará Breton daqui a dois anos? Com uma voz parecendo vir de muito longe sob a consciência, ele profetisa como uma Pítia. Escreve com frenesi, quebrando lápis sobre lápis em sua fuga, riscando com suas frases desmedidas o papel e a mesa. Sempre o inesperado jorrava de sua boca e de sua mão. Querem que escreva um poema? Improvisa quatro estrofes de uma enfiada só, que interrompem prematuramente, achando que ele havia terminado, e das quais ele dá os dois últimos versos dez minutos após ter respondido a uma série de questões. Querem que desenhe? Ele, que ordinariamente se queixa de não saber desenhar, realiza uma quantidade de desenhos simbólicos, de execução bem fraca, porém de concepção notável. Picabia, para testar o adormecido, lhe pede que faça um jogo de palavras à maneira de Marcel Duchamp, coisa que o grupo acha impossível, tendo os trocadilhos dele como inimitáveis; mas Desnos, a cabeça sobre o braço, replica automaticamente: “Dans um temple em stuc de pommes le pasteur distillait le suc des psaumes.” (minha tradução aproximativa: “Em um templo com estuque de maçãs o pastor destilava o suco dos salmos” – evidentemente, valem as correspondências sonoras em francês).

◦ Ainda de Alexandrian, trechos de sua interpretação da poesia de Desnos:

Às perversões sexuais, amavelmente descritas em suas prosas como signos da mais alta liberdade amorosa, correspondem em seus poemas as perversões verbais, signos equivalentes da mais elevada liberdade de expressão. Para Breton, as palavras fazem amor; para Desnos, praticam a sodomia, o vampirismo. É notável constatar que o recurso de estilo ao qual se afeiçoa é a inversão (semântica e gramatical), como se a poesia fosse um ato contra-natura. A violação da linguagem é manifesta em L’Aumonyme (intraduzível: é fusão de anônimo, anonyme, e esmola, aumône), Langage cuit (linguagem cozida), C’est les bottes de sept lieues cette phrase “Je me vois” (É as botas de sete léguas esta frase “Eu me vejo”); há violação porque o sentido é imposto arbitrariamente ao poema, a grandes golpes de homofonia e de paronomásias. […] O poema dá a impressão de um baile equívoco onde as mulheres estão disfarçadas de homens e os homens de mulheres. A palavra é vestida de um fonema, ela pode travestir-se mudar de sentido como se muda de sexo, por permutação das letras ou inversão da figura. […]

◦ Minhas observações, para terminar:

Já havia observado que Rrose Sélavy, Glossaire, etc, poderiam passar ao leitor desavisado por poesia concreta em seus melhores momentos, não houvessem sido criados décadas antes. E com uma diferença fundamental com relação a formalistas e poetas inteligentes em geral: sua vitalidade, seu caráter subversivo (bem observado por Alexandrian), o ímpeto com que procuram destruir a relação de significação, romper a barreira entre o simbólico e o real, chegar à síntese de poesia e vida: propósitos diametralmente opostos aos cartesianismos poéticos em voga.

Esta postagem ficou longa … Haverá mais sobre Desnos e temas afins; principalmente, a busca de identidade da poesia e vida.

7. Janeiro de 2012, Homenagens a Robert Desnos, 4

 

A seguir, transcrição de dois textos sobre Desnos e o sono hipnótico. O primeiro, de meu ensaio “Magia, poesia e realidade: o acaso objetivo em André Breton”, publicado na coletânea O Surrealismo da Perspectiva. O segundo, de Le surréalisme et le rêve de Alexandrian, do qual eu já havia transcrito, sobre sono hipnótico e Desnos, o trecho sobre a gênese da “cabala fonética”.

Antes, algumas observações sobre o valor poético dessas incursões por territórios desconhecidos. Chocam-se com um arraigado cartesianismo evidente, entre outros lugares, no que Haroldo de Campos havia escrito, nos Manifestos da poesia concreta, sobre o “irracionalismo surrealista, automatismo psíquico, caos poético individualista e indisciplinado”, gestado “nos limbos amorfos do inconsciente”, produzindo “essa patinação descontrolada por pistas oníricas de palavras ligadas ao subjetivismo arbitrário e inconseqüente”, pois, para ele, “O poema concreto é submetido a uma consciência rigorosamente organizadora, que o vigia em suas partes e no todo, controlando minuciosamente o campo de possibilidades aberto ao leitor”. Ferreira Gullar, contendor da poesia concreta, dizia-me a mesma coisa, por volta de 1980; não aceitava escrita automática “porque não sou eu quem está escrevendo”. Em João Cabral’ encontramos afirmações categóricas sobre o indispensável controle racional da criação poética (“A emoção não cria” etc.).

Concretistas atenuaram posições (mas, como observei recentemente a Augusto de Campos, faltou avisarem a epígonos e adeptos). Gullar também. Cabral mostrou-se, até o fim, cada vez mais dogmático e intransigente. Matrizes do que tenho chamado de “poetas inteligentes”. Não percebem que alucinações, transes, escrita automática, sonhos, inspiração e possessão são ampliações, e não reduções. Que há um ganho e não uma perda; liberação e não restrição pela expressão do “eu” profundo; pelo retorno do recalcado; em última instância (ou primeira, não sei), do desejo. O legado de surrealistas em geral e Desnos em especial é a demonstração do valor poético dessas luzes que saem da profundidade. Alexandrian chama capítulos de seu livro de “La nuit des éclairs”, a noite dos clarões ou relâmpagos, e “Le mystère dans la lumière”, o mistério na luz. Faz observações como esta: “O desejo é uma língua viva”. Diz que “o simbolismo poético e o simbolismo onírico são interdependentes”.

O trecho do meu ensaio – sobre acaso objetivo, por isso focaliza o valor profético dessas e de outras manifestações:

Na busca do além-fronteiras durante a fase heróica ou intuitiva do surrealismo, período da formação que precede o primeiro manifesto, também foram feitas experiências com o “sono hipnótico”. São comentadas em um capítulo da coletânea Les pas perdus de Breton intitulado Entrée des Médiuns (antes haviam sido publicadas na revista Littérature e também pode ser encontrada na biografia de Breton por Henry Béhar, Le grand indésirable, ou em Oeuvres de Robert Desnos, Gallimard), sobre o desencadear-se deuma conspiração de forças absurdas”. A idéia de imitar sessões espíritas, mas rejeitando a hipótese da comunicação com os mortos, foi de René Crevel. É transcrito um diálogo entre Breton e Desnos, em transe, respondendo por escrito, a 27 de setembro de 1922:

Desnos, é Breton quem está aí. Diga-lhe o que você vê.

O equador (desenha um círculo e um diâmetro horizontal).

É uma viagem que Breton deve fazer?

Sim.

Será uma viagem de negócios?

– (Faz sinal de não com a mão. Escreve:) Nazimova.

Sua mulher o acompanhará nessa viagem?

– ???

Irá ele reencontrar Nazimova?

Não (sublinhado).

Ele estará com Nazimova?

– ?

O que mais você sabe sobre Breton? Fale.

O barco e a neve – há também a bela torre de telégrafo – sobre a bela torre há um jovem (ilegível).

Béhar sugere uma interpretação: “O leitor que conhece o triste destino de Nadja é tentado a assimilar esses dois nomes russos, ainda que Nazimova seja aquele de uma atriz de cinema célebre na época” (Alla Nazimova, atriz russa admirada por Desnos e que atuava no cinema americano, protagonista de Salomé). Em Oeuvres de Desnos foram incluídos comentários sobre cinema, nos quais a atriz Nazimova é mencionada. (a observar que a sessão foi em 1922; o encontro de Breton e Nadja, em 1926) Mas há outra interpretação possível, que não consta na bibliografia examinada: Nazimova podia ser uma recepção distorcida de nazismo. Isso dá ao episódio um alcance efetivamente profético, pois não havia como antever, em l922, a ascensão do nazismo na década seguinte e as consequências de mais uma guerra mundial. Entre outras, a viagem transoceânica de Breton em maio de 1941, como refugiado, primeiro à Martinica e depois aos Estados Unidos. Detalhes do diálogo reforçam essa interpretação: seria impossível “encontrar” Nazimova, e obter resposta sobre a mulher de Breton (não estaria mais com Simone Kahn, porém separando-se de Jacqueline Lamba). Dos presentes à sessão, quem acabou como vítima do nazismo foi o próprio Desnos. Militante da resistência francesa, morreria em um campo de concentração ao final da guerra.

As experiências com o sono hipnótico foram interrompidas depois de situações constrangedoras e chocantes, como a insistência de Crevel no suicídio coletivo (viria a suicidar-se em l935). Desnos as continuou por conta própria. Não consta, nos estudos sobre o assunto, a seguinte pergunta: por quê, do material disponível sobre sono hipnótico e estados de aparente mediunidade, resultado de várias reuniões, Breton escolheu esse trecho para a publicação em Les pas perdus? Qual critério o levou à seleção do diálogo sobre Nazimova, profecia impossível de avaliar ou considerar mais que devaneio? Pode-se falar em dupla premonição. Primeiro de Desnos adormecido, antevendo tragédias que aconteceriam daí a décadas. Depois de Breton, selecionando o trecho para figurar em L’entrée des mediums.

Breton e seus companheiros não foram os únicos a iniciar experiências através de simulacros de sessões mediúnicas, interrogando as profundezas do inconsciente ou a amplidão de outros mundos. A idéia da criação poética associada a uma voz externa, dizendo algo ao poeta, é antiga (está inclusive em Platão) e muito presente no primeiro romantismo alemão, em Gérard de Nerval, na bouche d’ombre de Victor Hugo e em episódios intrigantes como a “escrita automática” de Yeats, o procedimento através do qual sua mulher, Georgina Hide-Lees, escreveu A Vision; e ainda o modo como Fernando Pessoa, em 1914, criou O Guardador de Rebanhos de uma enfiada só, como se Alberto Caeiro houvesse “baixado”.

Agora, um dos trechos de Alexandrian (são vários):

Freqüentemente Desnos evoca, dormindo, personagens da Revolução Francesa (criança, identificava-se já a Robespierre, cujo nome evocava seus dois prenomes, Robert-Pierre), mas será visto pelo trecho a seguir como seu tom difere das pseudo-mensagens espíritas atribuídas a um Convencional:

Sábado, 30 de setembro. – Espontâneo – Ah! (depois, palavra ilegível)

P. – Onde você está?

R. – Robespierre.

P. – Aqui há mais pessoas?

R. – A multidão.

Robespierre (com uma letra bem grande) Robespierre.

Aqui Desnos se põe, pela primeira vez, a falar. Voz surda, triste, ligeiramente ameaçadora. Ouve-se:

Eles se tornarão mais brancos que o estandarte horrendo da monarquia… Covardes, covardes… E esses colarinho branco que vós me reprovais como paramento inútil… vós tendes ciúme do pescoço elegante que sai dele… Vós sois forjadores escapadosde vossas forjas noturnas… noturnas… noturnas… A guilhotina… a guilhotina. Estou só. Vós sois a multidão e vós tremeis diante do meu olhar verde.

P. – Atrás de Robespierre, o que há?

R. – Uma ave.

P. – Que ave?

R. – A ave do paraíso.

P. – E atrás da multidão?

R. – (desenho representando a guilhotina. Escreve: ) o belo sangue canapé.

P. – E quando Robespierre e a multidão não estiverem mais em contato, o que acontecerá?

R. – A bela canção de amor da minha vida inominada.

P. – O que acontecerá com a multidão?

R. – Que me importa?

P. – O que acontecerá com Robespierre?

R. – O céu.

Espontâneo – Boy of my soul as a sky so white do is my boy my boy my boy where is the blue sky – the boat of my hair a beautiful steamer star boat.

[…]

(o trecho vai mais longe – e há outro, no qual novamente Nazimova é evocada – mas este post está longo demais, transcreverei em outra ocasião)

 

8. Janeiro de 2012, Homenagens a Robert Desnos, 5

 

Robert Desnos nasceu em Paris em 1900. Estreou em revistas literárias aos 17 anos. Em 1919, passou a fazer parte do grupo da revista Littérature, dirigida por Breton e Aragon. Publicou poesia, prosa e relatos de sonhos. Prolífico, em 1922 lançava a série Rrose Sélavy (já comentada nestas postagens), seguida no mesmo ano por Les nouvelles Hébrides, reproduzindo as histórias que narrava para si mesmo ao adormecer: aventuras, entremeadas de toda sorte de perversões, envolvendo seus amigos Breton, Péret (que o havia apresentado aos surrealistas), Aragon e Vitrac; passavam-se, diz Alexandrian, “em um mundo ao avesso”. De 1924 é Deuil pour deuil (luto por luto), escrita automática. Segue La liberté ou l’amour! de 1927 e a coletânea Corps et biens, de 1930.

Durante um período inicial do surrealismo, Desnos teve um papel central por seu talento e pela capacidade de sonhar e entrar em estados hipnagógicos, intermediários entre sonho e realidade. No elogio que lhe fez Breton em Nadja, declarou que, de todos os encontros previstos por ele, “não há um ao qual eu sinta ainda a coragem de faltar”.

Foi ao mesmo tempo um libertino (como se evidencia em suas narrativas) e um lírico romântico. No começo dos anos 1920, Desnos e o jornalista e roteirista Henri Jeanson partilhavam a mesma amante; dividiam-na. Em 1925, apaixonou-se pela cantora de cabaré Yvonne George, e, mesmo sem ser correspondido, a elegeu como musa e protagonista de sonhos. Ganhou dela uma garrafa com um barco dentro: sentia que esse barco vibrava toda vez que fosse lhe acontecer algo importante. Em 1930, conheceu Youki, com quem viveria até o fim – o barco vibrou quando a conheceu.

Rompeu com Breton e o grupo surrealista em 1927, junto com Artaud, Leiris e Soupault, por discordarem da adesão ao comunismo soviético. Desnos e Breton insultaram-se, respectivamente no panfleto Un cadavre e no Segundo manifesto do surrealismo. Ambos se retrataram dos insultos e reataram relações em 1936. E Breton manifestaria várias vezes o reconhecimento pela contribuição de Desnos.

A propósito, um dos vícios de determinada crítica é examinar autores que romperam com Breton em contraposição ao surrealismo, deixando de lado as relações de continuidade. Um dos exemplos (há muitos) é o livro de Silviano Santiago sobre a viagem de Artaud ao México, pretexto para um libelo contra o surrealismo. Mas, na época, Artaud e Breton se correspondiam. Artaud se apresentou como surrealista e deu a palestra “Surrealismo e revolução” no México (traduzi e a publiquei em Escritos de Antonin Artaud). Escreveu cartas a Breton da Irlanda, relatando os episódios que culminaram em seu internamento em hospícios. Quanto a Leiris, reconheceu o surrealismo como quadro de referências em A idade viril e colaborou em Minotaure, a revista dirigida por Breton.

De tudo o que Desnos fez nos anos de 1930 (muita coisa), destaco o programa de rádio que criou, interpretando sonhos. Transcrevo alguns parágrafos de Alexandrian em Le surréalisme et le rêve:

“Em 1937, Robert Desnos criou no Poste-Parisien uma emissão hebdomadária intitulada A chave dos sonhos, na qual convidava os ouvintes a lhe enviar seus sonhos, propondo-se a explicá-los e transmiti-los. O sucesso foi imediato e lhe demonstrou o interesse apaixonado que o público tinha por esse gênero de problema. A cada semana, recebia um fluxo de cartas de homens e mulheres contando-lhe o que haviam sonhado; um de seus correspondentes lhe enviou até mesmo um caderno no qual anotava noite após noite suas impressões de sono. Desnos escolhia os dois sonhos que lhe parecessem mais radiofônicos e os reconstituía com atores e um fundo sonoro; resultavam cenas bizarras, destinadas a mergulhar o espírito em uma ambientação onírica. Em seguida, dando a réplica a dois assistentes, Colette Paule e Jerôme Arnaud, Desnos se ocupava doutamente com os outros envios que lhe haviam sido feitos; classificava-os em duas grandes categorias: os sonhos portadores de presságios e os sonhos sem significação para o futuro.

“Decifrava-os referindo-se ao tratado dos sonhos de Artemidoro de Efeso, traduzido em 1921 por Henri Vidal. Adaptava esse livro às realidades modernas; ou seja, aplicava por exemplo aos automóveis o que Artemidoro dizia dos carros. Embora destacasse que Freud tinha grande consideração pelo autor grego, não os lia em um espírito freudiano. Ao contrário, autorizava-se a determinar os signos fastos e nefastos pertencentes à vida onírica. Acreditava, com uma candura autêntica, que os sonhos tinham um sentido augural […] Submetiam-lhe as mais absurdas aventuras: havia o sonho da ouvinte que tinha feito uma viagem em um camelo com bigodes, antes de encontrar-se sentada no interior de uma abóbora; aquele de um homem que se servia de um piano automóvel, permitindo-lhe ao mesmo tempo tocar música e percorrer as estradas etc. […]

Alexandrian dedica mais algumas páginas a esse programa radiofônico. Transcreve sessões. Reproduz o argumento de Desnos sobre a possibilidade de mistificação, de pessoas inventarem sonhos – tanto faz, dizia, pois “a imaginação é a mesma na vigília e durante o sono. Não se inventa seja o que for, e um sonho inventado libera os mesmos segredos, traz os mesmos presságios que um sonho autêntico”.

Em 1940, assumiu um “correio de sonhos” na revista feminina Pour elle, assinando como Hormidas Belloeil – nome, dizia, de um personagem que o visitava durante o sonho – Alexandrian transcreve trechos dessa sessão.

Durante a guerra, com a França ocupada, passou a militar na Resistência. Sua tarefa: preparar documentos falsos de identidade para outros militantes clandestinos. Ainda teve tempo de criar um jornal satírico, La voix des Taons (a voz das mutucas) e de atuar para que Artaud fosse transferido de um hospício na França ocupada para outro, melhor, na República de Vichy.

Preso em abril de 1944 pela Gestapo, foi enviado a uma horrenda série de campos de concentração: Flossemburg, Buchenvald, Teresienstadt. Quando Teresienstadt foi tomado pelos aliados em 1945, acharam Desnos – tarde demais: com tifo, agonizante, não resistiu. Suas últimas palavras, ao ser reconhecido por um estudante tcheco no hospital: “Esta é minha manhã mais matinal”.

Havia conquistado a admiração dos demais prisioneiros ao jogar sua gamela de sopa na cara de um dos guardas do campo de concentração, suportando impassível os duros castigos a que o submeteram, relata Alexandrian.

Transcrevo da Wikipedia em inglês, que cita Susan Griffin, outro episódio (Alexandrian também o menciona, mas com menos detalhes):

 

Um dia, Desnos e outros prisioneiros foram levados a um caminhão; sabiam que este os levaria à câmara de gás. Ninguém falava. Logo chegaram e os guardas ordenaram que saíssem do caminhão. Quando começaram a andar em direção à câmara de gás, Desnos repentinamente saltou para fora da fila e agarrou a mão da mulher a sua frente. Estava animado e começou a ler a palma da mão. A previsão era boa: uma vida longa, muitos netos, abundantes alegrias. Uma pessoa ao lado ofereceu sua palma a Desnos. Novamente, Desnos antecipou uma vida longa, cheia de felicidade e sucesso. Os demais prisioneiros animaram-se, estendendo as palmas de suas mãos para Desnos e, em cada caso, ele predisse vidas longas e felizes. Os guardas ficaram desorientados. Minutos antes, estavam em uma missão de rotina cujo desfecho parecia inevitável, mas agora hesitavam. Desnos foi tão eficiente em criar uma nova realidade que os guardas foram incapazes de prosseguir com as execuções. Mandaram que os prisioneiros voltassem ao caminhão e os levaram de volta a suas barracas. Desnos nunca foi executado. Através do poder da imaginação, salvou sua vida e aquelas dos outros.

 

EM TEMPO (estou acrescentando no dia seguinte): a história das leituras de mão, e, principalmente, demover guardas nazistas, pode parecer não só improvável, mas fictícia. Alexandrian é rigoroso, fonte muito confiável: em seu História da filosofia oculta, por exemplo, sustenta que Nicolas Flamel nunca foi alquimista (nisso contradizendo Breton), porém apenas um homem muito rico a quem foi atribuída a capacidade de fazer ouro, e que os escritos que lhe foram atribuídos são apócrifos; e que o tarô não é egípcio antigo, porém criação de Eteilla no sec. XVIII, embora derive de jogos de cartas criados na Renascença. Enfim, a informação é precisa nos livros dele que já li. A autora citada na Wikipédia, Susan Griffin, é uma jornalista e dramaturga, prêmio Pulitzer – existe. Chequei no Google, de fato ela relata esse espantoso episódio.


9. Fevereiro de 2012, André Breton e Antonin Artaud

 

Havia dito que publicaria homenagens a Alfred Jarry neste blog, do mesmo teor daquela a Robert Desnos. Pretendo fazê-lo. E também sobre Henry Miller, um beat-surreal.

Contudo, enviei algo para os participantes desta minha mais recente oficina de surrealismo sobre Breton e Artaud; e achei que o conjunto merecia maior circulação.

 Já havia anotado, no capítulo 5 de minha série, neste blog, sobre Robert Desnos, que um dos vícios de determinada crítica (em especial, brasileira) é examinar autores que romperam com Breton em contraposição ao surrealismo, deixando de lado relações de continuidade. Um dos exemplos (há muitos) é o livro de Silviano Santiago sobre a viagem de Artaud ao México, pretexto para um libelo contra o surrealismo. Se não me falha, no opúsculo de Teixeira Coelho sobre Artaud é adotada a mesma perspectiva.

No entanto, após insultarem-se pesadamente entre 1928 e 1930 – em Um cadavre, por Artaud, e no Segundo manifesto do Surrealismo de Breton, além de Breton e amigos tumultuarem a encenação de Strindberg por Artaud e esse ter chamado a polícia –, Artaud e Breton se reconciliaram em 1936. Corresponderam-se. Artaud se apresentou como surrealista e deu a palestra “Surrealismo e revolução” no México (traduzi e publiquei em Escritos de Antonin Artaud). Voltou a escrever cartas para André Breton a partir de 1936; inclusive uma da Irlanda, relatando os episódios que culminariam em seu internamento em hospícios, naquele ano. Tenho a impressão (observei isso em Escritos de Antonin Artaud) de que a violência do confronto entre eles foi proporcional à importância que tinham um para o outro. Mas a reconciliação não foi plena; Artaud achava que Breton estava sendo paternalista e condescendente com ele, e recusou-se, como é lembrado por Clayton Eshleman (em “Watchfiends & Rack Screams: Works from the final period”) a participar em uma exposição internacional do surrealismo.

◦ De Breton sobre Artaud, em Entrétiens, livro com suas entrevistas radiofônicas, de 1952:

“Havia passado muito pouco tempo desde que Artaud se juntou a nós, porém ninguém havia posto mais espontaneamente a serviço da causa surrealista todos os seus meios, que eram grandes. […] Muito atraente, como o era então, arrastava atrás de si, ao deslocar-se, uma paisagem de novela negra, toda ela atravessada por relâmpagos. Estava possuído por uma espécie de furor que não perdoava, por assim dizer, nenhuma das instituições humanas, mas que podia, em algumas ocasiões, desembocar em uma risada que destilava todo o desafio da juventude. Esse furor, mediante o surpreendente poder de contágio que possuía, influiu profundamente no caminho empreendido pelo surrealismo, nos impulsionou a correr verdadeiramente todos os riscos, a atacar pessoalmente, diretamente, tudo aquilo que não podíamos suportar. […] Um “escritório de investigações surrealistas” foi aberto no número 15 da rue de Grenelle, e seu objetivo inicial era recolher todas as comunicações possíveis, referent4es às formas que poderia adquirir a atividade inconsciente do espírito. […] Artaud, que assumiu sua direção sucedendo a Francis Gérard, se esforçou em convertê-lo em um centro de “readaptação” à vida. […] Nesse momento, se publicaram, sob o impulso de Artaud, textos coletivos de uma grande veemência. […] esses textos adquiriram bruscamente um ardor revolucionário. Tal é o caso da “Declaração do 27 de janeiro de 1925”, da que se intitula “Abram os cárceres, licenciem o exército”, das convocações “ao Papa” e “ao Dalai Lama”, das cartas aos reitores das universidades européias” e “às escolas budistas” e da carta “aos médicos diretores dos asilos mentais” que se pode ler na obra Documents surréalistes. […] Gostava desses textos, particularmente aqueles em que se vê mais claramente a influência de Artaud. Mais uma vez, estou valorizando em função de seu próprio destino, do grande sofrimento que motivava essa recusa quase absoluta, que também era a nossa, mas que ele era o mais apto e o mais ardente para formular.

(Breton também faz algumas ressalvas, e explica porque assumiu a direção daquele escritório de investigações surrealistas)

◦ De “Hommage à Antonin Artaud”, fala de Breton em uma sessão em favor de Artaud em 1946, quando foi libertado, solto do manicômio. Está publicada na coletânea La clé des champs. São trechos: selecionei o parágrafo final e a nota de rodapé, extensa, bem no estilo Breton, na qual são citadas cartas de Artaud. Os itálicos são de Breton e Artaud (exceto o parêntese que acrescentei). Normalmente, em traduções do francês, contorno o “vous” cerimonioso que eles usam – é anacrônico demais. Mas desta vez mantive, nas manifestações de Artaud – o “você” não caberia, e “o senhor” é comercial demais. Ele quis ser solene, acho.

[…]

“Não percamos de vista que sob outros céus que o céu da Europa a palavra incessantemente inspirada de Artaud teria sido recebida com uma extrema deferência; que ela teria sido de natureza a levar bem longe a coletividade (tenho em vista, particularmente, a acolhida e o destino privilegiado que reservaram a testemunhos extraordinários dessa têmpera as populações de índios). Tornei-me demasiado pouco adepto do velho racionalismo, que detestamos por consenso desde nossa juventude, para revogar o testemunho extraordinário sob pretexto de ter contra si o sendo comum. É assim que eu gostaria de tranqüilizar o próprio Antonin Artaud, quando o vejo incomodar-se por minhas lembranças, na década mais ou menos atroz que acabamos de viver, não corroborarem exatamente as suas (1). Sei que Antonin Artaud viu, no sentido em que Rimbaud e antes dele Novalis e Arnim falaram em ver; importa muito pouco, desde a publicação de Aurélia, que isso, que assim foi visto, não esteja de acordo com aquilo que é objetivamente visível. O drama é que a sociedade à qual nós nos honramos cada vez menos de pertencer persista em atribuir ao homem um crime inexpiável por haver passado para o outro lado do espelho. Em nome de tudo o que me diz, mais que nunca, ao coração, aclamo o retorno á liberdade de Antonin Artaud em um mundo onde a própria liberdade precisa ser refeita; para além de todas as denegações prosaicas, dou toda a minha fé a Antonin Artaud, homem de prodígios; saúdo em Antonin Artaud a negação perdidamente apaixonada, heróica, de tudo aquilo de que morremos por viver.

A nota de rodapé: (acrescentada em 1952)

◦ Ao sair do hospital de Rodez, Artaud continuava a representar-se de um modo muito exaltado os acontecimentos que, segundo ele, haviam-se desenrolado no Havre em outubro de 1937 e foram o prelúdio de sua internação. Estava persuadido de que eu havia, então, perdido minha vida ao querer lançar-me em seu socorro (o fato de ele me pedir por carta que marcássemos um encontro não mudava nada). Não mais o tendo revisto desde aquela época, escrevia-me a 31 de maio de 1946: “”Sois mesmo vós que vos fizestes matar (eu digo matar) sob as balas das metralhadoras da polícia diante do Hospital geral do Havre onde eu era mantido em camisa de força e com os pés amarrados à cama. Vós lá deixastes mais que vossa consciência, e conservastes vosso corpo, mas isso é bem justo, pois após a morte retorna-se mal”. Como, sentado no dia seguinte comigo no terraço de um café, ele quase me incitava a testemunhar publicamente para acabar com os protestos e objeções que esse relato inverossímil encontrara, fui obrigado – com todo o tato possível – a, por minha vez, invalidá-lo. Mal o fiz, e seus olhos se encheram de lágrimas. Enquanto permanecemos juntos naquele dia, ele não se demoveu da opinião de que eu lhe ocultava a verdade, quer fosse por ter os mesmos interesses que os outros, o que ele não podia admitir sem dilacerar-se, quer fosse, muito mais provavelmente, por me haverem, através de não sei que manobras, despojado de minhas verdadeiras memórias para colocar outras, falsas, em seu lugar. Contudo, em uma carta datada de 3 de maio, ele abandonará, ao menos parcialmente, sua posição: “Acredito, pois vós o dissestes, que, com efeito, em outubro de 1937 não estivestes no Havre, mas na galeria Gradiva em Paris. Afirmo que nunca delirei, nunca perdi o senso do real, e que minhas lembranças, ou o que delas resta após cinqüenta comas [dos eletrochoques] são reais. Escutei, durante três dias no Havre, as metralhadoras da polícia diante do Hospital Geral do Havre, escutei também o estrondo soar em todas as igrejas durante uma manhã. Nunca mais escutei algo semelhante desde então. Pode-se discutir por muito tempo, com efeito, sobre a interpretação desses fatos. Haviam-me dito, de diversos lados, que André Breton queria libertar-me a força. Vós me dizeis que não o fizestes: eu acredito”.

Há mais sobre Artaud-Breton em Escritos de Antonin Artaud.

 

10. Fevereiro de 2012, Henry Miller, beat-surreal

 

Beat-surreal: o termo foi utilizado por Roberto Piva para designar Paranóia. Mentes circunscritas acham surrealismo e geração beat incompatíveis. Discuti por isso com Vincent Bounoure, organizador de La civilization suréaliste, que não admitia os beats – isso foi em 1968: ao mesmo tempo, surrealistas inteligentes como Alain Jouffroy e Jean-Jacques Lebel divulgavam a beat na França.

As relações entre esses dois movimentos são complexas, pela pluralidade beat (como já comentei em Geração Beat). Ginsberg dá impressão de não ter ido com a cara de Breton – deixei escapar a oportunidade de perguntar-lhe. Philip Lamantia e Ted Joans foram beat-surreais; há surrealismo em Gregory Corso. Bob Kaufman pode ser considerado surrealista? Enfim, tema vai longe. Para mim, a beat realizou algumas premissas do surrealismo; beat e surrealismo, além de contarem com criadores extraordinários, foram os movimentos em que poesia e rebelião se uniram de modo mais efetivo, e com mais desdobramentos.

Quinta-feira passada, ao reler Henry Miller para minha comentá-lo em minha mini-oficina de criação poética e erotismo – escolhi trechos da trilogia Sexus, Nexus e Plexus – ficou-me evidente que ele foi o verdadeiro e primeiro beat-surreal. Um precursor, é claro: chegou antes.

As duas relações, com beats e surreais, são temas laterais. Importa que Miller foi um escritor magnífico. É um absurdo, conseqüência da conversão do mercado editorial em desfile mundano, coadjuvado pela omissão da crítica e pelo alheamento das universidades, estar fora de moda, não ser estudado, falar-se tão pouco dele, haver tão poucas edições brasileiras. O ritmo, a torrencial prosa poética, a conjunção de lirismo e cinismo, deboche e alta filosofia, o inconformismo e a crítica contundente à sociedade de massas, tudo isso me encanta cada vez mais, a cada releitura. Meu predileto é Primavera negra, extensa prosa poética de imagens surrealistas.

Dois tópicos sumários, incompletos: um para o Miller surreal, outro para o beat.

◦ O surreal.

Breton referiu-se a ele como “mon ami Henry Miller”. Onde? Desvantagens de ler muito: perdi de vista, não me lembro em qual de seus artigos isso consta. Breton, todos sabem, não distribuía amizades facilmente. Sarane Alexandrian, em História da literatura erótica, inclui o tópico “O caso Henry Miller” no capítulo “O erotismo surrealista”. Diz: “Henry Miller foi incontestavelmente um autor surrealista, porém independente; quando chegou a Paris em 1930 desistiu de entrar no grupo animado por André Breton em razão das preocupações marxistas, estranhas às suas idéias, que ali se exibiam”. Claro: como se vê pelo capítulo final de Plexus, Miller foi um spengleriano, e não um marxista. Quem participou, compareceu, foi Anaïs Nin, com quem teve caso (tema do filme Henry and June de Philip Kaufman com Fred Ward, Uma Thurman e Maria de Medeiros).

Alexandrian cita, da correspondência de Miller e Lawrence Durrell: “Nunca tento ser surrealista de início. Às vezes isso me acontece no começo, às vezes no fim. É sempre um esforço tendente a não deixar nada de lado, a dizer o que não pode ser dito ou não era dito nunca.” Declarou-se inspirado por Nadja, que seria um modelo de sua June. Em uma carta-manifesto de 1938: “É falso falar de Surrealismo. Isso não existe: há apenas surrealistas”. Miller jogou xadrez com Marcel Duchamp (deve ter perdido todas, Duchamp foi um mestre, criador de jogadas). Participou da Exposição Internacional do Surrealismo de 1947. Quis que Breton prefaciasse o catálogo de uma exposição de seus quadros – Breton refugou, pois achava-o melhor escritor que pintor (tinha razão).

Pesquisando, acho um artigo, The Unpublished Correspondence of Henry Miller & André Breton, the “Steady Rock”, 1947-50, de Karl Orend, em Nexus – The International Henry Miller Journal. Mas sem download. Pena, queria ler essa correspondência. Inclusive para esclarecer como podiam se apreciar desse modo personagens tão opostos na moral sexual. Breton era pelo amor único, absoluto. Em Arcano 17, formulou uma ética: “Optei, quanto ao amor, pela forma passional e exclusiva, com tendência a proibir ao lado dela tudo o que pode ser atribuído à acomodação, ao capricho e ao desvio”; fala em defendê-la “de seus choques com a dos céticos ou ainda dos libertinos mais ou menos declarados”. Em Miller, o frenesi do deboche, a poetização da licenciosidade, todas as gradações do cinismo (com especial predileção por avançar sobre mulheres de amigos). O relacionamento de ambos mostra algo que já observei como qualidade de Breton: ser contraditório, paradoxal. O valor, a qualidade, tinham precedência.

◦ O beat.

Nascido em 1891, Miller foi um óbvio antecessor, na escrita e na vida. Após reler bastante Kerouac, como encontro prosa milleriana em seus extensos parágrafos e, especialmente, na escrita polifônica – ou vice-versa, enxergo Kerouac ao reler Miller. Ele apreciava Kerouac, prefaciou Os subterrâneos, encantou-se com The Dharma Bums (Os vagabundos iluminados), escrevendo uma carta entusiástica. Estiveram juntos em cenas relatadas em Big Sur de Kerouac.

Tanto Kerouac (e Burroughs) quanto Miller foram spenglerianos. Em meu Geração Beat e místicas da transgressão (inédito, em acabamento), observo desleitura de Spengler por Kerouac; adaptou de modo pessoal categorias como “segunda religião” e “fellaheen”. Miller, não – como se vê pelo final de Plexus, entendeu muito bem A decadência do Ocidente, inclusive categorias difíceis como “pseudomorfose”. Em ambos, Spengler fundamentou o individualismo, o desprezo pela massificação.

Em comum a Kerouac e Miller, também, a paixão por Dostoievski – e outros traços e fontes. Miller aparece indiretamente em Viajante solitário de Kerouac. Transcrevo, também deste meu próximo Geração Beat e místicas da transgressão (o artigo unindo-os a que Jack se refere é de Kenneth Rexroth, publicado em The Nation):

“O personagem perfeito de Kerouac seria, portanto, alguém que fosse ao mesmo tempo negro, louco, emigrante apátrida, marginal e delinqüente: inteiramente à margem. É o conjunto de qualidades representadas por seu companheiro na balsa de Dover a Calais, como relatado em Viajante solitário. Ao descer do “barco do canal completamente apinhado, centenas de estudantes e dezenas de belas garotas inglesas e francesas com rabos-de-cavalo e cabelo curto”, vai parar, na alfândega,

“[…] ao lado de um negro das Índias Ocidentais que simplesmente nem tinha passaporte e carregava uma pilha de casacos e calças estranhos e velhos – ele respondeu estranhamente às perguntas dos funcionários, parecia extremamente vago e de fato me lembro de ele ter esbarrado distraidamente comigo no barco durante a viagem. – Dois policiais ingleses altos e vestidos de azul estavam observando ele (e a mim) desconfiadamente, com aqueles sorrisos sinistros de Scotland Yard e aquela estranha desatenção mal-humorada e de nariz empinado típica dos velhos filmes de Sherlock Holmes. – O negro olhou para eles aterrorizado. Um de seus casacos caiu no chão, mas ele nem se incomodou em apanhá-lo. – Um brilho insano surgiu nos olhos do funcionário da imigração (um jovem almofadinha intelectual) e depois outro brilho insano nos olhos de um dos detetives, e de repente me dei conta de que o negro e eu estávamos cercados.

Kerouac tem que explicar-se, justificar a tentativa de entrar na Inglaterra com quinze xelins no bolso e uma aparência que o identificava ao antilhano. Alega que iria receber um cheque de seu editor (o adiantamento pela edição britânica de On the Road): “Não acreditaram na minha história – eu não estava barbeado, tinha uma mochila nas costas, parecia um vagabundo andarilho.” Como se não bastasse,

“– Àquela altura, o negro tinha sido levado para uma sala dos fundos – de repente, ouvi um gemido terrível como o de um psicopata em um hospício, e perguntei: “O que é isso?”.

“É o seu amigo negro.”

“O que há com ele?”

“Ele não tem passaporte, nem dinheiro, e aparentemente escapou de uma instituição para doentes mentais na França. […]

O trecho merece transcrição por mostrar o humor de Kerouac, inclusive em seu epílogo. O editor inglês não é localizado, pois era sábado. Obrigam-no a provar que é escritor:

“[…] Revirei minha mochila e de repente encontrei um artigo em uma revista sobre Henry Miller e eu e o exibi para o cara da alfândega. Ele sorriu:

“Henry Miller? Isso é ainda mais notável. Ele foi detido por nós há alguns anos, escreveu um monte de coisas sobre New Haven.”

 



 

CLAUDIO WILLER (Brasil, 1940-2022). Poeta, ensaísta, tradutor. Como poeta, distingue-se pela ligação com o surrealismo e a geração beat. Como crítico e ensaísta, escreveu em vários periódicos brasileiros. Seus trabalhos estão incluídos em antologias e coletâneas, no Brasil e em outros países, além de uma bibliografia crítica, formada por ensaios em revistas literárias, resenhas e reportagens na imprensa. Ocupou cargos públicos em administração cultural e presidiu, por vários mandatos, a União Brasileira de Escritores. Coeditou, com Floriano Martins, a Agulha Revista de Cultura, de 1999 a 2009. Ministrou inúmeros cursos e palestras e coordenou oficinas literárias em universidades, casas de cultura e outras instituições.

 

 

JAVIER MARÍN (México, 1962). Con una trayectoria activa de más de treinta años, la obra de Javier Marín gira en torno al cuerpo humano como entidad integral, involucrando el análisis en el proceso creativo basado en la construcción y deconstrucción de formas tridimensionales. Aunque la escultura ha sido su punto focal, ahora incluye el dibujo y la fotografía como disciplinas centrales. Javier Marin es el artista invitado de nuestra presente edición de Agulha Revista de Cultura.









Agulha Revista de Cultura

Número 250 | abril de 2024

Artista convidado: Javier Marin (México, 1962)

editora | Elys Regina Zils | elysre@gmail.com

ARC Edições © 2024

  


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