terça-feira, 25 de novembro de 2014

LUCILA NOGUEIRA | Vanguarda e loucura em Ângelo de Lima





O rosto no livro de capa dura nas mãos de José Rodrigues me emociona. Como alguém pode chegado a tanta tristeza, pergunto então como se chama. É um poeta da geração Orpheu que enlouqueceu, me responde, é o Ângelo de Lima. Você tem a poesia dele, indago; não, o professor responde, só os que constam no número 2 da RevistaOrpheu. Saio impressionada da sala da Associação de Estudos Portuguesas Jordão Emerenciano pensando que os loucos são simplesmente aqueles seres que não compreendemos, porque não pensam e agem de acordo com o regimento do mundo. Lembro as palavras de Sá-Carneiro ao afirmar que se os loucos fossem em número superior aos do senso comum, estes é que seriam considerados desajuizados e celebrados por seu juízo, em sua singularidade psicológica, tornada geral. Iria encontrar sua obra reunida – 43 poemas – em 1994 no Porto, sua própria cidade natal, por minha primeira visita a Portugal.
O rosto no livro de capa dura me emociona. Prisioneira da fotografia, decido saber mais sobre seu destino e sua vida. Suas ligações de família. Porque esse rosto parece continuar vivo, pleno de excesso e desamparo, com emanações desde uma esfera desconhecida que magnetiza. Tudo em torno dele se reveste da aura de um enigma. Mais um sequelado das colônias, fico pensando ao saber que voltara perturbado de uma expedição militar a Moçambique. Que seu internamento constante se dera em três etapas, desde o inicial no Miguel de Bombarda, depois no Conde Ferreira e finalmente no Rilhafoles, que se tornaria durante anos a sua casa. Sete meses na África significaram para ele o nervo rompido, cordão que se desprende da campânula de vidro. A dificuldade de abrir e fechar o pano diariamente na farsa da vida. Ao retornar, ao invés de ser cuidado, indenizado, recebe a declaração de uma morte civil.
O rosto no livro de capa dura é de um poeta cujo irmão morreu aos 21 anos no Brasil. O seu pai também fazia versos, chamava-se Pedro Augusto de Lima. Tinha uma irmã dez anos mais nova, com quem pretendeu praticar incesto, sendo afastado pela mãe. Seria sua a afirmação de que “o feminino de um indivíduo é precisamente a sua irmã”.
Essa questão ligada aos costumes e à moral continua presente nas páginas policiais dos jornais de vários países, recentemente na Alemanha houve quem mantivesse relações com a filha e constituísse uma outra família no porão da própria casa onde vivia com a mulher. Fico apenas meditando os limites entre a chamada perversão sexual e a loucura clínica. Fico apenas recordando passagens da Bíblia, onde essas coisas pareciam ter outro registro. Observo que em 1902 a mãe do poeta tinha 61 anos.Leio o seu poema Semi-Rami que trata de um incesto, mas entre mãe e filha.


O rosto no livro de capa dura corresponde a um escritor que faz sua “Autobiografia” de modo sensato: nascimento, mocidade, estudos, doenças contraídas na África (Quelimane) por motivo de expedição militar, onanismo, alcoolismo, bipolaridade – esse escrito sobre sua vida, conforme Clara Rocha (filha de Miguel Torga) o poeta o faz para lembrar a todos que tem direito a ela. Inclusive, à semelhança de Artaud posteriormente, em seu texto “Eu não estou doudo”questiona o internamento, dizendo estar sendo manipulado como um manequim. Para Clara, a partir de Shoshana Felman, o elo possível entre a loucura e a literatura consistiria em uma irredutível resistência à interpretação. No entanto, vejo que os escritos epistolares e biográficos do poeta do Porto são dotados de um centramento que me deixa a pensar no grau de incompreensão dos deus contemporâneos e da crítica de hoje. Porque se a loucura é uma viagem sem esperança de retorno, tal não ocorre com a poesia, onde as portas da percepção abrem e fecham sob o comando verbalizado de um maestro sedutor.
Recorde-se que os grandes escritores da segunda metade do século XVIII e primeira do XIX seriam considerados loucos clinicamente, como os alemães Hölderlin e Kleist e os ingleses Christopher Smart e John Clare, que tinham grande produção em fases de internamento. Talvez conviesse seguir Michael Piersseus, em sua “Torre de Babel”, ao afirmar que a poesia, a loucura e a lingüística são três delírios nascidos do signo e do desejo. Entre os antigos, o delírio surgia como algo positivo,a loucura era considerada como um dom divino que arrebata uma alma delicada levando-a à expressão poética. Na visão de Charles Rosen, para o artista romântico a loucura era mais do que o colapso racional, se constituindo em uma alternativa para novos insights e um outro modo de raciocínio e de visão.A loucura poderia ser um refúgio alternativo contra a crueldade, a ingratidão, o amor contrariado, a paranóia e o tédio do cotidiano. Talvez mesmo uma forma imprevisível de inspiração a partir de uma lógica onírica,levando-se em conta que sem o irracionalismo não se viabiliza uma compreensão ativa do mundo real.
Para os simbolistas e surrealistas, a exaltação dos sentidos e a loucura, a hipnose e as drogas levariam ao estado de graça em poesia, porque para eles o poeta só exerce a sua magia em estado de transe.Essa identificação da arte e do gênio com a loucura seria a postura áspera e inóspita do materialismo científico do século XIX insuflado pelo espírito burguês. Ocorre que enquanto alguns persistiam nessa visão discriminatória, os do dadaísmo/futurismo/surrealismo ao início do século XX retomam a experiência da obsessão, da mania, da compulsão, da paranóia, do delírio e similares, recuperando para a literatura a aura dos escritores iluminados e malditos. De modo que a loucura vitoriosa viria a ser a ênfase a desencadear os movimentos de vanguarda, na sua recusa do positivismo, do racionalismo, do realismo, na busca original de reafirmar seu mundo insólito e particular.
Essas considerações vem a partir de haver tomado conhecimento da existência de texto subscrito por Antonio Lobo Antunes, que além de faulkneriano também é psiquiatra, quando considera em comunicação científica que a poesia de Ângelo de Lima se constitui num documento revelador de insanidade mental. Esse acontecimento é de causar grande perplexidade, uma vez que o ficcionista português utiliza ele próprio a técnica joyceana de dissolução da sintaxe presente nos versos do poeta do Porto e em vários outros escritores da contemporaneidade. Ele repete, assim, o relatório de 1902 em Rilhafoles de Miguel Bombarda, que considera o poeta um alienado, apesar de confirmar o seu alcoolismo e conduta hospitalar regrada e disciplinada. Sabemos que esse fato é tão real, que Ângelo de Lima saía durante a noite para se encontrar com os da Orpheu nos cafés de Lisboa.Como se ao terminar o tratamento do alcoolismo, por rejeição preconceituosa familiar, não tivesse para onde ir, ficando o hospital como sua casa. Essa declaração médica de Antonio Lobo Antunes não interfere na grandeza da sua obra literária, embora se constitua, por decorrência, em uma surpresa oximórica. Ele chega a afirmar que seria pouco provável conseguisse o poeta produzir sua obra, caso estivesse são.Como alguém que penetra tão bem no interior da mente humana pós-colonial não percebe o distanciamento entre o mundo real do poeta e o cenário mítico e oriental de seus versos, sua fala precisa sobre o cotidiano e seu discurso poético experimental de vanguarda? Que o nonsense e ilogicidade produzida por Ângelo são conseqüência da fluidez simbolistas e do anúncio experimental que Jorge de Sena haveria de dar seqüência, em 1961, na revista brasileira Invenção, marco do concretismo, com seus Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena?
O amanhã é dos loucos de hoje, falou Fernando Pessoa. E quando Mallarmé diz que poesia se faz com palavras, está afirmando que elas tem uma beleza própria, independente das idéias que representam. O experimentalismo de Ângelo de Lima já era encontrado em Eugênio de Castro(1890), em seu Oaristos e corresponde a uma tendência estética também praticada por Khlebnikov: sua agramaticalidade não é um discurso esquizofrênico, porque a linguagem está organizada. Ele utiliza deliberadamente aféreses, síncopes, apócopes(subtração) e próteses, epênteses e paragoges (ampliação). O gosto da palavra rara o leva mesmo ao uso do latim com aliterações gráficas. Esses nomes modificados já surgiam em Claridades do Sul de Gomes Leal como lembra Isabel Souto. De modo que Ângelo abre caminho tanto ao surrealismo como ao experimentalismo, sem perder o diálogo com autores de antes, como Antonio Feliciano de Castilho (Noite do Cemitério), João de Lemos (A lua de Londres), João de Deus e Soares dos Passos (O firmamento). Sem excluir aspectos ligados a Camilo Pessanha, como elipses, hiatos, anacolutos, reticências, frases sem verbos, sinestesias, termos desconhecidos. Quanto à liberdade gráfica, ele se aproxima do futurismo, presente no manifesto de Marinetti (1909) e em Chuva Oblíqua de Fernando Pessoa, onde reaparecem seus motivos e cenários egípcios. Desse ponto de vista da sua inserção na modernidade, vamos ainda encontrar sobreposição de percepções e tempos psíquicos. Como declarar que uma poesia tão consentânea com as vanguardas seria mero produto da loucura?
Às palavras raras de Ângelo de Lima darão continuidade Mário Cesariny, Alexandre O'Neill, Antonio Maria Lisboa. Essa desconfiança da palavra tradicional viria desde Rabelais e desencadearia a colagem verbal (portmanteau), o poema visual, o poema fonético e o letrismo de Isidore Isou. Um “esperanto lírico”, no dizer de René Bertelé, que ultrapassa e destrói a palavra enquanto figura estereotipada. O deslocamento dessa experiência ao Brasil se daria nos anos 50, com o concretismo e na revista do movimento Jorge de Sena haveria de publicar os sonetos que considerou continuação dos versos de Ângelo de Lima. A vontade era de dar um novo sentido às palavras da tribo, daí as experiências tipográficas de Mallarmé, os Calligramas de Apolinaire, o futurismo italiano de Marinetti e o russo de Maiakovski e Klebnikov, o dadaísmo de Tzara vindo desde Arthur Cravan a Antonin Artaud. A Antologia de poesia experimental de 1964 inclui um poema de Ângelo de Lima pela dissolução sintática, pelo uso intempestivo de pontuação – nisso por acaso são diferentes os romances de Antonio Lobo Antunes ? Conforme Isabel Melo, ao fazer a experimentação lingüística, Ângelo redimensiona a linguagem com recursos como a paronomásia, a aliteração, o anagrama, amot-valise, o hapax legomenon, o anfigurismo. E professa um rompimento claro com um modo direto de ver o mundo.
Nos dois ensaios que escreve sobre o poeta do Porto, em nenhum momento o crítico e romancista Antonio Cândido Franco menciona o seu suposto problema psiquiátrico, cuidando de enunciar as várias revistas em que ele colaborou, sua postura contrária ao descritivismo parnasiano através de analogias e elipses, ilogismos e enigmas.O professor da Universidade de Évora considera "oculta” essa poesia hermética a transitar pelo excesso de cada um de nós, palavra que implica um código anterior a ela. O instinto fonético faz irromper o processo anafórico a revelar nomes da Cabala, porque o mágico é o primeiro estágio da consciência; para lembrar Antonio Telmo, talvez a mesa do Bateleur seja mesmo a do escritor, primeira carta divinatória do Tarot. E foi nessa figura que Almada representou Pessoa, no quadro universalmente reproduzido até hoje.
Sinto falta de uma crítica que mergulhe de cabeça no texto literário, no mistério da poesia, que compreenda, por exemplo, que o poema de Ângelo de Lima “Pára-me de repente o pensamento” não significa a sua entrada na loucura, mas na dimensão desejada e concretizada pelo movimento surrealista. A imagem no momento da imagem, como queria Bachelard. Que o poema pode representar a libertação plena de uma visão tradicional do mundo e de si mesmo, na descoberta de uma nova linguagem não comprometida com velhos conceitos, de um êxtase-viagem obstinadamente procurado desde o Dyonisos da antiguidade até o simbolismo/surrealismo/psicodelismo mais recente e incursões líricas contemporâneas, para além das categorias menores e vazias de qualquer estética lógico-burocrática.

 


BIBLIOGRAFIA
Antonio Carlos, Luís F. Jorge de Sena e a escrita dos limites. Dissertação de mestrado. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1986.
Almería, Luís Beltrán; Rodríguez Garcia, José Luis(Coord.). Simbolismo y Hermetismo. Zaragoza: Prensas Universitárias de Zaragoza, 2007.
Campos, Augusto de. Poesia, Antipoesia, Antropofagia. São Paulo: Cortez & Moraes, 1978.
Erasmo, Desiderio. Elogio da Loucura. Porto Alegre: L&PM, 2008.
Franco, Antonio Cândido. Poesia oculta: estudos sobre a moderna lírica portuguesa. Lisboa: Vega, 1996.
Lima, Ângelo de. Poesias Completas. Porto: Assírio Alvim, 1991.
Melo, Isabel Maria Pinto do Souto e. O Anfigurismo na poesia de Ângelo de Lima. Dissertação de mestrado. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003.
Plaza, Monique. A escrita e a loucura. Lisboa: Editorial Estampa, 1990.
Revista Orpheu 2. Lisboa: Edições Ática, 1976.
Rocha, Clara. Máscaras de Narciso. Coimbra: Ed. Almedina, 1992.
Sena, Jorge de. Trinta anos de poesia. Porto: Editorial Inova, 1972.
Telmo, Antonio. Le bateleur. Lisboa: Átrio, 1992.


LUCILA NOGUEIRA (Brasil, 1950). Poeta e ensaísta. Autora de O cordão encarnado (2010), Mas não demores tanto (2011), Pseudonímia e literatura (2012), e Poesia em Houston (2013). Contato: lucnog1@gmail.com. Página ilustrada com obras de Leonardo da Vinci, artista convidado desta edição de ARC.

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