sábado, 22 de novembro de 2014

SELMA VASCONCELOS | Raízes ibéricas da poesia de João Cabral de Melo Neto






João Cabral de Melo NetoA relação com a Espanha para o poeta brasileiro e nordestino João Cabral de Melo Neto não foi episódica ou circunstancial. Tratou-se de um fenômeno de verdadeira aculturação e incorporação de valores ao espírito criador do artista.
Na obra do poeta identifica-se um diálogo permanente entre as duas culturas a partir da identificação entre a paisagem nordestina e a andaluza, passando pela estrutura urbana das cidades espanholas, particularmente Sevilha, identificando semelhanças de temperamento entre os dois povos. Daquele país João Cabral tira lições para seu projeto estético: na arena de touros, no passe natural de alguns toureiros, no “cante a palo seco” do flamenco, na dança das bailadoras andaluzas.
Em Barcelona (1947), seu primeiro posto diplomático, incorpora-se ao Dau al Set, grupo de artistas da resistência intelectual ao regime do generalíssimo Franco. Colabora com a revista de mesmo nome editada pelo grupo. Faz grandes amigos entre poetas e artistas plásticos como Joan Brossa, Cirlot, Juan Miró e Antoni Tàpies. Encontra identificações entre o rio, o seu Capibaribe e o Guadalquivir; tal o nosso cão sem plumas, o rio sevilhano passa pela cidade como “uma rua é passada por um cachorro/ uma fruta/ uma espada”. Transita entre a Andaluzia e a Catalunha, como o migrante Severino desce do sertão para o mar. Elege a Espanha como sua pátria afetiva.
A residência em Barcelona, de 1947 a 1950, foi um período fértil e sensibilizador para com a cultura local, como informa a Manuel Bandeira em carta datada de 20 de julho de 1948:

Entrei em contacto, aqui, com um grupo de jovens escritores catalães que publicam duas revistas. Clandestinas, esclareço, porque o catalão, desde 1939, é perseguido aqui. A princípio não podiam nem falar; a partir do desembarque dos americanos na África, passaram a tolerar a língua oral; a partir de 1945, fim da guerra, passaram a permitir os livros em catalão, se em pequenas tiragens fora do comércio; e, finalmente, de um ano para cá, permitem os livros – com restrições – mas não as revistas e os jornais. Como eu ia dizendo, acima, conheço esses jovens catalães, ávidos de intercâmbio e de que se conheça, fora da península, sua “cultura ameaçada”.

O intercâmbio cultural com os catalães foi registrado através da publicação na Revista Brasileira de Poesia em fevereiro de 1949 de “Quinze poetas catalães”traduzidos por ele para o português. A presença dos poetas espanhóis se faz sentir em toda obra cabralina. Em Psicologia da composição (1946-1947) e no poema O rio (1953), João Cabral insere epígrafes de Jorge Guillén (1893-1984) e Gonzalo de Berceo (séc. XIII) respectivamente. No primeiro caso, o pernambucano retira o verso inicial do poema El horizonte do livro Cántico de Jorge Guillén, publicado em 1928.

Riguroso horizonte,
Cielo y campo, ya idénticos,
Son puros ya: su línea,

O projeto poético de João Cabral foi fundado na procura obsessiva do apuro da linguagem, de tal modo, a perseguir o silêncio como fronteira do dizer. Para isso lhe serve de espelho o conceito poético de Guillén que tem a clareza e o equilíbrio da escrita como fio condutor para atingir a perfeição na comunicação com o mundo.
Observe-se os últimos versos do poema de Guillén:

Enrique de SantiagoPerfección! Se da fin
A la ausencia del aire,
De repente evidente.
Horizonte, horizonte
Trémulo, casi trémulo
De su don inminente!
Se sostiene en un hilo
La frágil, la difícil
Profundidad del mundo.

A epígrafe do poema O Rio, “Quiero que compongamos yo e tú una prosa, ” João Cabral busca em Gonzalo de Berceo, que escreve no poema de sua autoria “Vida de Santo Domingo de Silos”:

Quiero fer una prosa en román paladino
en el qual suele el pueblo fablar a su vecino.

Berceo é legítimo representante de uma nova escola narrativa e de caráter erudito surgida no século XIII na Espanha, cultivada por clérigos, tanto aqueles de formação monástica, como pelos homens cultos que tivessem uma educação eclesiástica e fluência em latim erudito. O mester de clerecia distinguia-se dos monges por serem homens urbanos, que trabalhavam junto a sua comunidade e tinham uma relação diversa com o saber, uma vez que procuravam difundir seu conhecimento junto ao povo. Em contraposição a este grupo estavam os denominados mester de juglaría, constituído de jograis que falavam o latim vulgar, e divulgavam oralmente as composições de terceiros. No entanto, em dado momento, e com o objetivo de romper com o confinamento das bibliotecas monasteriais, os mester de clerecia passaram a adotar em suas obras a língua vulgar, a língua do povo, de juglaría.
Gonzalo de Berceo, o mais destacado dos mester de clerecia é assim conhecido por haver nascido no povoado de Berceo, diocese de Calahorra na Rioja. Sua formação cultural foi feita no mosteiro beneditino de San Millán de la Cogolla. O poeta tomou para si a catequese e o didatismo junto ao povo passando a escrever em linguagem acessível em temas fundamentalmente religiosos. Singularmente, afastou-se da teologia clássica e passou a difundir o que se considera uma teologia de bases humanitárias e existenciais, que garantiu a adesão do homem medieval às suas composições, nas quais, com frequência, se nomeia:

Gonzalo fue su nombre que fizo este tractado
Em San Millan de suso fue ninnez criado
Natural de Berço ond San Millán fue nado
Yo Gonzalo por nomne clamado de Berceo
De San Millán criado em la merced seo

Conhecedor da cuaderna via (admitida como de origem francesa), adotou o metro alexandrino e com ele compôs estrofes em quartetos monorrimos e versos divididos em dois hemistíquios de seis, sete ou oito sílabas na dependência da localização da última sílaba tônica. Esta forma marca a produção de livros como o Libro de Alexandre e o poema de Fernan Gonzalez, duas obras de referência da “nova” escola, a quem se atribui a autoria coletiva e introdução em terras espanholas pela Universidade de Palencia, situada no reino de Castella e de forte influência francesa. Foi Palencia o centro universitário de formação de muitos dos clérigos eruditos, possivelmente também de Berceo.
Libro de Alexandre traz a cuaderna via seguinte:

mester trago fermoso, non es de ioglaria,
mester es sem pecado, ca es de clerezia,
fablar curso rimado por la quaderna via
a silabas contadas, ca es grant maestria

Em 1960, João Cabral publica a primeira edição de seu livro intitulado Quaderna, escrito em Barcelona (1956-1959)Sente-se a presença da Espanha medieval a partir do título, derivado da cuaderna via, e na composição dos poemas escritos em quadras. Na interpretação de alguns autores o numeral quatro, para o poeta, representava também o equilíbrio e racionalidade explicitado no poema “O número quatro”:

O número quatro feito coisa
Ou a coisa pelo quatro quadrada
Seja espaço, quadrúpede, mesa,
Está racional em suas patas

Enrique de SantiagoSobre o poema O Rio, João Cabral afirma que uma das influências recebidas na composição do texto advém da descoberta da literatura primitiva espanhola, do romanceiro espanhol. Escrito em versos de arte maior espanhola, com os versos ímpares fixos e os versos pares de tamanho variável, cada imagem ou conceito inicia-se no verso ímpar e termina no verso par.
Em um exercício de absorção da oralidade, faz o Capibaribe narrador, como disse Benedito Nunes a propósito: “de tudo que vê, dá correta notícia oral ao poeta”, este mencionado no texto como o “escrivão senhor da freguesia de Tapacurá”.
O poeta dá voz ao rio que dita para ele, o escrivão, o registro da paisagem física, humana e social que percorre desde a nascente até ao Recife. Nesta condição legitima a aproximação entre o escritor e a figura do poeta popular, que ao compor seus romances ou poemas narrativos, transpõe para a linguagem gráfica o que foi lhe transmitido oralmente:

Sempre pensara em ir / caminho do mar. / Para os bichos e rios / nascer já é caminhar. / Eu não sei o que os rios / têm de homem do mar; / sei que se sente o mesmo / e exigente chamar. / Eu já nasci descendo / a serra que se diz do Jacarará, / entre caraibeiras / de que só sei por ouvir contar / (pois, também como gente, / não consigo me lembrar / dessas primeiras léguas /do meu caminhar).

A escola de Berceo e dos épicos castelhanos, favorece a inserção de gêneros populares na poética cabralina. O Rio e Morte e Vida Severina são exemplos de composições em que João Cabral procura adequar a linguagem dos poemas à realidade de que trata, com o objetivo de alcançar a comunicação com o leitor. Nessas duas obras, o poeta brasileiro fotografa a vida do homem simples, ribeirinho, recorrendo ora à ausência de “plumas” para falar da realidade do rio ou então ao “auto de natal”, cuja base está na literatura medieval ibérica transposta para a realidade nordestina.
No poema Morte e vida Severina – um auto de natal pernambucano, o poeta deixa claro, no subtítulo, a influência da literatura medieval espanhola. Os autos são representações do teatro medieval ibérico de raízes religiosas, desenvolvidas em um único ato. À maneira de Gil Vicente, pai do teatro português, em seu Auto da barca do Inferno, o pernambucano também estrutura o poema em cenas justapostas e caracteriza os personagens da cena individualmente. A diferença está no tom satírico adotado pelo poeta português para compor o perfil dos personagens, enquanto que o pernambucano é coerente com a figura popular dos mesmos, rudes, mas crédulos e fortes, em luta constante pela sobrevivência.
Outra incursão pela cultura de Espanha se dá através da dedicatória de poemas a artistas espanhóis, de citações, de recorrências ou de alusões a nomes e a processos de criação desses artistas, como em “Homenagem a Picasso”, de Pedra do sono; “Encontro com um poeta”, que remete a Miguel Hernández, no livroPaisagens com figuras (1954-1955); No poema “O sim contra o sim”, de Serial (1959-1961), alusão ao fazer artístico de Juan Gris; Em Museu de tudo (1966-1974), o poema “Fábula de Rafael Alberti” homenageia o poeta espanhol. Faz referência a mais dois poetas da “Generación del 27” Pedro Salinas e Jorge Guillén, em “Dois Castelhanos em Sevilha”, no livro Andando Sevilha (1987-1989).
O poeta brasileiro edita pessoalmente em prensa doméstica instalada em sua casa em Barcelona, os dois primeiros livros do também poeta, dramaturgo e artista plástico Joan Brossa (1919-1998), hoje reconhecido como um clássico catalão, Sonets de Cariuxa e En va fer Joan Brossa, ambos em pequena tiragem de setenta exemplares, que passam a fazer parte do catálogo das suas Edições Livro Inconsútil.
É dedicado ao amigo o poema Fábula do Joan Brossa, no livro Paisagens com Figuras (1954-55):

Joan Brossa, poeta frugal,
que só come tomate e pão,
que sobre papel de estiva
compõe versos a carvão,
nas feiras de Barcelona.
Joan Brossa, poeta buscão,
as sete caras do dado,
as cinco patas do cão
antes buscava Joan Brossa,
místico da aberração,
buscava encontrar nas feiras
sua poética sem-razão

Paisagens com figuras é outro livro que testemunha o diálogo entre as culturas espanhola e brasileiro-nordestina. Dos dezoito poemas que o compõem, oito estão dedicados a Pernambuco e dez a Espanha. Entre estes últimos estão referências às paisagens de Castela, da Catalunha, Medinacelli, Tarragona, aos poetas Joan Brossa e Miguel Hernández, bem como às paisagens pernambucanas, como os cemitérios, o Alto do Trapuá e o vale do Capibaribe.
Além da referência a nomes de pintores e de poetas, a obra cabralina faz alusões a ofícios de artistas espanhóis, a arte de cantar, de dançar, de tourear. Desta última, retira a lição de controle e equilíbrio no momento da elaboração do texto poético, lição que nos dá no poema Alguns toureiros:

Enrique de SantiagoEu vi Manolo Gonzáles / e Pepe Luís, de Sevilha: / precisão doce de flor, / graciosa, porém precisa. / Vi também Julio Aparício, / de Madrid, como Parrita: / ciência fácil de flor, / espontânea, porém estrita. / Vi Miguel Báez, Litri, / dos confins da Andaluzia, / que cultiva uma outra flor: / angustiosa de explosiva. / E também Antonio Ordoñez, / que cultiva flor antiga: / perfume de renda velha, / de flor em livro dormida. // Mas eu vi Manuel Rodríguez, / Manolete, o mais deserto, / o toureiro mais agudo, / mais mineral e desperto, / o de nervos de madeira, / de punhos secos de fibra / o da figura de lenha / lenha seca de caatinga, / o que melhor calculava / o fluido aceiro da vida, / o que com mais precisão / roçava a morte em sua fímbria, / o que à tragédia deu número, / à vertigem, geometria / decimais à emoção / e ao susto, peso e medida, / sim, eu vi Manuel Rodríguez, / Manolete, o mais asceta, / não só cultivar sua flor / mas demonstrar aos poetas: / como domar a explosão / com mão serena e contida, / sem deixar que se derrame / a flor que traz escondida, / e como, então, trabalhá-la / com mão certa, pouca e extrema: / sem perfumar sua flor, / sem poetizar seu poema.

Outro poema em que há o aproveitamento do contexto espanhol relacionado ao ofício do fazer poético é O Ferrageiro de Carmona”, do livro Crime na Calle Relator (1985-1987):

Um ferrageiro de Carmona / que me informava de um balcão: / “Aquilo? É de ferro fundido, / foi a fôrma que fez, não a mão. / Só trabalhando em ferro forjado / que é quando se trabalha ferro; / então, corpo a corpo com ele, / domo-o, dobro-o até o onde quero. / O ferro fundido é sem luta, / é só derramá-lo na fôrma. / Não há nele a queda-de-braço / e o cara-a-cara de uma forja. / Existe grande diferença / do ferro forjado ao fundido; / é uma distância tão enorme / que não pode medir-se a gritos. / Conhece a Giralda de Sevilha? /  De certo subiu lá em cima / Reparou nas flores de ferro / dos quatro jarros das esquinas? / Pois aquilo é ferro forjado. / Flores criadas numa outra língua. / Nada têm das flores de fôrma / moldadas pelas das campinas. / Dou-lhe aqui humilde receita, / ao senhor que dizem ser poeta: / o ferro não deve fundir-se / nem deve a voz ter diarréia. / Forjar: domar o ferro à força, / não até uma flor já sabida, / mas ao que pode até ser flor / se flor parece a quem diga.

João Cabral apregoa, à maneira do forrageiro de Carmona, o ofício do artista em forjar a matéria-prima de seu trabalho, no caso do poeta, a palavra, para a construção racional do poema.
Vocábulos do idioma espanhol como glorietasplazoletascorales de vecinosferia de abriladióscalleairegraciascazalla, são utilizados ao longo de toda sua obra.
No poema “Crime na Calle Relator”, do livro de mesmo nome, constituído de poemas narrativos, ou de histórias ouvidas pelo poeta, ele incorpora fragmentos de conversas em espanhol. É o relato de uma história autêntica, segundo o próprio João Cabral, que dá fala ao personagem:

Achas que matei minha avó?
O doutor à noite me disse:
Ela não passa desta noite;
Melhor para ela, tranqüilize-se.
À meia-noite ela acordou;
não de todo, a sede somente;
e pediu: Dáme pronto, hijita,
una poquita de aguardiente.
Hijita, bebi lo bastante
Vengo de echarme um siesta

Considerado por alguns críticos como um “poeta-pintor”, à maneira de Picasso, ele disseca o objeto a partir da forma exterior, penetrando em seguida na sua interioridade e nas relações estabelecidas com a realidade. Ambos trabalham para alcançar todas as formas do objeto tratado.
“Homenagem a Picasso”, e muitos outros poemas de Pedra do sono, foram inspirados em telas da pintura cubista. A introdução de “substâncias estranhas” próprias ao cubismo observa-se nas metáforas de O cão sem plumas. A analogia estabelecida entre a imagem da cidade, da rua e da fruta “rompe com o senso comum. São metáforas desdobradas várias vezes até que alcancem a concretude ou se tornem plásticas”.

A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Em Serial (1959-1961), observa-se o aspecto cubista na poesia cabralina. Vale reproduzir o excelente comentário de José Guilherme Merquior (1972):

Cubismo, porque essa poesia se torna plástica pelo visual, mas sobretudo pela correlação de planos, pela multiplicidade de sentidos, pelo contraponto de imagens cercando a coisa pelo sensível e pelo conceito, pelo físico e pelo humano. Correlação, em conseqüência, menos do que interpenetração. Está nela a origem do poema em série, do serial onde a caça ao objeto (pessoa ou coisa) se sucede nos flashes de vários ângulos, nos cortes, nos closes, que só a técnica flexível do “cameraman” consegue unir sem perda de fluidez.

Além das constantes referências e alusões aos processos construtivos da pintura de Picasso e de Gris, João Cabral desenvolve um estudo sobre a pintura de Joan Miró.
Enrique de SantiagoDe acordo com os biógrafos do pintor espanhol, ele utilizou todos os tipos de materiais na composição de suas obras. Em carta a Bandeira, datada de 17 de fevereiro de 1948, o pernambucano comentou o encontro com o pintor catalão:

Atualmente, esse problema da possibilidade de expressão numa seleção me obceca. Ainda há pouco tempo, reconheci toda a pintura de Miró, ou melhor, seu mundo, num pequeno museu que ele tem em casa, e onde agrupa desde esculturas populares até pedras achadas ao acaso na praia, pedaços de ferro-velho com uma ferrugem especial etc. É impressionante como tudo aquilo é Miró.

Propõe que o compromisso de Miró com o “novo” pode ser revelado, não por seu aprisionamento a pressupostos teóricos, mas por sua reflexão permanente acerca do processo de criação. “Em Miró, mais vale a luta contínua do gesto criador na procura de transcender os limites temáticos que a cristalização de formas e a profusão de cores”.
Ao final do estudo sobre a pintura de Miró, lembra que o pintor usa o adjetivo “vivo”, traço relevante para se entender o projeto de modernidade do catalão e que também está, constantemente, reiterado no discurso crítico e literário do poeta:

Na conversa de Miró, uma palavra existe: vivo, a meu ver muito instrutiva. Vivo é o adjetivo que ele emprega, mais do que para julgar, para cortar qualquer incursão ao plano teórico, onde jamais se sente à vontade. Vivo parece valer ora como sinônimo de novo, ora de bom. Em todo caso, expressão de qualidade. Essa palavra, a meu ver, indica bem o que busca sua sensibilidade e, por ela, sua pintura. Essa sensação de vivo é o que existe de mais oposto à sensação de harmônico ou desse equilíbrio, diante do qual nossa sensibilidade não se sente ferida, mas adormecida.
Nas palavras do pintor catalão:
Para mi, un árbol no es un arból (…) sino algo humano, alguém vivo. Un árbol es un personaje, sobre todo nuestros árboles, los algarrobos. Un personaje que habla, que tiene hojas. Inquietante incluso.

“Vivo”, assim, pressupõe uma postura reflexiva do artista e a sua luta obscura e lenta pelo dinamismo na pintura. Esse dinamismo proporcionaria a João Cabral a subversão da linguagem e a sua constante renovação. Tal procedimento aproxima o pintor do poeta, uma vez que a composição poética cabralina, em todas as suas fases, está ligada à reflexão metalinguística, de desdobramento das imagens apresentadas, repetição de palavras, da reincidência ao mesmo tema,
Um aspecto que chama a nossa atenção na de Miró é a repetição da referência à paisagem de Mont-roig, um povoado de Tarragona, situado a 140 km de Barcelona. Suas primeiras obras apresentam retratos de personagens de sua convivência, bem como paisagens de sua terra natal, principalmente paisagens montanhosas de Montroig: “Es la tierra, la tierra: algo más fuerte que yo. Las montañas fantásticas desempeñan un papel en mi vida, y el cielo también. Es el choque de esas formas en mi espíritu más que la visión. En Mont-roig, es la fuerza lo que me alimenta la fuerza (…) Mont-roig es el choque preliminar, primitivo, al que vuelvo siempre. Fuera, todo se mide en relación com Mont-roig”.
Esse vínculo forte com a terra de origem também é percebido em todo o discurso cabralino. O poeta chegou a declarar; “o homem só é amplamente homem quando é regional. Se me tirar a estrutura ideológica do pernambucano, eu nada sou”.
A mulher é imagem permanentemente desdobrada pelos dois artistas. Em Miró é vista, juntamente com a imagem da estrela e pássaro, personagens-arquétipos do pintor espanhol. Em João Cabral, a mulher primorosamente objetivada em fogo, casa, gaiola, poço, barcaça, “misto de barco e casa”.
Por último, queremos destacar a importância do flamenco, do universo cigano e do canto andaluz que traz a agudez da seta, da faca, do “silêncio a pino” que fere, como eles, o leitor da poesia de João Cabral. Vejamos o poema “A palo seco”:

Se diz a palo seco / O cante sem guitarra / O cante sem; o cante; / O cante sem mais nada; // Se diz a palo seco / A esse cante despido; / Ao cante que se canta / Sob o silencio a pino // O cante a palo seco / É o cante mais só / É cantar num deserto / Devassado de sol // A palo seco é o cante / De grito mais extremo: / Tem de subir mais alto / Que onde sobe o silêncio

João Cabral de Melo Neto viveu na Espanha, ao longo de sua careira diplomática, um período total de doze anos, intercalados entre a Catalunha e a Andaluzia.
O reconhecimento de sua profunda identificação cultural é muito forte entre os intelectuais espanhóis e foi oficializado, enquanto o poeta ainda estava vivo, com a comenda da Grã Cruz da Ordem de Isabel, a Católica, concedida em 1992 e entregue pessoalmente pelo embaixador espanhol, na Casa da Espanha, Rio de Janeiro.

Selma Vasconcelos (Brasil, 1942). Professora da Universidade de Pernambuco, autora do livro João Cabral de Melo Neto – Retrato falado do poeta (2009) – Prêmio Academia Pernambucana de Letras - Ensaio 2010. Contato: selma_vasconcelo@uol.com.br. Página ilustrada com obras de Enrique de Santiago, artista convidado deste número de ARC.




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