sábado, 22 de novembro de 2014

THOMAS RAIN CROWE | Nan Watkins: Yvan Goll e a erva mágica da poesia






Nan WatkinsNan Watkins. Nascida e criada no Condado de Bucks, Pensilvânia, EUA, Nan Watkins é formada pelo Oberlin College e pela Universidade Johns Hopkins, com estudos complementares na Universidade de Munique e n Academia de Música de Viena. Seus interesses abrangem música, tradução literária e viagens. Teve textos publicados em diversos periódicos, inclusive o Asheville Poetry Review, o International Poetry Review, Beloit Poetry Journal e o Shearsman (UK). Seu interesse em Yvan e Claire Goll levou ao ensaio "Twin Suns," publicado na França no catálogo da retrospectiva do 50º aniversário do trabalho de Yvan Goll, e às traduções dos poemas de Claire Goll em 10,000 Dawns: Love Poems of Yvan & Claire Goll (White Pine Press, 2004). Seu diário de viagem East Toward Dawn: A Woman's Solo Journey Around the World foi publicado pela Seal Press in 2002. Nan vive e trabalha na Serra de Blue Ridge, Carolina do Norte, EUA. [TRC]

TRC | Vamos começar pela inclusão, por Floriano Martins, do trabalho de Yvan Goll em sua antologia a ser publicada em breve sobre o Surrealismo Americano, e pela tradução por Márcio Simões do livro Fruit From Saturn, de Goll's, que irá publicar através de sua editora, a Sol Negro Edições. Sei que você manteve contato com os dois a respeito desses projetos. O que pode nos dizer sobre as conversas que teve com Floriano e Márcio?

NW | Gostei muito de trabalhar com Floriano Martins e Márcio Simões em seus esforços para expor algo do trabalho de Yvan Goll ao público brasileiro. Floriano pediu que eu escrevesse a introdução à obra de Goll para sua antologia. Embora Goll tivesse nascido em 1891 na região contestada da Alsácia e recebido cidadania alemã quando jovem, suas raízes judaicas mais tarde lhe negaram essa cidadania e ele fugiu para os Estados Unidos em 1939, lá ficando até 1947. Durante o exílio, Goll adquiriu cidadania americana e, como tinha publicado seu próprio Manifesto Surrealista em outubro de 1924, no mesmo mês em que André Breton publicou o seu, a poesia surrealista de Goll se qualificava para uma antologia do surrealismo americano.
Fiquei satisfeita em saber que Márcio estava traduzindo um dos livros de poesia de Goll, Fruit From Saturn, que escreveu em inglês e publicou em Nova Iorque, em 1946. É um trabalho tardio, escrito depois que Goll soube que estava morrendo de leucemia. No livro, ele clama não apenas contra sua própria sentença de morte, mas também contra as bombas atômicas americanas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, ao mesmo tempo que mergulha nos mistérios esotéricos da Cabala e da astrologia. Escrevi um breve esboço biográfico sobre Goll para a tradução de Márcio, que também será publicada em breve.

TRC | O que pode nos dizer a respeito de quem é Yvan Goll e do porquê de seu interesse para esses editores? Por que ele é de interesse aos brasileiros?

LucebertNW | Yvan Goll, um dos maiores poetas líricos da primeira metade do Séc. XX, escrevia tanto em francês quanto em alemão. Sua curiosidade insaciável e sua visão de mundo abrangente o levaram a investigar e participar tanto do expressionismo alemão quanto do surrealismo francês. Sua obra ampla e variada inclui poesia, teatro, romances, textos musicais e traduções.
Embora Goll tenha passado a maior parte da vida na Europa – primeiro mudando-se para a Suíça ao irromper da Primeira Guerra Mundial, depois vivendo e trabalhando em Berlim antes de se estabelecer em Paris – também deixou sua marca no Novo Mundo, nas Américas. Sua visão global já era evidente em sua antologia de 1922, Cinq continents: Anthologie mondiale de poésie contemporaine par Ivan Goll.
Com efeito, já no primeiro livro de poesia que Goll publicou, surgia o poema "Brasilianerin". Duas outras de suas primeiras publicações, que escreveu na casa dos vinte anos, eram uma tradução das cartas de Walt Whitman nos campos de batalha da Guerra Civil Americana e um poema ardente, "Der Panama-Kanal", que representava a maravilha industrial que era o Canal e as desprezíveis condições dos operários durante sua construção. Goll também visitou Cuba no começo da década de 1940 e deixou um ensaio, "Cuba, corbeille de fruits", e um poema, "Vénus Cubaine" publicados em Nova Iorque, em 1946.
Outra ligação que pode interessar aos brasileiros é o fato de que a confidente e musa de Goll por muitos anos, a poeta e pintora austríaca Paula Ludwig, deixou a Europa devastada pela guerra em 1940 e migrou para o Brasil, onde viveu e trabalhou entre os artistas de São Paulo e do Rio de Janeiro antes de retornar à Europa em 1953. Durante a guerra, ela e Goll se separaram e nunca mais se encontraram. Um dos maiores ciclos de poemas de amor que ele escreveu, Malaiische Liebeslieder Chansons malaises foi escrito para ela tanto em alemão quanto em francês.

TRC | Sabemos que Goll teve influência sobre o movimento surrealista francês, mas ele foi muito mais do que isso. Pode nos contar o que a atraiu para Goll e seu trabalho e por que dedica tanto do seu tempo ao esforço de traduzir sua obra do Alemão para o inglês?

NW | Acho que deve ser, em parte, pelo menos, o fato de que a mente cosmopolita de Goll o levou a tantas abordagens diferentes sobre a arte e a vida, ao fato de que ele não foi reclamado e promovido por qualquer grupo específico. Com isso, seu trabalho ficou pouco conhecido, especialmente no mundo anglófono. Onde quer que estivesse, sempre se movimentava entre os artistas e escritores do momento, pesquisando e contribuindo, recebendo conhecimento e dando o próprio em troca. Mas a vida e a obra de Goll são desconhecidas do púbico contemporâneo. Quero ajudar a dar nova vida ao seu trabalho, especialmente além das fronteiras da Europa. Suas ideias iluminadas me atraem.
Começa assim o Manifesto Surrealista de Goll: "A realidade é a base de toda a arte de monta. Sem ela não há vida, não há substância. Realidade: é o solo sob os nossos pés e o céu sobre as nossas cabeças". Durante a vida, Goll expandiu sua visão, que passou a abranger todo o cosmos, a questionar o ímpeto industrial destruindo o mundo natural, a registrar seu espírito nômade e questionador nos ciclos poéticos Jean Sans Terre (“João Sem Terra”) Goll ficou do lado do povo, não dos exploradores do planeta e da humanidade.
Seu pacifismo o levou a manifestar-se precocemente contra a guerra no Requiem für die Gefallenen von Europa. Sua peça satírica Methusalem (em alemão) é uma acusação contra o consumismo e a falsidade da vida burguesa. Sua Élegie de Lackawanna é um amoroso lamento pelas tribos indígenas americanas perdidas, que foram expulsas exatamente da terra onde vivia, no Brooklyn, Nova Iorque, em seu exílio durante a Segunda Guerra Mundial. 

LucebertTRC | A maioria dos tradutores tem uma certa maneira de abordar a tarefa de trazer um trabalho de uma língua para outra. Você tem alguma fórmula ou método para trabalhar em algum projeto – especialmente na tradução do livro Dreamweed, de Goll?

NW | Dreamweed é uma obra-prima tardia de Goll. Depois do diagnóstico de leucemia incurável enquanto ainda vivia em Nova Iorque, ele começou a imaginar uma planta estranha que chamou deTraumkraut, ou Dreamweed (Erva-dos-sonhos). É significativo que ele a tenha imaginado em alemão e não em francês. Até ali, quando não podia mais publicar em alemão depois da ascensão dos nazistas, publicava tudo em francês. Mas quando precisou enfrentar a ideia da própria morte iminente, precisou expressar-se em alemão.
Minha abordagem à tradução do alemão para os públicos anglófonos inglês e americano foi a de habitar o mais profundamente que pude a língua alemã de Goll e o pensamento por trás de suas palavras. Meu objetivo era criar um poema em inglês que o próprio Goll pudesse ter escrito. Isso parece ousado, mas não sei de que outra maneira me expressar. Ao mesmo tempo que procurava pelas palavras certas, estava procurando pelo espírito profundo, pela raiva, pelo desespero, pela graça salvadora do amor que se fundiram para fazer dos poemas algo tão belo. Enquanto procura pela palavra certa, a tradutora precisa ir além das palavras e entrar no espírito da obra.


But pink almond trees
Grow from your heart
And larks chirp in your raspberry eyes

[Amendoeiras carmim
No seu coração
Cotovias em seus olhos framboesa]

O todo de um poema de Goll é maior do que a soma de suas partes. Como Goll escolheu o alemão como ferramenta para esses poemas, procurei usar em inglês o máximo possível de palavras germânicas, em vez das de origem latina.
Dreamweed começa com poemas que tratam da agonia física que a doença fatal impõe a Goll. À medida que o livro avança, desloca-se para memórias de amor, de imagens de sofrimento no Antigo Testamento, como nos poemas "Job" (Jó), e, finalmente, para o cosmos, como se, na pele de Jean Sans Terre, ele soubesse que todo o universo é seu território. O livro conduz o leitor em uma grande jornada da realidade tangível terrena para a majestade despercebida da imaginação do poeta entre as estrelas.

Beloved, your hanging lamp of mourning
Beams to me through outer space
Like the reddened eyes
Of deeply anguished stars

[Amada, teu lustre de lamento
Chega a mim vindo do espaço
Olhos injetados
De angústia das estrelas]

TRC | Acho que os leitores da Agulha gostariam de saber algo dos acontecimentos importantes na vida de Goll referentes à criação dos poemas da coleçãoDreamweed e por que ela é considerada tão especial no corpo geral da obra do autor.

NW | Quando Goll e sua esposa deixaram Nova Iorque e voltaram a Paris, em 1947, ele precisou suportar longos períodos de hospitalização para obter um remissão pelo menos temporária da leucemia. Durante essas internações, ele sentia muita dor e foi tratado com drogas. É de se imaginar que esse estado alterado tenha expandido sua visão enquanto ele rabiscava trechos de poemas em quaisquer papéis que pudesse alcançar.
LucebertQuando pôde retomar a vida em seus últimos anos, Goll permaneceu ativo, publicando e promovendo seu trabalho. Uns poucos meses antes de morrer, esteve numa conferência da PEN em Veneza e, a caminho de casa, em Paris, fez uma parada na famosa estação de rádio Beromünster, perto de Zurique, e gravou alguns dos poemas que escrevera recentemente. Anunciou, "Agora vou ler poemas de meu livro mais recente, ainda não publicado, Das Traumkraut." Isso foi no final de outubro de 1949. No começo de novembro, o jovem poeta Paul Celan visitou Goll em Paris e os dois travaram uma amizade cordial. Quando Goll foi para o Hôpital Américain de Neuilly sur Seine, perto de Paris, em 13 de dezembro, Celan foi um dos muitos poetas e artistas que visitaram o hospital e ofereceram seu sangue para que o poeta moribundo pudesse completar sua última obra. Foi um tributo significativo a alguém que trabalhara tanto durante a vida para promover o trabalho de outros. Sua esposa, Claire, estava com ele quando morreu, em 27 de fevereiro de 1950. O túmulo de Goll fica em frente ao de Chopin no Cimetière du Père Lachaise, em Paris. Goll não chegou a ver a publicação de Traumkraut, mas o livro saiu pela Limes Verlag, de Wiesbaden, Alemanha, em 1951.
Ao longo dos anos desde a morte de Goll, poetas de todo o mundo descobriram e reverenciaram os diversos poemas de Traumkraut, mas o livro como um todo nunca surgiu em inglês. Espero que a edição bilíngue publicada nos EUA em 2012 pela Black Lawrence Press permita que os poetas e todas as pessoas do mundo anglófono possam experimentar em primeira mão uma das obras primas de Goll.

TRC | Olhando para a vida e obra de Goll, fica claro que era uma personagem internacional. Pode nos falar um pouco desse aspecto de sua biografia e bibliografia?

NW | Quando se lê a respeito do trabalho de outros artistas da primeira metade do Séc. XX percebe-se que a vida de Goll entrelaçou-se com a de muitos deles. Ao publicar o próprio trabalho e o de outros poetas, tanto em Paris quanto em Nova Iorque, ele alistou muitos pintores para ilustrar os livros: Chagall, Tanguy, Dali, Picasso, Arp, Grosz, Delaunay. Chagall ilustrou diversos dos volumes de poemas de amor de Yvan e Claire, inclusive com oito desenhos para as edições originais em francês e alemão e para a tradução inglesa de 10,000 Dawns: Love Poems of Yvan & Claire Goll, publicado nos EUA pela White Pine Press em 2004. Essas amizades íntimas com artistas perduraram por toda a sua vida.

Lucebert

Goll procurou novos originais enquanto trabalhava para a editora suíça Rhein Verlag; entre eles estava a primeira tradução para o alemão de Ulysses deJames Joyce (por George Goyert). Durante esse período, Goll trabalhou com Joyce e Samuel Beckett para traduzir para o francês parte do capítulo Anna Livia Plurabelle, de Finnegans Wake. Entre as outras traduções de Goll do alemão para o francês está a do romance de Stefan Zweig, Le Brésil, terre d'avenir (Brasil, País do Futuro). Enquanto vivia em Nova Iorque, trabalhou e formou amizade com muitos poetas e escritores americanos, como William Carlos Williams, Henry Miller, Kenneth Patchen e Philip Lamantia, cujo trabalho apareceu na revista Hemispheres, de Goll.
Seria necessária toda uma vida para digerir tudo o que Goll escreveu e para seguir sua ágil carreira como o poeta João Sem-terra ao redor do planeta. Que o trabalho que Floriano Martins e Márcio Simões e nós mesmos estamos fazendo para traduzir e publicar o trabalho de Goll inspire por muitos anos novas gerações de todo o mundo. Vamos encerrar a entrevista cedendo a última palavra a Yvan Goll. Eis um poema de amor que escreveu para sua mulher um mês antes de morrer:

Did I pluck you in the gardens of Ephesus
The curly hair of your carnations
The evening bouquet of your hands?

Did I fish for you in the lakes of dream?
An angler on your meadows’ shores
I threw you my heart for food

Did I find you in the dryness of the desert?
You were my last tree
You were the last fruit of my soul

Now I am wrapped in your sleep
Bedded deep in your repose
Like the almond in its night-brown shell

[Terei te visto nos jardins do Éfeso
Os caracóis das tuas flores
O buquê noturno das mãos?

Terei te pescado em lagos de sonhos?
Nos teus prados lançado o anzol
Meu coração foi tua isca

Encontrei-te na secura do deserto?
Tu, última árvore
Fruto final da minha alma

Estou envolvo em teu sono
No leito do teu repouso
Como a amêndoa em sua casca escura]


Thomas Rain Crowe (Estados Unidos, 1949). Poeta, tradutor e editor-chefe da New Native Press: www.newnativepress.com. Nos anos 1970 foi diretor do Festival Internacional de Poesia de San Francisco e da revista e editora Beatitude. Autor de livros como Water From The Moon (1995), The Laugharne Poems (1997), e Poems From Zoro’s Field (2005). Atualmente organiza, juntamente com Floriano Martins, uma antologia de poetas vivos dos Estados Unidos, para La Cabra Ediciones, do México. Contato: newnativepress@hotmail.com. Tradução de Allan Vidigal. Contato: allan.vidigal@terra.com.br. Página ilustrada com obras de Lucebert (Holanda), artista convidado desta edição de ARC.



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