segunda-feira, 9 de março de 2015

FLÁVIO R. KOTHE | O neo-surrealismo de José Maria








José Maria
O tronco de uma árvore sem galhos nem folhas, sem transcendência nem esperança, mas com um olho no centro, a mirar o espectador, como a perguntar-lhe: o que tem feito o homem com a natureza?
Uma ave de rapina ataca um corpo exposto, como se mais uma vez Prometeu fosse acorrentado por querer ajudar os homens; um livro queima no ar, como se se extinguissem os bons espíritos numa era em que a terra se mostra árida e seca, quando a bondade mal sobrevive, quase se extingue, sob a garra da ganância.
O contorno de uma figura de Rafael perde o rosto no azul do infinito, enquanto a mão esquerda segura uma corda que liga ao transcendente uma pomba da paz, sem cabeça, pousada num cesto de frutas. À direita da figura, o corpo de um homem, cuja cabeça é apenas uma maçã rachada, cujo topo fumega como se fosse um vulcão. Livros se espelham a cada lado, porém fechados, sem dizerem o seu dizer.
Um pobre menino flutua no ar, acima do campo, enquanto a sua caixa de engraxate deixa cair letras, números, pedaços de melancia, todas as pequenas realidades e sonhos.

José Maria    
      
José Maria

Assim vai se formulando, de quadro em quadro, a reflexão neo-surrealista de José Maria Machado, inventando-se uma realidade para definir-se diante dessa que o cotidiano lhe impõe aos olhos. Ele não quer, porém, inventar mais uma vez o já inventado: não se trata de requentar Dali aqui, com uma cabaça para conferir-lhe uma pitada de cor local. Isto seria atestar, mais uma vez, a dependência cultural, com o atraso e anacronismo típicos dos imitadores, a fazerem de conta que é arte a mera cópia servil e menor do que já foi consagrado na metrópole de preferência.
Usar o termo surrealismo apontaria para um movimento de natureza inclusive política. Embora aqui se queira atuar na sociedade com uma perspectiva crítica, não se está em Paris, prensado entre duas guerras mundiais. Por isso, sequer se adota o nome. Não se quer mais uma vez macaquear a Europa, com atraso. Ele serve apenas para lembrar uma técnica e um estilo, numa perspectiva que não pretende requentar, imitando, na colônia, o movimento francês pretérito. Trata-se de assumir a pós-modernidade como livre utilização do patrimônio legado por artistas do passado, sabendo não só que é um nome problemático, mas que não resolve o gesto de criar uma obra original, que valha e se defenda por si.

José Maria          

José Maria         

Não, o que José Maria quer é o direito de expor suas preocupações e visões, expondo com os pincéis as intuições de uma mente moldada entre o Ceará e a Índia. Mais que um pós-modernista do cerrado, com os pés na terra de Sobradinho, em contato com o povo, tem-se uma sensibilidade aberta para a imensidão, para a noite que se estende entre os morros ao norte de Brasília, prenunciando visitas de estranhas luzes, que se adensam e condensam em cristais. Aqui e ali lampejam tons dourados, que encenam a nostalgia de um mundo melhor e que nunca esteve conosco: registrado em cores e formas, torna-se presente, como a querer tocar-nos, a levar-nos à superação de nós mesmos, a lembrar que também podemos, com arte e reta intenção, ir além de nosso tempo e nossa precária condição. Nós não podemos saber se iremos lograr essa transcendência, mas podemos ter quase a certeza, de que a arte de José Maria há de testemunhá-la, pois é o espaço que lhe está reservado.
Flávio R. Kothe (1946). Contista, poeta, ensaísta e tradutor. Professor titular de estética na Universidade de Brasília. Publicou recentemente três livros com inéditos do espólio de Nietzsche. É autor da revisão crítica da literatura brasileira em quatro tomos: O cânone colonialO cânone imperialO cânone republicano I e II. Contato: frkothe@unb.br. Página ilustrada com obras do artista José Maria (Brasil).

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