sábado, 19 de setembro de 2015

CRUZEIRO SEIXAS | O Surrealismo segundo Cruzeiro Seixas


Dos que lerem este texto [1] alguns vão por certo achar que falo excessivamente de mim; mas eu julgo que é através de nós, que de fato falamos dos outros.
E quanto à pintura, afigurasse-me que ela envelheceu muito rapidamente; Bosch, Monsu Desidério, Matias Grunewald, Turner ou Chirico, parecem-me muito mais atuais do que muita pintura atual. O mesmo direi da pintura que vi em dolmens da região de Viseu, ou nas portas das cubatas dos pescadores na ilha de Luanda.
Falar desta insatisfação tem talvez a ver com a procura de desrazões para esta dissonância que hoje nos atravessa. Por exemplo, esta prática sistemática das especializações não esconde e aliena o todo? Só o todo pode ser coerente; esquecemos a grandeza do todo quando o desmembramos em mil pedaços. É talvez necessário saber menos, mas adivinhar mais. Ou então admitir que, quanto mais nos aproximamos, mais longe estamos de chegar. A poesia é talvez a única chave possível, para uma fechadura que não há.
Desde há alguns anos a esta parte fui abandonando a pintura, mas não deixo de por a hipótese de que tenha sido ela a abandonar-me a mim. A verdade é que o nosso relacionamento nunca foi fácil, durante um convívio começado nos distantes anos 1937/1940. Lembro que na Escola António Arroio chumbei durante três anos em desenho, e não sei ao certo se isso aconteceu por eu ser irrequieto, ou por evidente inabilidade. O que sei é que nunca aprendi nada com professores; quando enfim comecei a ter notas altas em desenho, foi por que ao meu lado desenhava um colega de que hoje não se fala, o António Pimentel Domingues (filho do escritor António Domingues), e era a olhar para o trabalho que lhe saía naturalmente das mãos que aprendi o que aprendi. Quanto a todo o resto, fiquei autodidata. Por vezes lastimo não ter aprendido inglês ⎼ mas não mais do que lastimo não ter aprendido árabe, russo ou quimbundo.
A minha vida sempre andou por si própria. Eu pouco fiz. E se isso é de certa maneira desconfortável, pois me pergunto quem afinal viveu a minha vida, por outro lado sinto a passagem de uma qualquer magia. Sou de fato muito mais escurecido de metafísicas do que iluminado de humor. Método nunca o tive; quando começava a desenhar ou pintar, muito raramente tinha uma ideia nítida do que ia fazer. Esquecia ensinamentos e teorias, não pensava em pintura, era o amor, a morte, o desespero, as pessoas que conheço e principalmente as que desconheço, o que me tomava. Uma pedra, um parafuso, um copo ou uma nuvem, parece dizerem-me sempre mais ou tanto do que me dizem uns e outros. Os desenhos, as pinturas, as colagens e os objetos que fiz, não estiveram nunca ligados a um qualquer tema; o que tinha presente no ato de desenhar ou pintar (como quando não desenho ou não pinto), é a totalidade do mundo que posso imaginar. E por certo os meus sonhos e falhanços, tudo o que me pode dar a medida do homem, e da sociedade que criou. No entanto, a minha frágil mensagem está feita… e chego a invejar os que nela encontram alguma satisfação para as suas fomes. Acho que nesta minha passagem pelo mundo não foi de fato possível perfazer uma obra. Tratou-se antes de uma espécie de reconhecimento do terreno. Voltarei talvez para tentar ultrapassar a dor, o espanto, a confusão, que desta vez me tomaram.
Nada disto são coisas para serem compreendidas ⎼ e de resto detesto o que compreendo. Mas se há uma experiência em que nada se aprendeu, essa é a minha experiência. Cada um dos meus desenhos é para mim, que nada sei de matemática, um problema matemático, não resolvido, mas apenas equacionado. Só passados uns 15 anos sobre a criação do ser que é na parte inferior homem e na parte superior cavalo, me apercebi de que Magritte tinha feito o mesmo em relação a outro ser, que é na parte inferior mulher, e na parte superior peixe. É evidente que num caso e no outro isto pode parecer coisa pensada, inversão simples e fria do fauno ou da sereia, mas no meu caso, repito-o, foram necessários muitos anos para me aperceber dos parentescos possíveis. E quem me acreditar, de certa forma está a colaborar na invenção poética destes seres, que podem muito bem ser nossos distantes antepassados, ou nossos próximos descendentes. Mas sei que há pessoas tão infelizmente desgraçadas que quando falam de cabelo falam de cabelo, quando falam de água falam de água, quando falam de si falam apenas de si.
A pintura que fiz foi tanto quanto possível indiferente ou mesmo hostil à arte, ao mercado, a elogios. E nela não afirmo nada, antes duvido, pergunto, deponho, glorifico a dúvida, e principalmente presto testemunho. O desejo mais algo do meu trabalho é justamente que ele seja um testemunho. Naquilo que desenho ou pinto, a outros seres ofereço o amor tão excessivo como intenso, que aqui foi recusado. Procuro outros encontros, narro locais de desencontro, verifico a insuficiência das ferramentas que possuo, a fragilidade do vulcão, a vulnerabilidade do tigre. Quero olhar o dia a dia nos olhos, insatisfeito, como se olham os amantes. Na verdade todas as coisas têm asas, e sexo…
E há ainda as estórias da história: o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian tem umas 30 obras da minha autoria, que na sua maioria não me foram adquiridas a mim diretamente, e que raramente são mostradas. Pode-se dizer que o CAM existe nas caves!
Como estória das histórias quero acrescentar ainda que, ao meu profundo otimismo chamam as pessoas pessimismo, como chamam modéstia exemplar à extrema vaidade minha de nada esperar dos meus contemporâneos. Daqui a 50 ou 100 anos é que se vai saber a parte possível de verdade existente no que fiz.
Reconheço que erro muito.Imagine-se que compreendo mal os que entrar para o atelier às primeiras horas da manhã e dele saem ao fim da tarde, como qualquer funcionário exemplar. A minha admiração maior vai para o D'Assumpção que teve propostas de algumas da melhores galerias da Europa, e continuou a pintar dois ou três quadros por ano. O meu atelier foi a rua.
Mas ninguém por certo exige de mim justiça, pois espero que seja evidente que não acredito nela. Tomo a vida como tomava o óleo de fígado de bacalhau da minha infância.
Depois disto o humor que persiste é realmente pouco, mas, mesmo assim posso dizer que antevejo a minha "Chávena com a asa por dentro" ao centro do Terreiro do Paço, mais tarde ou mais cedo.
Que país este! Lembro-me do pintor António Soares chamar ALNADA ao Almada! E agora mesmo, vejo todos tão contentes com o seu fado! Inventaram um parafuso que se aparafusa sozinho, ou acabaram um poema genial, que lhes dá a ilusão de celebridade das celebridades. Em cada minuto aperfeiçoam a grande ratoeira. Já não riem com a boca, mas sim com os cotovelos, com a gravata, com as unhas dos pés. Até a torre de Belém se mascarou há pouco de intervenção de Christo! Os mais inteligentes dizem mesmo que não acreditam nas multidões… salvo quando essas multidões os glorificam. A vida, para esses é um contínuo orgasmo, e a verdade é que eu também fui apanhado por esta tristíssima celebridade portuguesa. Nos labirintos que inventei, eu próprio me perdi. A minha loucura endoideceu, e assim passo os meus dias a tentar conciliar o absurdo com o absurdo. De certa maneira sinto-me prisioneiro do meu próprio triunfo, por mais insignificante que ele seja. Mas não me satisfaço com congressos, mesas redondas, colóquios, reuniões etc. etc. que são estendal de erudição acadêmica, e deixam por fazer o que de fato é urgentíssimo fazer-se. FAZER-SE, NÃO FALAR-SE.
E volto às histórias da história. Devido às carências de casa de meus pais, e do meio, alistei-me na marinha em 1949. O apelo de África já vinha da infância, em que se falava lá em casa, com lágrimas abundantes, na morte por biliose de um tio que para lá tinha partido em louca aventura, no tempo em que para África só iam os condenados, e os loucos. Nos portos em que toquei na primeira viagem, de São Tomé a Goa, e de lá a Timor e Macau, o espetáculo nos cais era ainda o da escravatura; gente batida no fundo dos porões. Em Angola, os colonos designavam por graça os trabalhadores da estiva como "voluntários à corda", pois alguma vezes ainda vinham amarrados uns aos outros…
Via eu tudo isto com os olhos de alma bem abertos, de espanto, e de raiva. Não precisei de fazer a guerra, para aprender onde estava a razão…
Em Angola me fixei, e percorri-a apaixonadamente. África atraía-me, quando era Paria que atraía intelectuais e artistas. A verdade é que parece que esses se enganaram, e que é grave o seu erro. O futuro que então teceram, infelizmente era já passado. Na verdade o Chiado não me tinha deixado saudades por aí além, sendo para o meu gosto demasiadamente literário e artístico. Tinha, isso sim, saudades de dois ou três amigos… que infelizmente, afinal era do Chiado e do seu miniteatro que gostavam muito…
Em Angola, os mais variados trabalhos e os mais mal remunerados, foram pretexto para incursões ao "interior", só com um ajudante geralmente de cor, em carripanas de ocasião, por inimagináveís caminhos de lama, de areia, cortados por extensíssimas queimadas, sinuosos leitos de rios com caprichosas jangadas, e aquilo que se chamava pomposamente hotéis, e onde os lençóis não eram mudados desde o tempo de Paulo Dias de Novais.
Estas viagens eram para mim a plenitude das plenitudes; em todos os momentos livres recolhia objetos etnográficos, tão belos e significativos como as longas negociações que acompanhavam a sua aquisição. A alma daquela civilização (porque de uma civilização se trata…) ficou a fazer parte, a mais profunda, de mim, mas nego-me a posições políticas, tão espetaculosas como transitórias.
Estas viagens (como a maior parte dos livros que li…) apenas vieram confirmar o que eu já sabia. Realizei em Luanda duas exposições que levantaram dos maiores movimentos de opinião (de que de resto Cesariny dá notícia e apresenta alguns documentos, na sua A intervenção surrealista, editada pelo Ulisseia em 1966); e porque uma dessas exposições era colocada sob a evocação do poeta negro Aimé Cesaire, fui chamado à PIDE. Isso se repetiria quando mais tarde, funcionário do Museu de Angola, lhe procurei dar alguma vida organizando um salão de pintura, onde pendurei um dos primeiros Malangatanas. Um "preto" num salão de pintura, era coisa inadmissível então!
É de fato fácil estabelecer uma cronologia desta minha consciência e paixão. A minha primeira exposição foi em 1953. É em 1950 que o livro de Luandino Vieira provoca o escândalo que provocou. Só em 1974 Spínola publica Portugal e o futuro; e até abril do mesmo ano morreu gente que não sabia porque morria…
Quando me apercebi que tinha que pegar numa arma contra brancos ou contra pretos, foi com enorme tristeza que precipitadamente regressei à Europa.
Este texto ainda interessará alguém? Há tanto para dizer, que desconfio da fartura. E pintar devia ser, como o assassínio, uma atividade proibida.
Quando veio o 25 de abril para mim a revolução já estava feita há muito, e não me tinha dado a satisfação desejada, pois a revolução possível sou eu mesmo, com todos os meus limites.
Por outro lado, quando vemos a obra de um Picasso ou de um Brauner, por exemplo, reconhecemos o encontro com o Neolítico, com Creta, com a Mesopotâmia, com os Coptas, com a Oceania, com os Astecas, com os Esquimós, com África. Matisse, Picasso ou Brauner, parece não terem referido a carga mágica dessas artes, mas apenas o seu lado estético; no entanto, esse encontro, julgo necessário ter a coragem de o tomar como uma mensagem de retorno. Por mim, o que eu queria era SABER O QUE SABIAM OS SELVAGENS, no que de resto estou bem acompanhado por Antonin Artaud, por Lévi-Strauss, e lá muito para trás por Albert Dürer quando, em 1520, escreveu isto: "J'ai vu les choses qu'on a rapporttés au roi, du nouveau pays de l'or; toutes sortes d'objets étonnants à divers usages, bien plus beaux que tout ce qu'on avait déjà vu. De ma vie je n'ai rien vu qui m'ait fait autant de plaisir. Ce sont des objets d'art étonnants, et j'ai étè frappé du génie étrange des hommes de ces pays lointains". [2] Ainda hoje algumas pessoas, muito responsáveis, julgam ingênuas, toscas, sem técnica ou sem beleza as obras a que me venho a referir, sem na verdade compreenderem que se trata de uma opção civilizacional. A mim cada vez mais me atrai essa incapacidade de traçar uma reta ⎼ ou seja, o tentar adivinhar o sentido de incapacidade.
Evidentemente que, depois de tudo o que ficou dito, fica tudo por dizer. Aquilo a que se chama amor ou vida sexual, é terreno onde as verdades se odeiam entre si. Sou eu que sou igual às personagens de Bosch, ou são os outros? Ouvir dizer ao ouvido AMO-TE é ainda muito mais emocionante (é preciso confessá-lo) que ouvir gritar lá fora a palavra LIBERDADE…
Nunca fui capaz de saber se, no "ménage à trois" imaginário e ideal que ocupou grande parte da minha vida, a terceira pessoa presente era Deus ou o diabo. Talvez algumas vezes, os três, nos tivéssemos encontrado sobre o mesmo leito. Separar a alma do corpo é que parece trabalho criminoso. E aflige-me a contraditória atitude dos homossexuais, e dos "artistas", que querem ser reconhecidos por uma sociedade que condenam! A propósito, lembrarei Camões, quando diz aquilo que a maioria das pessoas ainda hoje dirá: "do amor não vi senão breves enganos…"
Mas, apesar do que digo e do que espero que adivinhem, doidos por certo não o somos nós: doido é o por do sol, o raio, a rosa, o capricho silencioso das pedras etc. etc. Doido varrido é o luar.
Deverei dizer ainda que conheci gente em que o sexo era muito mais inteligente que o cérebro? Mas nada do que não tenha mistério me pode interessar; o mistério que persiste em cada corpo que amamos, e o torna maior que o universo, mais agitado que o mar, mais azul que o céu. O corpo é a paisagem que a moldura não contém. Aos 70 anos, parece-me que os meus olhos foram ainda mais ávidos de beleza que o meu corpo, que o foi tanto.
Incrível a quantidade de caminhos que há para nos levar a sítio nenhum! E aqui surge a pergunta que me parece inevitável hoje; como se faz amor com um marciano?
Quero lembrar ainda André Breton, quando diz: "l'amour physique c'est la moitie du plaisir". [3]
Os que querem agarrar com ambas as mãos o IMPOSSÍVEL não se apercebem que o impossível acontece todos os dias a seu lado.
E por aqui chegamos à SOLIDÃO, que tanto me tem acompanhado. Ocorre-me perguntar se não amarei eu afinal loucamente a solidão, que tanto odeio. Confesso que, não poucas vezes, a minha vida segue quase independente de mim.
Mas a natureza parece-me agora, por vezes, tão exausta quanto eu o estou; as árvores, o mar, a luz, estão exaustos, perderam convicção, parece-me apenas cumprirem uma penosa obrigação. Será esta solidão o preço a pagar pela liberdade possível, de que usei e abusei? Se gostei, não sei; lembro-me de Fernando Pessoa que diz "…como eu gostava de gostar…" Mas quando me passeio junto ao mar, não posso hoje evitar a sensação de que ele me pede a chave de sua prisão. No entanto, a solidão é muito útil, pois ali se descobrem coisas que não se sabe o que fazer com elas; é como um puzzle que nunca desse certo. E mesmo inúteis a um canto, essas coisas informes esperneiam, berram, estrebucham, cantam como a sereia da fábula, dia e noite.
Quando morrer, sei que vou ter muitas saudades do sol, das cores das coisas, das luzes das cidades, da enganadora beleza das pessoas, mas agora, ainda vivo, tenha cada vez mais saudades do não ser.
O dia a dia de hoje é uma tal exageração da realidade, que me leva a pensar ser ele a "obra de arte" que em vão se pede aos "artistas". Pelo menos os desacertos, temos que o reconhecer, são de uma incrível perfeição. Mas não posso esquecer que, do outro lado da medalha, estão as "certezas absolutas", e que, por causa delas, tem corrido tumultuosos niagaras de sangue. E ainda pela mesma causa os rios correm hoje para o mar completamente poluídos.
Que dizer se, para mim, cada palavra, é como um volumoso livro?
Possivelmente entre o nada e o nada é que está o infinito. Assim, nada do que digo pode ser claro, definido ou definitivo, mas, pelo contrário, nebulosos, confuso, contraditório e doloroso. Enganaram-nos a todos; o NADA é afinal um patrimônio imenso.
Há anos sonhei que me encontrava numa espécie de jardim zoológico, onde estavam Dragões, Tágides, Gnomos, Minotauros etc. etc. Nesse tempo, ainda as florestas da imaginação não estavam completamente devastadas. O amanhã não estava tão próximo. Agora pergunto-me se será possível adaptar-me a esse amanhã, mesmo que o desejasse.
Setenta anos passam afinal como um longo minuto. Por exemplo, não li metade do que deveria ter lido. Sou assim um muito mau exemplo. Mas tudo o que escreveu um Dostoievski ou um Borges, ou a obra de um Miguel Ângelo ou de um Gustave Moreau, não cabem realmente no percurso de uma vida! Trata-se de miraculados, porque não acredito exclusivamente nas virtudes do trabalho. Dias e noites a trabalhar, não deixam tempo para olhar, e menos ainda para imaginar. Tudo o que aconteceu na vida foi tão rápido, que mal tive tempo para o reter na memória, e discernir; e no entanto tudo foi excessivo, em relação às minhas forças. Nem tempo tive para construir o cipreste que tanto queria sobre a minha sepultura, todo em vidro, para se poder ver os movimentos do seu coração de cipreste…
Seremos nós, portugueses, excepcionalmente dados a desencontros? Parece que, quando chegamos à Índia, ela já lá não estava…
Mas os grandes problemas resolvem-se ou adiam-se por si mesmos. Todo o resto é ilusão, ou vaidade.
Diminuo-me por certo aos olhos dos "expert de l'art", se digo que não inventei nada, que nada do que pintei foi apenas imaginação. Parece-me poder dizer que nunca exagerei ou dramatizei uma situação, que o que refiro é a minha própria experiência de vida, que é de fato muito maior do que eu.
O "artista" procura ser na sua obra, mas também na sua vida, um espetáculo. Os artistas e intelectuais são de fato exibicionistas. Não sou um artista nem um intelectual, previno-os.
De resto, na natureza nada é credível, nada tem qualquer lógica, que não seja a do absurdo. Se se explicar a alguém vindo de um outro mundo como se faz uma criança (e que essa criança se transforma em homem), ele não pode acreditar. E bastará ver os documentários de Disney ou do National Geographic,   para se compreender que nada do que existe pode ser compreendido, e que é por certo outra a chave de que necessitamos.
O mundo que a natureza fez, e o mundo que o homem fez… É com muita apreensão que vejo, por exemplo, civilizações consideráveis, como a chinesa, ou a africana, aderindo, sujeitando-se, integrando-se, imolando-se, a esta nossa civilização. Será que uma OUTRA civilização era de fato impossível? Foi ela tentada com a necessária veemência? Nos inúmeros organismos internacionais que pagamos, imperam os relógios moles de Dalí…
E diga-se francamente que é de rebentar a rir este pobre diabo que sou sofrer de tais saudades do desmedido, odiando ao mesmo tempo a esperança, que tanto nos desfigura. Aos condenados à morte, teremos que opor o horror dos condenados à vida?
De fato amar e ser amado, com igual intensidade, é ainda muito mais difícil do que escrever um belíssimo poema. E se me revolto por me quererem impor isto ou aquilo, como posso eu impor isto ou aquilo aos outros? Além disso, não faltam "artistas" que querem condecorações, ruas com o seu nome, o Prêmio Nobel, como se as forças que os movem fossem egoísmos, orgulhos, vaidades, certezas absurdas. Contorcem-se até ao mais possível impossível, como se isso tivesse algo a ver com a verdadeira imaginação, com a verdadeira criatividade, com a verdadeira liberdade. O "Nu" de Marcel Duchamp sobre agora, ao invés de descer, uma escada de degraus perigosamente gastos. E espera-se que da boca lhe saiam coisas indizíveis.
Os que fizeram revoluções são mais revolucionários do que, por exemplo, o foi a pintura de Goya ou de Kandinsky? E não esqueçamos, que Salazar foi morto por uma simples cadeira! Iremos assistir à revolta das cadeiras perante os ditadores do futuro? A despropósito, cito Saint-Jus: "Ceux qui font les révolutions à moitié, ne font que creuser leur propre tombeau…" [4]
Há de fato feridas do tamanho de países! E aqui, onde nascemos, é precisamente o local onde o mar se afogou. Mas será por acaso que dois dos quadros mais importantes do imaginário e do mistério estão em Portugal? Refiro-me ao Bosch, e também ao Nuno Gonçalves. Ainda quero acreditar que tudo tem um sentido, evidentemente oculto.
Para terminar (e tento fazê-lo desde a terceira página…), repetirei que não fui nem serei UMA VIDA DEDICADA À PINTURA, por mais que a ame. Por vezes, devo-o dizer ainda, ela toma para mim as proporções terríveis de uma ratoeira.
Há quem refira o nacionalismo ou o fascismo de Fernando Pessoa e de Almada Negreiros; tirem esses dois a Portugal e vejam o buraco imenso e negro que fica!
Tanta coisa nova nos querem impingir uns e outros, que é demasiado; acabam por esmagar saloiamente o próprio espanto. O desconhecido está a ficar por demais conhecido, e isso é intensamente dramático. Afinal o mistério sabe tudo do sábio, mas o sábio muito pouco sabe do mistério. E quanto aos tontos que se julgam muito modernos, direi como Oscar Wilde, que "todas as coisas belas pertencem à mesma época". É-me comovente por vezes ter que recorrer de urgência à presença de Giotto ou de Fra Angélico…
Diz o Almada, na "Cena de ódio": "Tu que tens a mania das Invenções e das Descobertas, […] há muito mais a fazer do que fazer revoluções".
Quero ainda referir os que por exemplo sabem tudo o que deve ser tornado lei sobre o ensino, e que são desgostantemente risíveis. Não será inegável que o aluno sabe sempre mais que o professor? O SABER, tenho-o eu com uma porta fechada, e inultrapassável. Nunca ninguém passou do limiar!
E há a grande mascarada do saber, o profissionalismo. Profissionalismo é o que exijo ao sapateiro, ao mecânico, ou ao padeiro, mas será a última coisa que exijo a um pintor? Execrável toda a raça em que houver mestres e alunos! O jogo em que entro é o do não saber. O não saber é uma forma de cultura. O que fiz de uma tela ou de uma folha de papel, foi sempre o jogo do não saber. DESENCADEAR é tudo o que sei ⎼ se sei. Mas tudo o que sei e sabemos é quinquilharia, se nos lembramos dos que descobriram o fogo e a roda. Se eu tivesse um filho, o que mais me preocuparia era a maneira de lhe ensinar tudo o que não sei, e é o principal do meu saber.
"Tout vrai langage est incompréhensible", [5] diz Artaud. E o Herberto Helder acrescenta: "As palavras são mortalmente confusas". Cada palavra está grávida de outra palavra, digo eu.
Ouvi alguém dizer que "o homem onde chega conspurca". Atualmente é essa a verdade, mas creio que ainda há um século o analfabeto construía a sua casa, e ela estava em perfeito equilíbrio com a árvore, com a colina, com a luz do sol, com o cão etc. etc.
Quanto ao surrealismo, parece-me que afinal ainda não há muito a dizer, depois do que deixou dito Breton. A linguagem dos da sua geração, cada vez mais parece inultrapassada. Naturalmente outros como eu têm debaixo da língua a PALAVRA exata ou pelo menos necessária, mas para esses, como para mim, será um drama de todos os minutos esta espécie de gravidez, em que a criança se recusa a nascer.
E ainda quanto ao surrealismo, me parece que ninguém, com alguma sensibilidade, poderá dizer onde começou, e onde vai acabar…
Apenas por breve espaço de tempo me deixei embalar por sugestões no sentido de uma pintura mais ou menos profissionalizada. Todo o resto dos meus dias foi passado em empregos o mais burocráticos, os mais diversos, e os mais mal remunerados. Como tenho sobrevivido sem ter a mínima capacidade de sobrevivência tem o seu quê de milagre. Atravessei muitos desertos, e devo dizer que tomei gosto por essa espécie de perversão. O meu dia a dia foi tão pleno como o meu noite a noite, e alguns poderão até dizer que foi pleno de NADA; mas para mim o NADA existe, repito-o, e merece todo o meu ódio-amor.
A falta de dinheiro foi a minha universidade, como África foi o meu Paris. Não faço segredo de nada, não teatralizo o miserabilismo como alguns; hoje gozo de um certo equilíbrio material, modesto, e dá-me alguma satisfação tê-lo conseguido sem ser à custa da minha pintura. Tive que sacrificar uma coleção de "objetos etnográficos" recolhidos em Angola, e uma coleção de pintura (quase tudo obras sobre papel), que incluía nomes como os de Júlio, Gonçalo Duarte, Calvet, Paula Rego, Mário Eloy, Raul Pérez, Cesariny, Mário Botas, Areal, Menez, Eurico Gonçalves, João Rodrigues, D'Assumpção, Pomar, Malangatana, Pascoaes, Mário Henrique Leiria, Jorge Vieira, Pedro Oom, Escada, Hein Semke, Manuel Amado etc. etc.
Suficiência ou vaidade não as tenho. Tenho talvez vaidade, isso sim, desta luta constante contra a vaidade e a suficiência que toma tantos intelectuais, como se aqui fosse Paris, Londres ou New York, e não uma aldeia chamada Lisboa.
Como Fernando Pessoa dizia que a sua pátria era a língua portuguesa, julgo eu que a minha pátria é a pintura. Mais a dos outros, do que a minha.
O que vejo na pintura surrealista (e isto em duas palavras muito excessivamente apressadas) não é o insólito ou o fantástico, mas sim a imagem do que não sei e do que espera sentido, ou do que ao sentido se nega. Teve ele, o surrealismo, o saber ou a sorte de não cais na moda, como aconteceu com algumas outras filosofias, que nisso perderam uma parte substancial da sua força.
Como se deve acabar um texto como este, é evidente que não o sei, e assim me parece que melhor será não o acabar; assim ficará acabado. Mas acrescentarei ainda uma citação admiravelmente lúcida e profética de Rui Mário Gonçalves: "Se não encontrarmos nas artes sinais das modificações que desejamos, não as vamos certamente encontrar em qualquer outro sítio". E esta outra citação de Nietzsche: "La nouveauté de notre position philosophique est une conviction, inconnue de tout les siècles antérieurs: celle de ne pas posséder la vérité…" [6]



NOTAS
1. Texto datado de março de 1991, consta do catálogo de uma exposição de CS intitulada "Homenagem a Mário Henrique Leiria". Porto: Galeria São Mamede, maio a junho de 1995.
2. Eu vi as coisas que foram reportadas ao rei, da nova terra do ouro; todos os tipos de objetos surpreendentes para vários usos, mais bonitos do que qualquer coisa que já se viu. Na minha vida, não vi nada que me deu tanto prazer. Eles são incríveis obras de arte e eu fui fortemente tocado pelo gênio estranho dos homens desses países distantes. [N.O.]
3. O amor físico é a metade do prazer. [N.O.]
4. Aqueles que fazem revoluções pela metade apenas cavam o próprio túmulo. [N.O.]
5. Toda a verdadeira linguagem é incompreensível. [N.O.]
6. A novidade da nossa posição filosófica é uma convicção, desconhecida por todos os séculos anteriores: a de não possuir a verdade ... " [N.O.]







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