sábado, 19 de setembro de 2015

FLORIANO MARTINS | Cruzeiro Seixas - A conjunção de todos os infinitos


Uma manhã na autoestrada Porto-Faro, a caminho de Tavira, a ilha maravilhosa, sou surpreendido no carro com uma chamada ao telemóvel de Cruzeiro Seixas. Era final de 2003 e havíamos iniciado uma correspondência há poucos meses, em parte graças à possibilidade de se editar no Brasil, pela primeira vez, uma mostra de sua poesia e de seu desenho. O livro sairia em 2005, pela coleção "Ponte Velha", da Escrituras Editora, que eu começava a coordenar, e onde foi possível publicar, ao longo de 5 anos, quase 30 autores portugueses. Já não recordo em que circunstância propus a Cruzeiro Seixas o título Homenagem à realidade, mas foi imediata a sua concordância. Lembro de ler à solta ali em Portugal seus poemas, celebrando imagens ao acaso, a voracidade do instante como marca essencial daquela poesia, eu simplesmente sorteava páginas do primeiro volume de sua Obra Poética, que eu havia comprado em alguma livraria no Porto. Era a minha primeira leitura do poeta que eu antes conhecia apenas pela obra plástica. Não havia senão fascinação ao folhear as asas daquele livro repleto de metamorfoses. Aos poucos fui recordando seus desenhos e concluindo que Cruzeiro Seixas desenhava poemas com a mesma intensidade com que escrevia desenhos. Ambos eram frutos de uma mesma convulsão de beleza e conhecimento. Houve certo torvelinho que por vezes embaça a memória, mas o fato é que o segundo volume daquela poesia eu já o tenho autografado pelo próprio poeta. Sem que o imaginássemos havia se instalado uma ponte mágica entre nós, intermediados pela generosidade e a curiosidade.
A ideia de "mais realidade" tão defendida pelo Surrealismo, creio que ninguém a encarnou tão bem em Portugal quanto Antonio Maria Lisboa e Cruzeiro Seixas. O primeiro foi o mais alto crítico das falhas relações existentes entre poetas e artistas portugueses e o Surrealismo. Em uma de suas cartas a Cesariny, destaca o

quanto gostaria de ver a meu lado tu e todos os outros - desta vez não com a sombra de um Breton - com os nossos próprios corpos! na conquista de mais um impossível, de mais um mundo que está perdido - a elaborar a imaginação do Mundo!

Esta simples referência à sombra de Breton podemos conectar a uma passagem de minha correspondência com Cruzeiro Seixas em que ele lastima certos ocasionais abismos entre Cesariny e o Surrealismo: "Eu podia e devia ter estado próximo dele, para dar a ajuda possível em tantos momentos onde ele e o surrealismo pareciam desencontrados."


 



De minha parte, ainda na autoestrada Porto-Faro, naquela manhã ensolarada, intuí que algo me chamava a atenção para uma curiosa perspectiva, que se concretizaria não apenas na edição de um livro de Cruzeiro Seixas, mas sim na apresentação ao leitor brasileiro interessado de uma boa soma de autores portugueses vinculados ao Surrealismo. Outro dia me procurou um estudante indagando sobre surrealismo em Portugal e sua relação com o Brasil. Não existe relação alguma, e dói afirmá-lo. E há aqui pelo menos duas razões. A primeira delas é que houve no Brasil uma fascinação pelo estardalhaço futurista, que não implicava em uma adesão existencial, ou seja, poderíamos aqui ser modernos sem que isto mudasse em nada a nossa vidinha corriqueira. Sob este aspecto, em geral apreendemos das vanguardas apenas a maquinaria e um pouco de seu tumulto formalista. A outra razão é de uma curiosa ordem cronológica. Apesar da proximidade entre Portugal e França, o surrealismo só começou a despertar alguma atenção portuguesa nos anos 1950. Digo que se trata de uma ordem curiosa pelo simples fato de que nosso conhecimento imediato do surrealismo mais gerou cuidados e repúdios do que propiciou adesões.
De qualquer modo, não estamos aqui para falar de Surrealismo propriamente e sim de uma vez mais criar um palco possível para a mais plena expressão criativa de Cruzeiro Seixas, cuja perfeita harmonia convulsiva entre vida e obra bem o torna signatário da tempestuosa frase de Salvador Dalí - frase que bem deveria ter sido originalmente proferida por André Breton: "O surrealismo sou eu". A presente edição especial antecipa em breve mostra um novo livro que trago em preparo e que reúne destacadamente a minha correspondência com ele, ao lado de textos escritos a seu respeito e uma vultosa iconografia.




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Floriano Martins (1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e a ARC Edições.





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