segunda-feira, 5 de outubro de 2015

ALFREDO FRESSIA | Escrito com luz negra: a poesia de Josefina Plá (1909-1999)


Criar mais intensamente é só uma forma de mais
intensamente morrer: a poesia é a forma mais
agudamente visível da morte
Josefina Plá

A espanhola Josefina Plá chegou ao Paraguai em 1927, aos 18 anos, já casada por procuração com o ceramista local Andrés Campos Cervera, que ela conhecera em Alicante (Espanha), para viver o que seria seu grande amor. Não contava com o apoio da família, já que Andrés era 21 anos mais velho, e isso era imperdoável. Viúva desde 1937, viveu esse amor durante o resto da sua vida, porém transfigurado num outro "casamento", esse definitivo, com o país do coração da América. Hoje se pode afirmar que a poesia, o teatro, as artes plásticas, a vida acadêmica do Paraguai no século XX não se explicam sem Plá, e grande parte da obra de Plá resulta inimaginável fora do Paraguai.
Nascera em 9 de novembro de 1909, em Fuerteventura, Ilhas Canárias, para uma vida infatigável de criação e de aventuras desafiantes. Falecida em 11 de janeiro de 1999, Plá deixou atrás de si uma obra gigantesca. Desde jovem, e com seu marido, conhecido internacionalmente sob o pseudônimo de Julián de la Herrería, renovaram, segundo a crítica paraguaia, as artes plásticas daquele país. Foi jornalista na imprensa escrita e radiofônica de Assunção, organizou exposições de arte, inclusive durante a Guerra do Chaco, entre o Paraguai e a Bolívia (1932-1935), em Assunção, mas também em Buenos Aires. O casal continuou o trabalho de ceramistas na Espanha, de 1929 a 1932. Uma segunda temporada espanhola de trabalho e estudos, a partir de 1934, será interrompida pela Guerra Civil e pela morte de Andrés. Plá vende então obras de arte, livros e até selos raros do Paraguai para financiar seu regresso, pelo porto de Marselha. Sofre então a desconfiança local, o que lhe valeu um breve mas significativo exílio na cidade argentina de Clorinda (1938). Com Hérib Campos Cervera, o elegíaco poeta do exílio paraguaio, e Augusto Roa Bastos, que sempre se declarou "discípulo" de Plá, formaram a tríade célebre da chamada "Geração dos ‘40". Ela não se exilou, como seus co-geracionais. Conhecerá, ao contrário, o "insílio" e a relação sempre tensa com a ditadura de Alfredo Stroessner (1955-1989). Em 1940 nasce seu filho Ariel, que ela registra com o sobrenome materno. Leciona na Universidade Católica onde também organiza as pesquisas em literatura e história do teatro. A obra historiográfica realizada por Plá é de fato monumental, incluindo a história da arte, da literatura e do teatro paraguaios. O trabalho de difusão incluiu suas palestras no exterior (Buenos Aires, São Paulo, onde aliás representou seu país adotivo na Bienal de 1957, Seattle, Nova York, Madri), e os artigos para revistas internacionais (Cuadernos Hispanoamericanos de Madri, Humboldt da Alemanha, Cahiers des Amériques Latinesde Paris, entre muitas outras). No fim da sua vida, Doña Josefina Plá, como é chamada respeitosamente pelos paraguaios, era Doutora Honoris Causa da Universidade Nacional de Assunção, detinha prêmios em artes no Rio de Janeiro (1952), São Paulo (1957, 1979), Madri (1995), era membro "de honra" da Sociedade de Autores Argentinos, e fora indicada em 1989 e em 1994 para o Prêmio Cervantes. 

A UNIDADE DE UMA OBRA | Nessa obra legada por Plá, a poesia ocupa o lugar privilegiado de sua criação estética, a face íntima de uma reflexão existencial que a crítica paraguaia (Roa Bastos, Francisco Pérez-Maricevich, entre outros) concorda em qualificar como "devastadoramente elegíaca", "monotemática e monocorde" (Maricevich), "monotonal" (Roa Bastos). E o adjetivo "devastador" volta na obra do crítico uruguaio Ramón Bordoli Dolci. Efetivamente, Plá, protagonista de uma vida de atividade incansável, de um trabalho intelectual fáustico, entusiasta, multifacético, construiu uma obra poética que quase não ultrapassa uma centena e meia de poemas, e que se destina, uma e outra vez, a dizer uma única coisa: a dor de estar vivo, a tragédia de ser. "Devastadora", certamente arrebatadora, essa poesia estremece sempre, com esse único tema surdo, repetido como sinos fúnebres. O abismo que se cria assim entre a lírica e a obra inesgotável da Plá intelectual configura um mistério que sua narrativa e seu teatro também não conseguem explicar. E aquelas plaquettescuidadíssimas, cujas capas eram litografias especialmente realizadas, que continham às vezes dez ou quinze poemas, poderiam ferir o leitor se não contivessem a estética justa, a mestria do ourives que trabalhou o barro e as palavras. Um possível trâmite de leitura poderia colocar no centro da poesia de Plá o poema VI de O pó enamorado, a excelente plaquette de 1968. Esse poema, que aliás comparece entre parênteses, se inicia com estes versos: "Mas te são porventura consultados teus desejos?/ Alguém escreve com letras de piedade teu memorial de súplicas?". A resposta é um Não definitivo, e essa negação, além de conter em si toda a lírica de Plá, coloca mais uma vez o enigma da arte como transfiguração da dor em beleza. E é por isso que ler essa obra é uma experiência limite: porque o leitor intui que qualquer caída na prosa converteria o texto num diário íntimo da angústia. 
Por outro lado, esta obra breve, e autônoma frente à escritura narrativa (ficcional ou não) de Plá, que, essa sim, ocupa vários tomos, apresenta-se como uma profunda, procurada unidade. Obviamente, desde O preço dos sonhos, de 1934, até Os trinta mil ausentes, de 1985, podem-se detectar etapas,variações diversas de um tema e uma estética. Para começar, e com exceção de um texto impresso em 1949 (Rapsódia de Eurídice e Orfeu), à primeira publicação seguiram-se 26 anos de silêncio editorial: a segunda plaquetteA raiz e a aurora, só aparecerá em 1960. Bordoli Dolci invoca dois motivos para explicar esse silêncio, a saber, o fecundo trabalho da autora em outros campos, durante esse período, e as dificuldades financeiras. Podem-se aceitar esses argumentos, mas continuam parecendo insuficientes. Em 1977 Plá publicou uma Antologia poética (1927-1977) e incluiu nela só três poemas de seu primeiro livro. Quando em 1989 Bordoli Dolci publica seu primeiro trabalho crítico sobre a poeta (Poesía paraguaya. Josefina Plá, Casa del Estudiante, Montevideo), que inclui também uma seleção de sua poesia, admite que O preço… "é inencontrável; eu trabalho com uma seleção abundante de poemas enviados pela Sra. Plá". Isto é, a poeta exerceu então outra "seleção" daqueles textos (ainda que "abundante"). São muitas as pistas que apontam a outra conclusão. A autora era consciente de que sua estética só estava realmente criada a partir dos anos ‘60, essa década riquíssima na sua obra, que inclui, além de A raiz e a aurora, as plaquettes Rostos na água, 1963, Invenção da morte, 1965, Satélites obscuros, 1966, O pó enamorado e Desnudo dia, ambas de 1968. Ela exerceu assim o direito de reler seu livro de juventude em nome, já não de um princípio abstrato de "qualidade", mas da unidade da obra.
Costuma-se afirmar que O preço… marcou um antes e um depois na lírica paraguaia, que era até então tributária de uma manière "modernista", incapaz de renovar seu idioma. É uma verdade, sem dúvida, como também é uma verdade que aquela linguagem nova, com seu reiterado "florescer", tem muitos pontos de contato com a obra da uruguaia Juana de Ibarbourou, que "fez escola" desde os anos ‘20. (Aliás, Plá consagrou um ensaio a Ibarbourou e manteve com ela relações cordiais). Na poesia que "fica" daquele primeiro livro (para a estética da poeta, não para a crítica paraguaia como referência) comparecem tópicos que serão centrais no conjunto da sua obra, como o tema do tempo, em versos à la Ibarbourou, cuja forma, porém, ainda ingênua, está muito longe da futura, definitiva Plá.
É seguro também que a poeta não suspendeu sua escritura lírica durante os 26 anos de silêncio editorial anteriores aos ‘60. Deles ficou o livro Desnudo dia, de 1968, onde Plá reuniu poemas escritos entre 1935 e 1939, e também as duas dezenas de textos anteriores aos ‘60 que ela incorporou a sua Antologia, organizados em "poemas de 1935-1940", "de 1941-1952", e "de 1952-1960". Essa vigilância autoral sobre o conjunto diacronicamente criado autoriza a poeta a incluir na Antologia versos como os que inauguram o poema "Amar", do período 1935-1940: "Amar,/ Afundar raízes a golpe de batidas/ na terra negra e amarga/ onde sofrem os olhos dos que ainda não nasceram". O erotismo trágico ("metafísico", diz Maricevich), a identificação da vida e o amor com o sofrimento, contemplada nessa terra onde sofrem os olhos não nascidos não prefigura: já é a estética que atingirá sua plenitude nos ‘60.

A POESIA TRÁGICA | A melhor leitura dessa obra e dessa estética será a da Tragédia. Os poemas adotam quase sempre a forma breve, como para recuperar melhor o essencial, o quase arquetípico, e ressoar assim no silêncio assombrado que os cerca. Trágica, além de "moderna", Plá não faz autobiografia na sua obra. Sem dúvida, a morte do marido subjaz nos poemas ulteriores a O preço…, porém a primeira pessoa nunca pretende coincidir com uma biografia. Plá sabe que a tragédia está sempre na antípoda da crônica. O primeiro e mais implacável círculo desse sentimento trágico será a perfeita falta de liberdade: "Livre para nascer sem eleger o dia/ livre para beijar sem saber por que esta boca e não outra/ livre para engendrar e conceber o que vai te trair/ livre para pedir o que depois te será inútil/ livre para buscar o que amanhã já não terá significado" ("Livre", de Satélites obscuros, 1966). O "herdeiro", que é o da espécie, que subentende e ultrapassa o filho biográfico, receberá o legado inevitável: "Da esperança nunca esgotada/ da tristeza nunca satisfeita/ do sonho sempre em dívida/ do amor como um traje em série/ da dor de morrer da dor de estar vivo/ de não poder morrer com a medida/ de um viver suficiente/ através do meu sangue/ serás o herdeiro" ("Herdeiro", de Satélites…). E esse círculo claustrofóbico fecha-se na própria destruição: "…E esta foi a tarefa. E foi a empresa esta/ Criar teus próprios amos teus tiranos ocultos/ Com tua mais delicada substância esvaziar os duros lábios/ os que hão de sentenciar-te" ("E esta foi a tarefa", Satélites…). 
O poema "As portas", de Rostos na água, 1963, introduz o tema dessas "portas" que, na obra de Plá, e como num labirinto, fecham-se ardilosamente, todas, exceto uma: "…Um fechar-se de portas,/ a direita e esquerda;/ um fechar-se de portas silenciosas,/ sempre a destempo,/ sempre um pouco antes/ ou um momento demasiado tarde;/ até que resta uma só aberta,/ a única pontual,/ a única sem passagem e sem olhar". E a plaquette seguinte, Invenção da morte, 1965, cuja poesia "inventa" mas também se quer inventada pela morte, aborda o tema sem piedade. Comparecem ali o fim inevitável, sua dor, a solidão do morto, os balanços que cada morto faz, os mortos presentes entre os vivos. Com esse poemário, a poesia de Plá atinge o domínio seguro, dir-se-ia "inexorável", de sua própria estética: as sonoridades, as aliterações, o ritmo surdo que já não obedece ao soneto, que evita a rima prefixada e prefere a assonância inesperada, as controladas rupturas do ritmo que fraturam a idéia para criar a verdadeira dimensão da dor. Plá apela a uma linguagem de estirpe tradicional espanhola, universal, sem "localismos", para nomear os elementos primários. O Paraguai poderia estar presente em algumas imagens ("Porque isto é o amor que te secava/ as carnes como seca o sol os ervais em janeiro"), mas aqui, e diferentemente da sua narrativa e de seu teatro, o sol, a água, o vento, a terra são universais e configuram o círculo trágico onde gira o discurso. O bestiário não existe, ou é meramente alegórico. Mas está presente o feto, a vida pronta a nascer sob o signo do fim. A morte se situa "Ali onde as lágrimas se juntam para lavar o rosto/ daquele que está por nascer" ("Ali onde as lágrimas"), e ao morto "somente o cego no ventre materno/ poderia acompanhar sem opróbrio nem escárnio até a beira/ do último abandono" ("Ninguém o beije"). 
Freqüentemente em Plá, o discurso se dirige a uma segunda pessoa, que pode ser seu próprio "satélite obscuro", a mãe, o filho, ou simplesmente o pó. É o que dá a esta poesia essa ressonância de oráculo, que também impede o mero patético. E pode incluir certos talismãs cuja menção assinala mais o desamparo humano que qualquer idéia de proteção: "Vamos. Vamos. Vamos. O sonho era um engano,/ a rede uma miragem/ e o descanso uma fraude (…)/ Levanta e ingressa ao coro sem noite e sem descanso/ e pede a Deus um trevo de quatro folhas, uma semente curativa;/ uma sombra aconchegante,/ e até uma pedra que refugie o verme/ ou sonhe no montão que atesouram os mortos" (O pó enamorado, Poema V).

ÚLTIMAS NOTÍCIAS DA MORTE | A poesia publicada pela autora nos ‘60 é seguramente a que melhor exibe o "selo" de Plá, esse "acento" que permite reconhecer imediatamente sua obra, sem hesitar. A obra dos últimos anos, que não perdeu na qualidade dessa estética "única", dialoga com uma possível biografia que inclui o pai, a mãe, o irmão morto, ou com o fim dela mesma, não porque a poeta abandone as unidades universais da tragédia, mas porque o obsessivo tema da morte torna-se mais pessoal, e, se for possível, mais urgente. É o tempo de se perguntar "A quem deixar": "A quem deixar meu guarda-roupa oculto/ o guarda-roupa fantasma/ de todos os vestidos/ que tive e que me abandonaram/ os vestidos/ que nunca tive e que vesti em segredo/ O vestido que veio demasiado cedo/ que jamais me caiu bem/ o vestido/ que chegou já tarde/ para ir à festa/ quando já tinha adormecido" (de Tempo e treva, 1982). O tempo torna-se então um "ignóbil agiota", "E digo tempo porque de alguma maneira/ devo chamar aquilo que me trouxe até aqui" ("Digo tempo", em Trocar sonhos por sombras, 1984). Esse tempo, aliás, é um ladrão. Como num memorial anti-hedonista, o conjunto dos "Atos mínimos" "roubam à vida/ uma percentagem criminosa de tempo". São atos quotidianos, domésticos, que certamente outra poesia teria celebrado, como "abrir uma carta ou correr a cortina/ aparar as páginas de um livro/ procurar a carta extraviada/ varrer as folhas mortas/ lavar a roupa remendada/ retirar do vaso a margarida seca/ ou fritar o planeta submergido num ovo" (em Tempo e treva).
Arrebatador, "O filho pródigo" (em Folhas do tempo, 1981) não consegue jamais o regresso: "Não se aproxima do presente afasta-se do futuro", e já não encontrará o "quase imemorial patriarca órfão/ moendo infatigável a farinha da insônia". E o tempo, esse ladrão, destrói até a própria biografia: "…O arroio atrasa/ agora seu curso atrás da colina/ e num canto da horta abandonada/ alguém varre os ossos de todos os destinos/ que puderam ser dele".
A poesia de Plá, uma "insilada" no seu também trágico e "insilado" Paraguai, sempre atrás dessa "Luz negra", título de uma das suas plaquettes (1975), conseguiu transcender algumas fronteiras. Certamente, espera ainda a edição continental das Poesias completas, já editadas em Assunção em 1996, mas de circulação restrita. Sem traduções ao português, a crítica e os leitores brasileiros continuamos em dívida com o brilho sombrio dessa obra nascida nas próprias entranhas da elegia e do Continente.




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Agulha Revista de Cultura # 8. Janeiro de 2001. Página ilustrada com obras de Otto Apuy (Costa Rica), convidado especial desta edição.






Um comentário:

  1. Estou fascinada com esta poeta. Encantada com seu ritmo persistente. Com sua batida cercando os limites do absoluto. Surpresa por não conhecê-la antes. E grata por descobrí-la agora. Leila Ferraz

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