quinta-feira, 12 de novembro de 2015

GONÇALO IVO | Anotações sobre a poesia de Lêdo Ivo


I | GUADALQUIVIR E O TEMPO | Lêdo Ivo morreu muito jovem. Iria completar 89 anos. Das muitas vidas que viveu, esta, que ficou para trás, foi mais uma passagem na nebulosa floresta do tempo. Poetas não têm idade ou sequer morrem. São como bichos incômodos, insetos, conchas do mar a abrigar viscosos moluscos ou mesmo víboras, sempre a nos perturbar com sua morfologia misteriosa, ruídos e zumbidos indecifráveis. Herdarão a terra após o fim dos tempos.
Um fato ocorrido no cemitério de San Fernando em Sevilha, no dia 25 de dezembro de 2012, quando cremei o corpo de meu pai, confirmará o que digo. Enquanto transcorria a cerimônia da transformação de seu corpo em cinzas, convidei Leonardo, meu filho, a uma caminhada entre as frias aleias no início de mais uma manhã de inverno. Esta necrópole não está longe de um dos braços do rio Guadalquivir. Cemitérios são projetados e construídos como se fossem cidades. E os muros de San Fernando guardavam naquela manhã, antes do acontecimento da aurora, a silhueta de esguios toureiros contra um céu cada vez mais violáceo, fantasmas de cantantes de flamenco, divas, inúmeros e ilustres personagens locais. Entre as lápides negras adornadas por ferros e volutas retorcidas, esculturas invulgares, flores de plástico e fotografias esmaltadas a estampar faces esmaecidas, se esgueirou um pequeno gato. Vinha de outro reino. Mirava a tudo de forma traiçoeira, como se estivesse a hipnotizar os pequenos pássaros que desavisadamente pousavam na terra à procura de alguns grãos. Disse a Leonardo: “Seu avô reencarnou”. Pois os poetas são o instrumento insubstituível entre este e o outro mundo, aquele em que sonhamos com os olhos bem abertos. O felino, que pouco tempo depois se fartou de nossa companhia, saltou a outros sítios e vidas, desapareceu na manhã solitária rasgada pela imprecação dos primeiros raios de luz. E em mim deixou a dúvida de toda uma existência.
Lembrei-me então dos versos de Matsuo Basho em Sendas de Oku , traduzido por Octavio Paz e a mim por ele ofertado quando estive no México com Lêdo e Leda em 1982: 

Los meses y los días son viajeros de la eternidad. El año que se va y el que viene también son viajeros. Para aquellos que dejan flotar sus vidas a bordo de los barcos o envejecen conduciendo caballos, todos los días son viaje y su casa misma es viaje. Entre los antiguos, muchos murieron en plena ruta. A mí mismo, desde hace mucho, como girón de nube arrastrado por el viento, me turbaban pensamientos de vagabundeo.

Logo se fez dia! Sevilha foi ficando cada vez mais distante e se tornando lembrança, enquanto o trem avançava e me levava de volta a Madri. Passei por túneis escuros e brumas entre montanhas recém-tocadas pela tempestade. Deixei também para trás o rio Guadalquivir, tão distinto de quando visto do céu, irregular como uma serpente. Sobre este rio, Lêdo Ivo escreveu em Um Brasileiro em Paris, de1953:

GUADALQUIVIR

[...]

À água digo: o tempo não tem futuro,
presente ou passado. Coisa em si mesma
perpétua, é tábua infinita do mundo.
Guadalquivir sente isso: canta em pedra

Entre árvores o dia faz-se tempo,
cal íntegra que as pátinas não mancham,
lavada pela água suja do rio.

Dize-me, Guadalquivir, como pode
alguém viver sem tua companhia?
Passas cantando em mim e é belo o dia.

Lêdo Ivo não se contentou em atravessar comigo neste derradeiro inverno mais uma ponte sobre esse rio. Queria a eternidade de viver, morrer e renascer em sua companhia. É a eterna premonição dos poetas. Saber cantar o que será o novo dia. Transmutar no futuro as lembranças em tinta negra sobre a folha de papel amarelada pelo tempo.

MARÉ

Na praia de papel
respiro o ar do mundo.
Letras. 

Na ortografia vive
todo o meu mistério.
Tinta.

O mar azul vomita
algas e medusas.
Signos.

 A sujeira do mar
 é meu patrimônio.
 Canto.

II | O VENTO DE MACEIÓ | Há algo no ar, o cheiro do peixe, do sal, do sargaço, trazidos a terra pelo vento do mar, emblema natal e marca indelével nos recortes suavemente arredondados da costa verdejante, espécie de geometria, arquitetura de contenção a proteger coqueirais, mangues, lagoas, canaviais, memórias...
Neste horizonte, o poeta regressa todos os dias em navios, cargueiros avariados, carcomidos pela ferrugem que procuram o lugar certo para morrer.
Ainda em minha juventude, instado por meu pai, resolvi passar as férias de verão em Maceió, sua cidade natal. Havia sempre a carinhosa acolhida de tios e primos que até então desconhecia, e mesmo de "parentes" que ostentavam uma consanguinidade difusa, coisa comum neste canto do Brasil. Estas foram as minhas temporadas nordestinas, inesquecíveis, entre Maceió, Recife, João Pessoa, Caruaru, Areias, Deodoro, Penedo, Neópolis... Na minha primeira e verdadeira travessia do Rio São Francisco, a bordo de uma pequena piroga, me dei conta da imensidão de suas águas, que de tão excessivas guardavam em seu estuário as sombras terrosas de infinitas nuvens brancas, como se fossem borrões sendo levados para o mar, e em suas profundezas lodosas e traiçoeiras ocultavam jacarés, tartarugas, carapebas e piranhas. Nas margens desse rio/mar, em Neópolis, lavadeiras entoavam cantos, enquanto quaravam e secavam seus tecidos coloridos sob o sol.

III | A CIDADE E OS DIAS | A paisagem urbana encarnará eternamente na poesia de Lêdo Ivo. E não só a bucólica, violenta e atemporal Maceió, deitada na lembrança do afeto, mas também a metrópole contemporânea em qualquer dos quatro cantos do mundo, a ostentar suas contradições, casa dos homens sem pátria ou sem brasão natal, onde a matéria da poesia pode vir do som da turbina do jato, dos gemidos dos amantes ou do ruído de um liquidificador – o humano, banal e comum...
Verifico que, após o autoexílio europeu – com base em Paris entre os anos de 1952 a 1954 – e posteriormente na temporada de inverno na América do Norte em 1963, a poesia de Lêdo Ivo sofre mutações.
Em 23 de novembro de 1963, John Fitzgerald Kennedy foi assassinado em Dallas, Texas. Lêdo Ivo, que na mesma época a convite deste governo visitava a América conhecendo universidades, escritores, pintores, cientistas, absorvendo o que então esta nação hegemônica tinha de melhor a oferecer do ponto de vista da cultura, assimilou, como poucos, o que seus sentidos alcançavam. De forma diferente do que fizeram os modernistas paulistas dos anos 1920, esse banquete que lhe é oferecido acrescenta mais do que empobrece ou torna caricatura. Sua escrita fica mais coloquial e terrena. Antes mesmo do golpe militar no Brasil, em 1° de abril de 1964, no seu livro Estação Central, com capa do jovem artista Rubens Gerchman, entoa em A Cartilha, no poema de abertura do livro:

PRIMEIRA LIÇÃO

Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.

Ao ficar rapaz
Ivo viu Eva
E aprendeu a amar.

E sendo homem feito
Ivo viu o mundo
Seus comes e bebes.

Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.

E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?

Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.

Em 28 de agosto de 1963, somente alguns meses antes da chegada de meu pai aos Estados Unidos, houve a famosa caminhada sobre Washington, em que aproximadamente 250 mil pessoas ouviram o pastor negro Martin Luther King dizer em voz firme "I have a dream". Um ano antes, Bob Dylan, um dos melhores poetas e músicos de sua geração, entoaria o canto Blowing in the wind. Poemas de cunho social que fazem parte de Estação Central são para mim uma redescoberta. O livro é uma espécie de divisor de águas na produção literária de Lêdo Ivo. Não há mudanças estruturais na essência da escritura. É e sempre será a “mesma língua”, imagética, rica em significados e ambiguidades, oriunda do surrealismo descoberto na juventude, quando ainda menino folheava as páginas de um pequeno livro de cor amarela, adquirido no Recife com poemas de Rimbaud. O que muda e mudará a partir desse encontro com a América é o mundo, seu tamanho, e a parte habitada pelo poeta.

IV | VARGEM GRANDE | E de súbito, em 1973, Maceió migra para outra geografia. No novo campo de cultivo e experimento poético, estrelas-do-mar, luzes e reflexos de navios ascendem e incrustam-se no negror do firmamento, desabando em seguida como tempestade sobre horizontes, vales, florestas e rios. É Vargem Grande, a parcela de terra escolhida para professar a nova cartilha. Canta o poeta no livro A Noite Misteriosa, Poesia, 1973 a 1982:

VARGEM GRANDE

 Afinal aprendi a ler a terra.
Este chão completa o céu: brancor de nuvens e constelações
onde pássaros pousam, banhados de sol....   

Há um ar bucólico nos poemas de A Noite Misteriosa. Este mundo rural, incomum, nunca experimentado pelo poeta, agora com quase 50 anos de idade, é sentido como nova descoberta, possibilitando práxis inéditas.
Sucedem-se nesses poemas a referência a essa fração de paisagem agrária, metáfora do mundo e sua cosmogonia. Lenhadores, ferradores de cavalo, galpões abandonados, jumentos, ratos do mato, predadores, tempestades, florestas e astros em plena atividade são a seiva dessa sinfonia pastoral.

ADVERTÊNCIA A UM GAVIÃO

O gavião sobrevoa
a plantação de tomate.
Meu irmão gavião,
eu não aceito a morte.
Na partilha do mundo
não estarei ao teu lado.
Jamais admitirei
a usurpação do dia.
Só sei enfileirar-me
No cortejo da vida.
Meu caminho me leva
à floresta onde fluem
as fontes escondidas.
Mesmo longe adivinho
uma árvore que tenha
frescor de fruto ou ninho.
Gavião! Gavião!
embaixador do não,
o céu não pode ser
sepultura de pássaros.


V | LÊDO IVO O REI DA EUROPA

O LUGAR SEM CHAVE

Quem guarda durante a noite
a chave do necrotério?
Necrotério não tem chave.
Ele sempre fica aberto
seja de noite ou de dia
numa incessante porfia
no vai e vem interminável
do entra e sai dos cadáveres.
Na fetidez do serão
há sempre alguém de plantão
a mão cansada de abrir
o gelado gavetão.
E cesse toda esperança:
a mortalha não tem bolso
para guardar a poupança.
Saibam todos os viventes:
semente do inexistente,
a vida sempre é de morte.
O derradeiro mistério
acaba no cemitério.
Para o defunto ilusório
que estima o logro do fogo
termina no crematório
na trituração dos ossos
na fumaça que se esgarça
e como um vômito alcança
o céu da desesperança
no céu sem céu e sem pássaros.

Numa visita ao Museo del Prado, Lêdo puxa meu braço ao nos depararmos com Dos viejos comiendo, de Francisco de Goya. E, como quem se prepara para contar um segredo, sussurra: “Esta pequena pintura guarda toda poesia, miséria e mistério da vida e do mundo”. Não é só a identificação alinhada à estética do pintor aragonês. Próximo ao final de sua vida, em suas inumeráveis viagens, o poeta parecia caçar pelo mundo a razão ou função de existirmos. Queria tudo entender e tudo a que tivesse direito. Do transitório ao perene. Se seu mundo físico e fronteiras dilatavam-se, sua preocupação como artista fazia o caminho inverso. Seus últimos poemas estão imprecados de indagações existenciais, pensamentos filosóficos, tempos metafísicos e humanidade. Sua poesia alcança o derradeiro clarão do relâmpago. Como Goya e seu intangível Perro semihundido a mirar o nada.



***

GONÇALO IVO (Brasil, 1958). Artista plástico, filho de Lêdo Ivo. Toda esta edição se encontra ilustrada com obras suas.









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