sábado, 14 de novembro de 2015

JOÃO GARÇÃO | O Castelo dos Destinos Cruzados - três poetas no Alentejo


1.
  
Eu, e creio que muitos, busco não o que é verdadeiro em absoluto mas o que nós somos.

Cesare Pavese


"Todos os dias, todas as tardes, pelo menos, tomávamos nós, poupadamente, o nosso café, lá descia ele da alta escadaria, fumando o seu cigarro, o chapéu de aba larga, um tanto ou quanto a manzantini - assim a minha deformada memória mo recorda -, ligeiramente derrubado sobre a orelha, o bigodinho retorcido. Atravessava o corredor e desaparecia para lá do guarda-vento. Acabava de almoçar no restaurante mais afamado de Coimbra, aquele onde se dizia ser a cozinha de qualidade e a conta de razoável preço…
Não sei como, não me recordo graças a quem, mas o certo é que esse moço, que vestia fatos de bom corte, entrou na nossa roda.".
O jovem a quem João Gaspar Simões faz referência nascera no Porto em 1905 e era um dos poucos estudantes coimbrões a frequentar o primeiro andar da pastelaria-cafe Central, local onde a tertúlia da revista Presença habitualmente se reunia. De seu nome Francisco José Lahmeyer Bugalho - Lahmeyer, nome de ascendência germânica pois seu pai era alemão - estava em Coimbra a cursar Direito e ligava-se desta forma aos presencistas, grupo onde, além do citado Gaspar Simões, pontificavam os nomes de José Régio e Branquinho da Fonseca.
A primeira colaboração de Francisco Bugalho, em prosa, apareceu no número 18 da revista, em Janeiro de 1929 (Detalhe de uma Novela). A sua poesia, por outro lado, demonstrando uma sensibilidade muito sincera e profundamente humana, encontrava-se de acordo com os preceitos teóricos defendidos pelos homens da Presença, os quais advogavam uma arte "verdadeira e intima" . Independentemente do antagonismo de posições que a sua poesia suscitou aquando da discussão que sobre ela o grupo empreendeu, a verdade é que em Dezembro desse mesmo ano já a folha coimbrã trazia a sua estreia poética (Obsessão).
Aquando desse acontecimento, Francisco Bugalho "vivia sobre si, proprietário de uma grande quinta no Alto-Alentejo". Aí lhe haviam sucessivamente falecido os pais e uma irmã ainda bastante nova, pelo que o poeta, nas férias, residia habitualmente dentro da vila com uma prima de idade avançada - a propriedade, a "Quinta das Palmeiras", fica a um par de quilómetros de Castelo de Vide.
Francisco Bugalho é normalmente apelidado de "poeta da calma melancolia alentejana" , em cuja poesia se nota um acento lírico vibrante "numa ansiedade insatisfeita de identificação com nesgas de paisagem, sobretudo da bucólica alentejana" . Poemas como Rega (“Longa, lenta, melancólica,/ Cantou a velha canção/ a nora triste da horta./ E uns brados ares de bucólica/ -Oh, lírica solidão! -/ Bateram à minha porta.[…]" ) ou Meio-Dia (" Céu baço. Quente quebranto/ se espalha no longe, enquanto/ Cantam cigarras à roda… […]" ), entre outros de temática semelhante, contribuem para que essa classificação facilmente se transforme em cómoda etiquetagem com a realização de leituras apenas superficiais.
José Régio, seu grande amigo - Régio dedicou-lhe a célebre Toada de Portalegre - já em 1931 alertou para a riqueza poética que Francisco Bugalho oferecia no seu primeiro livro, Margens (1931), dado a lume sob a chancela das "Edições Presença". O autor de Poemas de Deus e do Diabo frisou o cunho intimista e nada academicizante da sua poesia: "Não grande livro, decerto, se nesse livro subtil e simples procurarmos o que nos não procurou dar (interrogações, intuições, soluções (?!) sobre o mistério do homem e o da sua posição no Universo), o livro de Francisco Bugalho é notável pela graça, pela discrição, pela frescura, pela sinceridade. Sabe bem, ao fim duma discussão metafísica, dobrarmo-nos a cheirar uma flor sobre a própria terra-mãe; ou a beber água da própria nascente, depois duma orgia".
Mas os poemas de Francisco Bugalho são, a meu ver, bem mais que um simples refrigério intelectual. Se a poesia não é sentimentos mas experiências, como disse Rainer Maria Rilke e que "por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã" , compreender-se-á que a "modéstia" - palavra empregue por Régio - mais não é do que a permanência de uma poesia sem qualquer característica cénica ; ou seja, a poesia de Francisco Bugalho é uma poesia autenticamente pujante, que se não confessa aos maneirismos e modernismos da época, dando-se de uma forma espontânea e total quando fala das pequenas (?) coisas do quotidiano: a beleza de uma paisagem, o passar inexorável do Tempo, as principais actividades da vida agrícola, enfim, o cumprimento da passagem pela terra de homens e de animais. É esta a poesia que Francisco Bugalho nos deu em Margens, concordando eu inteiramente com Fernando J.B. Martinho quando este refere que o seu valor não tem sido suficientemente salientado.
Depois de haver demandado Lisboa em busca da conclusão do curso que em Coimbra lhe tardava, Francisco Bugalho regressou definitivamente a Castelo de Vide para aí exercer o cargo de Conservador do Registo Civil, dedicando-se simultaneamente à lavoura. Este carácter "bipolar" da sua vida - homem de poesia e homem prático - assume-o Francisco Bugalho nos seus versos: " Poeta sempre em luta vã contigo,/ Que sofres de já seres aquilo que não és,/ Que sofres de não seres aquilo que queres ser…(…)."
Quando voltou ao Alentejo já o autor de Margens tinha um filho, fruto da sua união com Guilhermina Mimoso Flores Bugalho. Este menino ficaria conhecido pelo pseudónimo de Cristóvam Pavia. De seu nome Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, havia nascido em Lisboa, na freguesia de Alcântara, a 7 de Outubro de 1933. Francisco Bugalho, no dizer de David Mourão-Ferreira " um Conde de Monsaraz sem pitoresco, um Fialho de Almeida sem dramatismos, um Mário Beirão sem veleidades épicas " compartilharia, pois, com seu filho - pelo menos na primeira idade deste - esse microcosmos rural que ambos, de maneira muito pessoal, intuíram e expressaram de forma muito bela.

2.

Para fazermos novo é preciso regressarmos às origens, à humanidade na infância.

Gauguin

Terá o nordeste alentejano essa fascinante característica de criar nos poetas as "asas e raízes " de que fala Régio no seu Fado Alentejano? Não deixa de ser interessante sublinhar este aspecto, bem como a atracção que poetas exteriores à região têm sentido pelo seu perfil geográfico e humano, possuidor de uma atmosfera poética muito especial. Além do conhecido e algo paradigmático caso de José Régio em Portalegre, não podemos esquecer-nos do de Branquinho da Fonseca, por exemplo, que dedicou interessantes páginas à vila de Marvão (o conto O Conspirador, do seu livro Caminhos Magnéticos), onde foi Conservador do Registo Civil; mas também o de Mário Saa, próximo de Avis e, um pouco mais para o sul, o de Sebastião da Gama, que se deixou prender à bonita cidade de Estremoz, aí encontrando, talvez, a fraternidade cósmica de que tantas vezes falou.
Os nascimentos de Francisco Bugalho e de Cristóvam Pavia em Lisboa queremos considerá-los como meras ocorrências acidentais. David Mourão-Ferreira teceu em tempos oportunas considerações acerca da "adaptação" ou "adopção" de Francisco Bugalho em relação ao Alentejo. No que se refere a António Luís Moita, poeta de qualidade e com preocupações de cariz universal, há desde já a certeza de que, como queria Apollinaire, ele terá encontrado a vitória ao ver bem ao longe e ao ver bem ao perto e dando a tudo um nome novo. O facto de não residir no Alentejo é pois, também aqui, simplesmente circunstancial.
António Luís Pinhão de Jesus Moita nasceu em Lisboa em 1925, aí tendo feito os estudos liceais. No entanto, muitas das suas férias escolares foram passadas exactamente em Castelo de Vide, em casa de parentes seus. Foi nessa vila - Castelo da Vida, como já alguém lhe chamou - que António Luís Moita, então com uma dúzia de anos, contactou pela primeira vez com Francisco Bugalho e com Cristóvam Pavia. É o próprio poeta quem o recorda: "Na estrada que liga Castelo de Vide a Marvão, junto ao portão da quinta de uns primos meus, Francisco Bugalho, montando uma égua, pára uns minutos para saudar o meu pai, seu velho amigo. Veste de linho branco. A cor do fato (sei-o agora) acentua-lhe o negro do cabelo escorrido e do bigodinho estreito, à John Gilbert. Usa botas altas, castanhas, quase da cor da montada, cuja impaciência as rédeas refreiam. À sua frente, escarranchado, seguro pelos braços fortes do cavaleiro, um menino de 4 anos, estranhamente quieto e silencioso, fita-me do fundo muito claro de dois olhos enormes","olhos verdes como as águas", no dizer de Francisco Bugalho. Esse olhar o poisou o jovem desde muito cedo sobre tudo o que o rodeava, precocemente inquirindo e perscrutando, como mais tarde António Luís Moita e seu pai ouviram a um Francisco Bugalho preocupado mas agradavelmente surpreendido: ao que parece, o pequeno "Chico" António, com apenas oito anos, foi apanhado a ler um dos últimos volumes de uma enorme História de Inglaterra, isto pouco depois de ter dito ao pai a sua primeira poesia: "O paizinho lê livros na salinha/ Enquanto a mãe faz bolos na cozinha". António Luís Moita, agora com 16 anos, havia entrado no espaço intimo de Francisco Bugalho por o poeta saber pelo pai do jovem que este também já fazia versos, meio às escondidas…"Promovido, assim, a confrade incipiente ou, talvez melhor, a pessoa crescida, a aparência um tanto austera do poeta de Margens, que a principio me intimidava, liquefez-se. Aquele homem grande - que ria pouco - sabia afinal sorrir. E o sorriso, ao abrir-se, transmitia bondade imediata".
Num livro editado mais ou menos por essa altura, Canções de Entre Céu e Terra (1940) e tal como o próximo organizado graficamente pelo pai de António Luís Moita, Francisco Bugalho fixou com grande ternura e carinho a ânsia curiosa do filho:"Meu menino ama os cães/ Os gatos, as aves e os galos/ (S. Francisco de Assis em menino pequeno) / E fica horas sem fim / Enlevado a olhá-los".
Por essa época já a Presença se tinha afundado. A sentença de morte da revista, que o poeta tanto amava e que, aquando da cisão de Junho de 1930 (saídas de Branquinho da Fonseca, Edmundo de Bettencourt e Miguel Torga) foi "um dos mais fiéis pilares da revista salva do naufrágio" , fora lavrada precisamente na casa onde António Luís Moita e seu pai ouviam aquelas novas sobre o pequeno "Chico" António.
Foi ainda por essa altura - Outubro de 1940 - que este passou a residir em Lisboa, em casa do avô materno, o Prof. António Flores, docente da Faculdade de Medicina.
Aquando desta sua ida para a capital já Cristóvam Pavia transportava consigo uma sólida - apesar de curta - vivência familiar ligada ao mundo rural e que ao longo de toda a sua vida sempre o acompanhou. Giovanni Papini disse um dia ser a cidade uma represália à natureza selvagem. Nada mais justo para o jovem poeta, para quem Lisboa, plena de "pasmo, calor e moscas", seria o espaço urbano opressor por excelência, essa Lisboa cuja aproximação o angustiava e da qual ele expressou mais tarde na sua Litania da Rua dos Fanqueiros aquele que entendia ser o seu ambiente físico e espiritual: " Ó porque será este chulé ibérico/ Em Espanha é pitoresco mas aqui é pindérico/ Ó Rua dos Fanqueiros/ Ó Salazar com teu rebanho de sacristas/ Pensar que isto já foi terra de sardinha e de fadistas […]."
Sete anos mais tarde começou a frequentar o 4º ano do Liceu D. João de Castro. Nada sei do que Cristóvam Pavia escreveu durante estes anos (1940-47) - a sua pouca idade certamente não foi óbice a um aprofundamento do seu sentir poético - até porque muitos dos seus escritos se encontram ainda por revelar, escondidos por vontade expressa do poeta, que começou por esta altura a utilizar o pseudónimo. Que nos revelariam eles? Certamente uma poesia bastante precoce, fruto de uma vida extremamente viva e vivida - afinal, a "bagagem" com que se fazem os versos, como queria Rilke e que seu pai, numa das sua últimas poesias, intuiu : "Perdeu de todo seu brilho/ A esperança de dias novos/ E embora haja os renovos/ Com que me não maravilho/ Vou sentindo que são novos/ No fresco olhar de meu filho". O poema, significativamente, intitula-se Reverdecer. Expressariam ainda, creio-o, partes do seu mundo interior, vasto, sensível e complexo mas sempre muito ligado às pessoas, aos animais, às coisas e aos acontecimentos. Numa tão lúcida quanto bela abordagem à sua produção poética, o poeta José Bento referiu ser esta " expressão do homem que ele foi: há um profundo paralelismo entre os seus poemas e os dias que ele viveu". E mais adiante acrescentou: "A poesia de Cristóvam Pavia é a revelação de si próprio, duma personalidade em conflito com o mundo em que vive e em que procura uma fuga pela recuperação da infância morta […]. Pode considerar-se a sua poesia uma continuação e uma superação do espírito da Presença, a que não podia deixar de sentir-se ligado por seu pai […]."
Enquanto Francisco Bugalho demonstrava nos seus versos reconhecer no filho não apenas o germinar de uma expressão lírica fundamental mas também o continuador com novas planícies para descobrir e editava, em 1947, o seu último livro (Paisagem), Cristóvam Pavia passava no liceu pelo que considerava ser " a horrível e impossível Arte Social". Num poema intitulado Aspiração, desabafou: "Oh, ser eu qualquer palerma/ Vestindo decentemente/ Viver sempre bem alegre/ E agradar a toda a gente. / Ser um rapaz mais vulgar, / E deixar as fantasias./ (Este sentir e pensar/ só serve para arrelias) / E ser o campeão da bola/ Na equipa do liceu, / E ser o moço estarola / que nunca se comoveu." . Neste singelo e muito sincero poema encontram-se já expressas duas características fundamentais da sua personalidade e que de forma marcante se projectaram nos seus poemas: uma timidez profunda e algo doentia e a inadaptação a conveniências sociais e literárias, derivadas, a meu ver, do fascínio pelas vivências infantis e subsequente tentativa de regresso à infância (mesmo que realizada apenas através da reconstrução interior e espiritual das suas coordenadas básicas), o esforço de um quimérico enraizamento num paraíso que o poeta apercebia cada vez mais perdido. Estes aspectos, bem como a sua grande religiosidade, são essenciais para a compreensão da sua poesia e, talvez, de toda a sua (curta) vida. Como fundamental é também um acontecimento que no ano seguinte o marcou decisivamente: a morte prematura de seu pai em 29 de Janeiro de 1949.


3.

Os poetas voltarão a ser o que nunca deixaram de ser: mandarins inclinados sobre o mundo uns dos outros, balbuciando segredos.

Jean Cocteau

José Régio foi uma das personalidades que apoiou o General Norton de Matos na fase de ditadura mitigada a que correspondeu o período da sua candidatura à Presidência da República. Planeando ir a Beja ao comício que o candidato aí realizaria em 30 de Janeiro de 1949, " uma ocorrência inesperada e dolorosa impedirá essa viagem. Francisco Bugalho morre em Castelo de Vide no dia 29, e José Régio vai acompanhar o corpo do camarada das lides presencistas até à sua última morada. A amizade sobrepôs-se ao ardor - se por acaso o havia - da luta politica."
Para Cristóvam Pavia foi um golpe duríssimo. Mais do que um modelo, seu pai era para si o garante da permanência da sua infância, pelo que o jovem poeta se sentiu como um garoto desamparado e obrigado, em consequência, a assumir a sua "situação de adulto". O braço forte do pai já não mais o poderia amparar.
Aquele que se pensa ser o primeiro poema de Cristóvam Pavia escrito após esse trágico acontecimento possui marginalmente uma nota dolorosa: "Para ser lido muito devagar". Chama-se "Écloga": "Na folha bailada, / levada / no vento, / vai meu pensamento. / Na cinza dolida, /espargida / pelo rio, / o meu olhar frio…/ E no teu sorriso / da mais lisa / quietação, / o meu coração.". Cito António Luís Moita: "Francisco Bugalho (que intuíra, num poema escrito anteriormente, vir a chegar, sem dar por isso, ao fim, sem viver o que quis) morrerá pouco tempo depois de ter escrito Reverdecer. Mas a sua voz, ao calar-se, não fica de facto silenciosa. Outra, dela nascida, vai iniciar uma rápida e dolorosa ascensão, até atingir, nos seus melhores momentos - como afirma José Bento - 'a mais funda expressão mística da poesia portuguesa da segunda metade do século'."
António Manuel Couto Viana, que com David Mourão-Ferreira e Luís de Macedo dirigiu a revista Távola Redonda (1950-54; 20 números) onde Cristóvam Pavia colaborou, dá o seguinte retrato do poeta, um ano depois: "Tinha então dezasseis anos (menos 10 do que eu), era alto e espesso, com uma face menineira onde um farto buço aloirado destoava. Os olhos, límpidos, escondiam-se por detrás dumas lentes grossas. […] Vestia de luto e, na lapela do casaco, exibia um distintivo da Causa Monárquica. Falava com frases curtas, rápidas, quase com brusquidão, num atropelo de tímido. Olhava fixo, olhos nos olhos, acenando, violentamente, com a cabeça, a uma concordância ou a uma negativa." . E mais adiante, ainda: " Apesar da sua poesia adulta (adulta no rigor com que se estreitam fundo e forma), Cristóvam não passava, nessa época (e por quanto tempo ainda?) de um adolescente." . É o próprio Cristóvam Pavia que conta a A.M. Couto Viana a procura do estado de pureza, a busca insistente da infância: "Sentia que o menino que fui estava irremediavelmente morto, sentia uma grande saudade e ao mesmo tempo uma pena enorme - é o único morto a quem ninguém põe flores, o único de quem ninguém se lembrava, nem a mãe." . Na continuação deste seu estado de espírito, surge o seu magnifico "Réquiem", dedicado ao menino que habitava em si - e que continuaria a habitar.
No início da década de 50 os contactos com António Luís Moita intensificaram-se e aprofundaram-se. Este poeta, conjuntamente com António Ramos Rosa, Raul de Carvalho, Luís Amaro e José Terra tinha fundado em 1951 a revista Árvore (1951-53; 4 números) - a cujo titulo tiveram de acrescentar "folha de poesia", por o regime salazarista não permitir "a publicação de colectâneas de versos ou prosas sob a designação de revistas" . Cristóvam Pavia colaborou nessa revista, levado pela mão de António Luís Moita. Nesse mesmo ano, este editou o seu livro Rumor, aparecido sob a chancela das "Edições Árvore". O seu poema Rumor: "Ah, que não venham lúcidos, falar/ localizar a fonte da torrente…/ como podem sentir que há-de ser mar / esta indizível, trémula nascente?/ Como podem sentir que há-de ser mar/ este indizível, trémulo perfil?/ Ah, que não venham lúcidos falar…/ Penso Dezembro quando canto Abril.".
Os contactos entre os dois poetas ganharam maior intimidade no Verão de 1951:  “As formais visitas de família - que tinham sempre lugar em Castelo de Vide - serviram-me de pretexto para a aproximação. Eu mal lhe conhecia os versos; mas adivinhava, naquele adolescente tímido, sempre fugitivo, um ser invulgarmente sensível. Por gratidão à memória do pai, estendi a mão ao filho. E ele acabou por aceitá-la, estreitando-a na sua. Tinha, nessa altura, 17 anos e eu 25. A amizade que ligara nossos pais iria - como veio a acontecer - apadrinhar a nossa, prosseguir em nós. E, como era tradicional, cimentar-se nas férias."
Este estreitar de laços tinha muitas vezes tradução em longas caminhadas conjuntas pelos contrafortes da Serra de S. Mamede, após o que os dois poetas conversavam sobre tudo um pouco. Contudo, quando a conversa tocava o tema "Cristóvam Pavia", este, sempre tímido e reservado, defendia-se, aflito: "Logo escrevo e digo-lhe tudo!". Era através dessas epistolas - cartas e postais - que Cristóvam Pavia deixava escapar um que outro projecto, realizações ou estados de espírito. Estes, ora pendiam para uma salutar alegria ora para a tristeza profunda, numa rápida e desconcertante alternância de humores."Eis a minha Vida: / Um sorriso entre lágrimas…/ Uma lágrima entre sorrisos…/ E a Poesia pairando sobre tudo!", como ele mesmo um dia afirmou num poema dedicado a David Mourão-Ferreira. Na vida desse "poeta de fasto talento e nefasto signo" como lhe chamou João Gaspar Simões, uma das maiores alegrias foi um filme que certo dia viu em Lisboa, intitulado “O Retrato de Jennie, "a coisa mais maravilhosa que conheço". A película, com Jennifer Jones, Joseph Cotten e Lilian Gish, entre outros, é - resumidamente - a história de um jovem pintor que encontra uma rapariga de 13-14 anos, pela qual se apaixona. Contudo, se a moça umas vezes lhe parece ser uma realidade, noutras parece-lhe ser um sonho, nomeadamente porque nalgumas semanas envelhece vários anos, tornando-se uma mulher. Este tema, tão caro Cristóvam Pavia por coincidir com um problema pessoal de amor escondido, movendo-se portanto entre o que é e o que não é, entre a realidade e o sonho - que se expressaria também na sua poesia, de forma nada sensual mas antes reflexo de um "amor todo alma" - fascinara este eterno menino, ainda mais feliz quando Sebastião da Gama, poeta que muito admirava, expressou opinião idêntica à sua em relação ao filme. No entanto e ao contrário do poeta de Estremoz, o jovem "Chico" António nunca encontrou aquela pessoa que lhe "enchesse a vida" (sic), como ele desejaria. Durante esse período de estreitas relações com António Luís Moita, Cristóvam Pavia matriculou-se na Faculdade de Direito de Lisboa. Certamente muito pouco identificado com a temática do curso, o seu espírito dirigia-se continuamente para as planícies tão suas. O poema Planície ("Das folhas dos lameiros amarelos, / Da baixa neblina gotejante, / O manso sortilégio veio chegando…/ E vós, Amigos, vós julgais-me aqui ") tem a indicação marginal "Lisboa, Faculdade de Direito, dia 9 de Novembro ou 10 de Novembro de 1951". Apesar desta sua inadaptação, nos três anos seguintes persistiu em matricular-se em Direito. Ao contrário de seu pai, não chegou a terminar o curso. Em 1954, finalmente, matriculou-se na Faculdade de Letras, em Filologia Germânica, curso que, aliás, nunca completou já que, apesar de ter concluído a parte curricular, não apresentou a tese então requerida.
A partir de 1954 o contacto de Cristóvam Pavia e de António Luís Moita atenuou-se. Este último casara-se, pelo que Castelo de Vide lhe começou a rarear, acabando por se frustrarem muitos dos possíveis encontros. Em 1956 Cristóvam Pavia foi obrigado a cumprir serviço militar em Mafra, enquanto António Luís Moita deu à estampa o seu segundo livro, Teoria do Girassol. Com um lirismo autêntico que continuou Rumor, expressa a meditação e posterior cristalização de experiências e emoções - José Gomes Ferreira dele disse um dia que "escrevia com a vida" - o que, em meu entender, é o elo de ligação de toda a sua poesia, e que igualmente explicará os seus por vezes longos silêncios literários.
Entretanto, em 1959, Cristóvam Pavia publicou o seu único livro de poemas, a que simplesmente deu o título de 35 Poemas, tinha então 25 anos. Morreria precisamente dez anos mais tarde. António Manuel Couto Viana observou que a sua vida teve várias coincidências deste género. Uma delas, prolongada no tempo, relatada pelo poeta Nicolau Saião: seu tio Adolfo Bugalho (médico, pintor e autor de apontamentos teatrais) com quem Cristóvam falara várias vezes do seu interesse por ”O Retrato de Jennie” e que aquele não tivera oportunidade de ver no cinema, faleceu precisamente horas antes da sua única projecção na RTP.
Numa critica ao livro, já após a morte do poeta, exactamente 20 anos após o passamento de seu pai e 40 depois da estreia deste na Presença, José Régio, que Cristóvam considerou "le plus grand poète du Portugal", disse:"Antes de mais, autenticamente, trinta e cinco poemas. Quero dizer que se me afigura impossível possuir o sentimento da poesia e não sentir, ao ler essas composições, que se está comunicando com um verdadeiro poeta. Nem, de outro modo, haveria a comunicação. […] Como também sucede com muitos outros, que a isso devem grande parte do seu triunfo público e da sua força intrínseca, - da sua poesia comunicativa - as coisas ditas no livro de Crist’vam Pavia foram vividas." . É bem isto a poesia de Cristóvam Pavia: uma nostalgia tornada comunicação. Apesar da sua timidez extrema, tinha uma profunda necessidade de comunicar. Exemplo deste imperativo foi o que ocorreu certa vez em Lisboa: viajando de eléctrico avistou António Luís Moita, que passava. Distraído, desceu impetuosamente do veículo em pleno andamento. Com naturais consequências, que quase foram trágicas…
E José régio foi verdadeiramente imparcial na sua critica, uma vez que já anteriormente havia elogiado a sua poesia, ainda antes de saber ser Cristóvam Pavia o pseudónimo do jovem filho do seu amigo e companheiro de Coimbra - uma vez chegou mesmo a fazê-lo à mãe do poeta, quando ambos viajavam de comboio.
O vasto e complexo mundo interior de Cristovam Pavia, no entanto, não se preenchia em pleno com este pseudónimo, tendo o poeta sentido necessidade de escrever, mais tarde, também sob os "semi-heterónimos" de Sisto Esfudo, Marcos Trigo e Dr. Geraldo Menezes da Cunha Ferreira, " que traduzem, respectivamente, e grosso modo, um humor anárquico e surreal, um erotismo exaltado e um portuguesismo lorpa." . E Cristóvam Pavia, para além do simples pseudónimo que impossibilitasse qualquer tipo de confusão com o nome do pai, que significará? A opinião de António Luís Moita sobre este assunto é bastante interessante. Segundo ele, o nome de Cristóvam deriva de "Cristovão", santo protector dos viajantes (dos caminheiros, portanto - e como ele gostava de andar!) , terminando numa forma mais bela e inacabada do que "Cristóvão", deixando assim tudo em aberto. Esta presença do inacabado também aparecerá na escolha de Pavia (como diz o provérbio, "Roma e Pavia não se fizeram num dia"). Seria como se o poeta se reconhecesse como um homem em construção permanente. Por tudo isto lhe chama António Luís Moita "Caminheiro do Sonho". Como ele próprio refere, "toda a grande poesia é ambígua, embora clara"…
Cristóvam Pavia chamava aos poetas "mastigadores do mundo". Este deixou na sua boca um travo amargo, suficientemente amargo para nos primeiros anos da década de 60 o ter obrigado a alternar a sua permanência entre Portugal e Haidelberg, na Alemanha - para onde partiu em Agosto de 1960, aí trabalhando como ajudante de pedreiro integrado numa cura psico-terapêutica. Pelo meio, breves passagens por França e pela Suiça.
Quanto a António Luís Moita, uma série de problemas pessoais graves tornaram-no incomunicável e incapaz mesmo de escrever durante vários anos, logo após a edição pela "Portugália" do seu livro Sal (1962), que reuniu poesias de 1957 a 1961.
Este, alguns anos mais tarde, ao folhear um jornal da tarde, leu a notícia simples, fria e dura, da morte do amigo "Chico" António, em 13 de Outubro de 1968, sob o rodado de um comboio, em Belém. Morrera Cristóvam Pavia, por coincidência no mesmo dia em que no Brasil falecera também Manuel Bandeira, um dos poetas (se não mesmo o poeta) que o jovem mais admirava…

4.

Por que tento durar/ além da minha morte?/ Num
poema ou num beijo/ Por que tento durar?

António Luis Moita

"A última imagem que retenho do 'Chico' António adulto é a de um homem forte e grande que copiou do pai o bigodinho estreito. Mas, ao fitar-lhe os olhos, é sempre o menino que me surge - o mesmo que, vai para quarenta e cinco anos, vi em Castelo de Vide, suspenso num pégaso de luz. O mesmo S. Francisco de Assis. Sem a aptidão prática de Francisco Bugalho (aquela que permite, a uma natureza invulgar, adaptar-se, sem grande sofrimento, ao ramerrão e às arestas da vida) Cristóvam Pavia herdou do pai toda a aptidão lírica - que viria a sublimar, mais tarde, marcado o espírito por aquela aceitação de tudo ( expressão insistente na sua poesia ) que só os eleitos são capaz de sentir profundamente e transmutar em beleza.". Apesar de, como diz António Luís Moita, os poetas terem sido feitos para resistir, Cristóvam Pavia escolheu a "saída pelo fundo" (expressão de um poema seu).
Nicolau Saião é da opinião que Cristóvam Pavia optou pelo comboio como forma de abandonar a existência devido ao facto de, desde pequeno, se sentir fascinado por esta máquina, a qual diariamente observava da Quinta da sua infância e na qual se transportava de Lisboa a Castelo de Vide, ficando mesmo à sua porta. Simbolicamente, foi essa a viagem derradeira, mergulhando-o para sempre no mundo perdido. Realizou assim a buscada consubstanciação " com a criança morta que trazia em si e isso não o podia fazer sem caminhar definitivamente na morte até a encontrar e serem um só, na unidade derradeira e total.".
António Luís Moita, além de ter trabalhado numa empresa petrolífera, foi membro da direcção da Associação Portuguesa de Escritores e editou em 1985 o livro Cidade sem Tempo. Nele, além da interessante incursão pela temática alquímica, nomeadamente decorrente do contacto com o pensador Abel Teixeira, inclui um profundo e comovente poema dedicado aos amigos Francisco Bugalho e Cristóvam Pavia - Reencontro, de seu nome.
Em 1991, o poeta participou em Portalegre no programa de rádio Mapa de Viagens, realizado por Nicolau Saião ("Um Serão com Cristóvam Pavia"), meses depois de haver publicado uma evocação deste seu amigo num jornal de Castelo de Vide.
Como ele próprio disse, "mortos e vivos completam-se em transmissão permanente, um fio que, embora invisível, se escuta, para perdurar, aqui e além, em surdina".



***

JOÃO GARÇÃO (Portugal, 1968). Poeta, pintor e ensaísta. Contato: jfvgarcao@sapo.pt. Página ilustrada com obras de Egon Schiele (Áustria), artista convidado desta edição de ARC.






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