quinta-feira, 12 de novembro de 2015

LÊDO IVO | Entre a luz e a sombra


Eu estava entre a luz e a sombra. Menino, costumava acompanhar meu pai em suas peregrinações pelos cartórios e outros lugares de sua faina forense ou cotidiana. Mas, de todos os lugares visitados, os que mais me atraíam eram as lojas de ferragens, na Rua do Comércio. Eram espaços habitados pela solidez e materialidade da vida: lâmpadas, chaves de fenda, martelos, roscas, baldes, comutadores elétricos. Nos balcões e prateleiras, uma galáxia de instrumentos e objetos estava à espera da necessidade dos homens. E, cegos e expectantes, eles me seduziam: coisas espessas, impenetráveis. Por mais que eu interrogasse a sua mudez, não respondiam. Eram formas silenciosas. Uma escuridão as envolvia, abrangendo toda a loja, mergulhada na penumbra.
As visitas às lojas de ferragens eram quase sempre ao entardecer, quando meu pai fechava a porta do seu escritório de bacharel e, guardando no bolso uma chave que parecia ser a dona de numerosos pequenos destinos, descia comigo a escada rangente e começava a cumprir as últimas obrigações miúdas.
Chegávamos enfim à loja de ferragens. Eu deixava a luminosidade do dia carregado de maresia e mormaço e penetrava no mundo da sombra. Antes de se abater sobre as proas dos navios ancorados, as estacas negras dos trapiches, os telhados das casas e as pedras das ruas, a noite começava nos armazéns. Fora, imperava a luz do dia como uma corola ainda aberta; e, dentro, entre chaves de fenda, cadeados, porcas e alicates, a escuridão avançava. Enquanto meu pai conversava com um desembargador ou trocava impressões com o caixeiro a respeito da mercadoria a ser adquirida, eu sentia travar-se em mim o litígio que haveria de seguir-me a vida inteira: estar sempre entre a sombra e a luz, o mundo aberto que o olhar mais distraído tem o poder de conquistar e a região escura e indevassável que sempre resiste – numa resistência que é, na verdade, uma recusa – às incursões mais sinuosas e atrevidas dos homens.
A noite ainda não começara a descer sobre Maceió e as dunas que caminham imperceptivelmente na treva, sobre os currais de peixe plantados entre as ondas, o sinal semafórico da Capitania dos Portos, e o farol que vigiava o Mar-Oceano, e todavia já era noite dentro da loja de ferragens. E aquela noite prematura, entre objetos heteróclitos, envolvia-me e estabelecia comigo um pacto, como se desde a infância eu estivesse condenado à sua respiração.




Ao longo de minha vida e da prática de um ofício decidido naquele momento em que a luminosidade da tarde e a treva da noite escolhiam o balcão de uma loja de ferragens para o seu combate imemorial, não têm sido poucas as vozes curiosas ou austeras que me interrogam a respeito do instante em que a experiência vivida (que é uma experiência da imaginação) se converte em linguagem e em poema. Aos que reclamam de mim a inabalável teoria poética, respondo com a dúvida e a decepção.
Há poemas que nascem, ou parecem nascer instantaneamente, forjados por algum deus generoso ou banhados pela brisa da circunstância afortunada. Outros exibem as marcas de uma longa maturação, insinuando-se, ainda tateantes, na página branca. E há outros que decerto terão sido gerados no inconsciente do poeta no tempo em que este, menino, ainda não dispunha de uma linguagem para exprimi-los e estabelecer, através deles, a comunicação com os seus semelhantes. O poema “As ferragens”, do meu livro de poemas Curral de peixe(1995), pertence a essa linhagem remota e demorada.
Desde a infância eu desejava exprimir a divisão do mundo em luz e treva, em razão e desrazão, em origem e lugar de nascimento, em partida e evasão; eu desejava proclamar a ligação obscura entre as chaves de fenda, as porcas e os parafusos e as constelações do céu sempre curvo de minha cidade natal. Foi preciso esperar mais de sessenta anos, para poder dizer, no poema “As ferragens”, que



Em Maceió, nas lojas de ferragens,
a noite chega ainda com o sol claro
nas ruas ardentes. Mais uma vez o silêncio
virá incomodar os alagoanos. O escorpião
reclamará um refúgio no mundo desolado.
E o amor se abrirá como se abrem as conchas
nos terraços do mar, entre os sargaços.
Nas prateleiras, os utensílios estremecem
quando as portas se cerram com estridor.
Chaves de fenda, porcas, parafusos,
o que fecha e o que abre se reúnem
como uma promessa de constelação. E só então é noite
nas ruas de Maceió.


***

Do livro O Ajudante de Mentiroso | © Lêdo Ivo, 2009 | Publicado pela Educam, Editora Universitária Candido Mendes | Reproduzido com autorização do Autor. Página ilustrada com obras de Gonçalo Ivo.






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