domingo, 10 de janeiro de 2016

JACOB KLINTOWITZ | Marcello Grassmann: matéria dos sonhos


Talvez nada seja mais belo, poético, revelador, profético e inspirador do que a “Tempestade”, de 1612, a última peça de Shakespeare (1564-1616). E, é provável, que este texto outonal seja o testamento do poeta, a derradeira mensagem, a sua síntese sobre a humanidade e a saga dos homens. Nele, Próspero, a sublime criatura sonhada por William Shakespeare, define a natureza do homem e da vida: “Somos feitos da matéria dos sonhos”.
Ao contemplar as formas criadas por Marcello Grassmann, a extraordinária qualidade do seu desenho, o aprofundamento do tema de maneira tão elevada e com tanta propriedade, resta em nós a convicção de que entramos num universo antes desconhecido e agora revelado pela lucidez do artista. Este mundo que ele nos descobre e do qual sentimos que dele habitava em nós certo conhecimento, agora recuperado e reconhecido, esta enevoada e submersa realidade: a estranheza deste lugar de cavalheiros e armaduras, animais míticos, seres das sombras, quimeras, donzelas intangíveis e belas, e no qual o destino paira sobre todos. É o mundo feito da mesma matéria de que se fabricam os sonhos.
Marcello Grassmann elabora com a matéria sutil e a sua revelação é a de uma estrutura metafísica e ideal, densa e soberana, mas, e aqui uma das marcas do artista, construída na atmosfera da energia delicada e inapreensível, aquela feita de mitos e fábulas, que somente se acende quando a consciência adormece. 
Este universo manifesto é fatal e impassível, e só nos contempla como personagens.
 Muitos poderão acreditar que se trata do resultado de uma vida inteira de trabalho e do aprimoramento de um artista que, afinal de contas, aos 87 anos, foi um dos nossos decanos, patriarca e santo protetor da arte brasileira. E também teria razão. Ou certa razão, o que é menos do que a razão. Pois Marcello Grassmann (23.9.1925 – 21.6.2013) desde o seu início sempre se destacou devido a sua originalidade e extrema consciência de sua individualidade. Entretanto, o artista, com o tempo a favor para elaborar a própria identidade artística, afirmou de maneira esplêndida a singularidade de sua iconografia. Marcello Grassmann, um dos artistas destacados dos séculos XX e XXI, é referência seminal da arte brasileira.
A respeito de artistas e intelectuais que guardam durante a vida a coerência a suas ideias fundamentais, Gilbert Keith Chesterton foi definitivo, em famoso e crítico ensaio de 1905 sobre o seu amigo George Bernard Shaw, “O Sr. Bernard Shaw” (Hereges. G.K. Chesterton. Tradução de A. E. Angueth de Araújo e Márcia X. de Brito. Ed. Ecclesiae. Brasil. 2014.):

Sei perfeitamente o que o Sr. Bernard Shaw estará dizendo daqui a trinta anos; estará dizendo o que sempre disse.
Na verdade é um grande erro supor que a ausência de convicções definidas proporcione agilidade e liberdade mental. Um homem que acredita que qualquer coisa seja imediata e espirituosa o faz porque traz consigo todas as defesas. Pode aplicar o seu teste num instante. O homem empenhado num conflito com alguém como o Sr. Bernard Shaw pode supor que ele tem dez faces; da mesma forma, um homem que inicia um duelo com um brilhante espadachim pode imaginar que a espada do inimigo tenha se multiplicado por dez. Mas, realmente, não é porque o homem esteja lutando com dez espadas; é porque aponta com uma única, para um objetivo especifico. Ademais, um homem com uma crença definida parece sempre grotesco, porque não muda com o mundo. Está sobre uma estrela fixa, e a Terra gira, lá embaixo, como um zootrópio. Milhões de homens de paletós escuros se consideram sãos e razoáveis simplesmente porque sempre aderem à última insanidade, porque correm de loucura em loucura no redemoinho do mundo.

Do assunto e do tema.
No caso de Marcello Grassmann o assunto é fundamental. Existe a qualidade excepcional do seu desenho e a maestria de sua gravura. Isto é óbvio e é deslumbrante.
Por muitas décadas o “assunto” foi banido das artes plásticas em favor do tema, entendido como composição, linha, cor, ritmo, intenção - sim, havia isto, a “intenção”, uma espécie de discurso com objetivo moralístico, político ou de percepção modificada. E ainda existe, fortemente impositivo, tanto é que os artistas e os seus eventuais arautos fazem declarações de princípios, escrevem textos para acompanhar as suas obras e exposições, enfatizando a sua “intenção”, o que pretendem e qual o problema estético, sociológico ou moral colocado, ou, o que é notável, a maneira como se propõem a modificar a percepção do público ou, mais incrível ainda, como querem alterar as opiniões do público sobre vários assuntos… Pode alguma coisa ser mais totalitária que esta pretensão?
De qualquer maneira, como a atualidade artística do circuito oficial entronizou o objeto numa espécie de novo naturalismo  travestido de vanguarda (um termo militar), evita-se falar em assunto e tema.
É impossível entender ou perceber o trabalho de Marcello Grassmann sem levar em conta o assunto tratado. É em torno desta essência que ele elabora. É claro que isto não elide considerar o tratamento deste assunto, a abordagem, a maneira como é feito, os liames históricos, o lugar no espectro espiritual em que o artista se situa ou com o qual se identifica. Talvez não seja necessário para alguns conhecer a tradição desta iconografia e a maneira como ela se coloca na história das ideias e na história religiosa e mesmo na sua trajetória mística ou mitológica. Ou de que maneira esta iconografia se insere na história das civilizações. Para algumas pessoas será suficiente apenas a identificação emocional, a compatibilidade com a vibração do artista, a percepção do terrível ou do maravilhoso que esta obra encerra em si mesmo. O pavor ou o deslumbramento. E transformar para si mesmo - quem sabe? - que o fantástico, cerne desta obra, nada mais seja do que o cotidiano, o dia-a-dia finalmente observado ou aceito. O fantástico banalizado. Mas acredito que estes são poucos e, mesmo para estes, me parece que é insuficiente.
É preciso dizer com clareza que há gradações de entendimento. E uma hierarquia de gosto. Mesmo quando nos referimos ao paladar gastronômico, há diferenciações e graus. Não basta dizer gosto ou não gosto se se pretende um encontro profundo com a produção cultural. Em arte a nuança é tudo. Mais que a nuança, o subjacente é tudo. O que permeia, o não explícito, o intervalo, o silêncio entre os ruídos, o oculto entre os sinais, o simplesmente impregnado. A nuança é o sol e a lua, o dia e a noite e, quando se trata de Marcello Grassmann, o subjacente é a treva e o diálogo entre o perecível e o destino, entre a fragilidade do vital e a entropia da morte.
Em certos artistas o assunto e o tema estão de tal maneira impregnados um do outro, estão tão mesclados, que não é possível saber onde está um, onde está o outro. A separação não os tornaria independentes, mas anêmicos. Neste caso o assunto não é a anedota visual ou literária, a descrição de uma situação, o encadeamento lógico ou associativo de eventos; o fundamental é o mistério da narrativa, a gesta da aventura humana transformada em linguagem. Em ritmo. E forma. E símbolo. Note-se que há, igualmente, diferença essencial entre o sinal e o símbolo. O sinal faz parte da comunicação imediata e o símbolo, por representar o núcleo essencial e modelar de um conceito é permanente. Hoje, com o rebaixamento que a sociedade de massa almeja como proposta existencial, se é que podemos chamar assim, o que muitos querem é que o sinal seja a essência e, com isto, eles se salvariam da mediocridade, pois todos estariam no mesmo patamar de insignificância. A sociedade de massa odeia a diferenciação. Ama a bravata – a nacionalista, então… – e abomina a reflexão.
No século vinte nós escutamos falar que o assunto não interessava. Era um dogma. O assunto era uma anedota literária, resquício de rituais narrativos ultrapassados. E a arte, agora, apenas se ocuparia de seu verdadeiro objetivo, o tema.  Ai a essência da atividade artística, a cor, a forma, o ritmo, a composição. A razão de ser da arte, a sua natureza, um substrato que poderia ser identificado mesmo nas obras de outros períodos históricos. Para os artistas, o assunto, esta concessão literária, sempre teria sido um véu encobridor, um disfarce, capaz de tornar a obra de arte acessível a mecenas e público obtusos. Agora, finalmente libertos dos grilhões e dos rituais, os artistas nos apresentariam a arte pura, a arte feita de formas e cores. Durante muitos anos houve um delírio formal, novas regras, grupos inteiros de artista a trabalhar de maneira semelhante, a produzir obras quase idênticas.  O jogo era tão atraente que todos se envolviam nestas manifestações da inteligência, nestas sutilezas, neste formalismo que parecia expressar tudo, explicar tudo e, na sua amplitude abstrata, contar qualquer coisa ou exatamente aquelas coisas que nos interessassem. A abstração formal, por seu caráter metafísico ou por sua essencialidade, pode ser mercurial, adaptada ao tamanho da consciência que a contempla. Entretanto, a vida social e humana, não parece obediente aos ditames da proposta racionalista e iluminista, inclusive ao conceito da arte como uma evolução permanente, como parece ser o caso da história da ciência.
Ao longo destes tantos anos que nos vem do impressionismo, os homens continuam sequiosos de imagens figurativas, de símbolos figurativos e a sociedade continuou a produzi-los. Às vezes, através da arte; outras ocasiões, através das novas expressões e mídias surgidas, como a fotografia, o cinema, a televisão, a holografia, o computador; ou nas artes aplicadas, como nos objetos utilitários, nas artes gráficas e na publicidade. A arte, apesar das teorias reducionistas, de qualquer maneira, não se esquecera das imagens figurativas, como o provam as expressões realizadas, sob rótulos diversos e levemente mistificadores, como os metafísico, surrealismo, pop art, nova figuração, hiper-realismo, fauvismo, romantismo, expressionismo, etc., Títulos justificatórios para permitir ao homem contar as suas fábulas. Nestes casos, permanentemente, o assunto e o tema parecem confundidos e o desprezo (historicamente recente) pelo assunto mais confuso e injustificável ainda. 
No caso do artista brasileiro Marcello Grassmann o assunto e o tema são uma única e mesma coisa. Idênticas. Não há diferença entre o que o artista conta e a sua arte. No seu trabalho a divisão conteúdo e forma não tem sentido, pois o seu conteúdo narrativo é a sua própria forma. Na medida em que o jovem artista avançou para a plenitude, o assunto se define, organiza e esclarece. Este amadurecimento era observável pela cristalização do assunto. Grassmann domina o seu assunto e isto o coloca como um artista senhor do seu ofício e seu tema e assunto. Ele é capaz de fazer aflorar, com pleno domínio, essas figuras e cenas e elas só são capazes de surgir quando o artista está receptivamente preparado; mente disponível, mão habilidosa, recepção e transmissão. Para Marcello Grassmann o percurso e a maturidade estiveram ligados à emergência e aceitação do seu assunto.  Na medida em que o artista deixou-se submergir no oceano de sua estranha memória genética, percepções e vidências, mas emergiu uma arte grandiosa e segura e mais se estabeleceu o pleno domínio de uma fatura virtuosa, tornando esta arte abrangente e completa, digna representante de uma família expressiva de permanente tradição na história das civilizações. Até agora falamos do assunto Grassmann, na tradição expressiva, memórias, percepções, vidências, recepção, transmissão e mente disponível. Certamente é hora de tornar estas palavras em conceitos mais explícitos.

Da história e da filiação.
Marcello Grassmann está vinculado ao grotesco, é filho do grotesco, ele emerge desta linhagem artística plena de imaginação, volutas, representação de formas e ideias excêntricas. O próprio grotesco (a origem é a grota, caverna) sofreu transformações ao longo dos anos e o termo já foi tão usado que pertence ao rol das palavras desgastadas, excessivamente manipuladas, com e sem propriedade. A palavra foi usada originariamente para designar um tipo de ornamento descoberto na Itália em escavações realizadas no século XV. Era uma arte não romana, antiga e, na verdade, um velho fenômeno expressivo anterior ao apelido. Para alguns o grotesco deveria incluir as artes chinesa, etrusca, asteca, germânica e, simplesmente, toda arte antiga.
A primeira condenação conhecida do grotesco é do grande Marcus Vitruvius Pollio (Séc. I a.C.). O famoso desenho de Leonardo da Vinci, “O Homem de Vitruvio”, é justamente uma resposta renascentista ao seu trabalho teórico e uma constatação das proporções ideais do ser humano a partir da colocação de Vitruvius sobre o número de ouro ou da proporção divina. Marcus Vitruvius Pollio era um brilhante homem de pensamento objetivo, límpido, racional. Era um clássico. Ele nos diz o seguinte:

…todos estes motivos provenientes da realidade são rechaçados, agora, por esta moda injusta. Pois, agora, se prefere pintar nas paredes, monstros no lugar de reproduções claras do mundo e dos objetos.

A luta entre o realismo objetivo e o realismo psicológico ou entre o naturalismo e a imaginação, entre o clássico e o romântico, faz parte da história da humanidade.  De qualquer maneira, os conceitos do grotesco se alargaram tanto, houve tão ampla sorte de sutilezas que é, talvez, mais interessante o deixar como uma referência básica e genérica.
 Marcello Grassmann pertence ao grotesco e ao fantástico, como Hieronymus Bosch, Giuseppe Arcimbold, Giovanni Piranesi, Brueguel, Gustave Moreau, Francisco Goya. Odilon Redon, William Blake. E cada um deles, como tantos outros que poderíamos elencar, é diferente dos demais.
Na verdade certos rótulos são mais gavetas facilitadoras das classificações históricas do que rigorosas normas definidoras e definitivas. E cada um destes artistas é diferente dos outros, tem personalidade única. Evidentemente os rótulos ou as classificações facilitam o exercício didático, ainda que, às vezes, dificultem o diálogo com a individualidade.
É como o expressionismo onde, evidentemente, Marcello Grassmann pode ser colocado. É um termo excessivamente amplo e tem a sua tônica no domínio da emoção sobre a razão. O exemplo mais conhecido desta oposição é ilustrado por Eugene Delacroix versus Dominique Ingres. Delacroix é o heroico percursor do gestual, da pincelada matérica, da simplificação, da emoção. Ingres é o autor do desenho, do traço preciso, do contorno perfeito, do domínio da razão. Dai poderíamos concluir que a pintura é a emoção e o desenho expressa o raciocínio, o pensamento. Mas o que dizer das pinturas que falam a partir do raciocínio lógico e do desenho que é puramente emocional e gestual? A cada caso, a cada artista, a sua individualidade. E a nós, os que os contemplamos, a cada um deles o nosso particular e intransferível envolvimento.

Figuras. Fantástico. Símbolos.
Como também ocorre em Shakespeare, na citada “A tempestade”, que igualmente gerou esta inquietação, pode-se dizer que estas inusitadas figuras não humanas - inabituais, bichos, quimeras e seres das trevas - desenhadas e gravadas por Grassmann, são desumanas ou formas de desumanização?
Estas figuras são míticas, ancestrais, primevas, primeiras, anteriores à consciência, posteriores à consciência, antes da civilização, antes do alfabeto, pertencentes ao mundo imaterial do vento, do ar, das trevas, animais compostos, quimeras, seres de imaginação, seres da imaginação.
Ou são seres fragmentados, partidos, incompletos, divididos, ansiosos ou desejosos de integração, de serem um e não dois. Projeções do desejo de se tornar uno, de se tornar claro, de se tornar evidência, de sair das sombras para a luz nas mãos de um mestre alquimista como Grassmann?
Das trevas para a luz, da obscuridade para a evidência, para o pleno ar, do escondido para o manifesto, concretude materializada para o nosso olhar, o nosso espanto, para o nosso confronto com a nossa eventual certeza de sua impossibilidade e a nossa frágil identidade diante de sua ferocidade impassível, a sua ferocidade íntegra e sem maldade, a sua realidade total, inocente porque apenas ser, apenas o que é, ou, sobretudo, por ser apenas o que é e nada mais do que isto, sem outras intenções, sem projeto futuro, sem modelo a ser alcançado, sem figura idealizada no mundo das perfeições, sem ser sombra de hipotética realidade verdadeira, já que é imagem de si mesmo, realidade primeira e última, pois não é um ser em transformação. É um ser sem projeto de vir a ser.
As figuras de Marcello Grassmann são arcaicas, guerreiros, damas, animais, híbridos, quimeras, animais construídos com partes diversas de outros animais ou seres. Há semelhanças com a icnografia medieval, e não só com a medieval, mas estas figuras são elaboradas como protótipos, estáticas, como símbolos.  O que lhes confere uma atmosfera atemporal.
É inevitável pensar que elas sempre existiram e sempre existirão. Não há qualquer referência temporal fora delas mesma. Não há arquitetura ou objetos significativos e determinantes. A partir de certo ponto há pequenas referências arquitetônicas, ornamentos, colunas. Algumas lanças, talvez, estes objetos de tantas civilizações. Mas isto não altera a natureza destes personagens. E como são figuras arcaicas e atemporais, a perenidade lhes confere, por sua vez, a fatalidade. Eternamente esta cena e este olhar se repetirão.
Por outro lado, elas são apresentadas como o existente. Não há por parte do artista juízos críticos, postura moralizadora, condenação ou louvor. Estes personagens são o que são. Não são pretexto para se contar uma fábula cheia de sinais, ideias, descrições romanescas. A figura é já um símbolo. Ela não participa de uma fábula.
Desta maneira, em Marcello Grassmann as figuras são arcaicas, atemporais, amorais, simbólicas e fatais. Por estas características entende-se porque estas figuras e cenas são diretas. Não há interesse no processo criativo do artista pelo analítico, pela descritiva e decodificação progressiva dos elementos. A força do trabalho reside justamente na sua capacidade de se tornar em um único pensamento, uma única imagem. O espaço-tempo obedece a mesma intenção unificadora. Tudo se passa como se estivéssemos tratando de categorias. O idioma do artista é requintado, próprio, inconfundível. O seu vocabulário é pessoal, tem a sua marca e estes símbolos, estas figuras, formam um universo particular e diferenciado. O fato de este universo - segmento, mundo, grupo, iconografia, dimensão - pertencer a um universo maior e afim, estruturas compatíveis, o que nos sugere universos sucessivos, não lhe rouba a individualidade, antes a acentua. A diversidade no semelhante. O único apesar da simetria.
O singular e a afinidade com o todo. Lembra-nos o diálogo em Gil Vicente, o dramaturgo português da transição da idade Média para a Renascença, a extraordinária conversa entre “Todo Mundo” e “Ninguém”. Ou em Homero, quando Ulisses serve vinho para o ciclope Polifemo, se identifica e lhe diz o seu nome daquele momento, “Ninguém”.  E quando cega o gigante Polifemo  este informa aos irmãos: “Quem me feriu foi Ninguém”. Ao colocar o seu navio no mar, Ulisses grita para o gigante: o meu nome é Ulisses. E, naquele momento, assume o seu destino, a sua suprema individualidade, e enfrentará o oceano tornado tormentoso por Posidon, senhor do mar e pai de Polifemo. 
A característica atemporal da cena e o fantástico das figuras em Grassmann representam uma intervenção na ordenação rotineira do nosso mundo. O modelo criado pelo artista nos coloca diante de uma realidade inesperada e não verificável. Um palco onde evoluem, sistematicamente, seres dotados de intrínseco vigor. A força do destino. A sua natureza e o seu destino são a mesma coisa, vale dizer, o ser e a função são a mesma coisa. Existem para exercer uma missão e esta é a sua natureza. São seres intencionais, seres-função, seres destinados, seres pensamento, seres sem livre arbítrio.
O arbítrio e a opção existem tão somente nos guerreiros, é característica humana, e este é o seu destino.  Esta me parece a cena suprema do universo. Grassmann com os seus símbolos e categorias; os seres em função e os seres em opção. Os seus personagens, únicos e votivos, ao final de uma saga, permitiriam uma alegoria, ou simples verificação; a existência do destino elemental e a existência da opção humana por sua individualidade e o seu destino.

Seres das sombras. Elementais. Bestiário medieval. Não são só animais míticos, mitológicos, lendários, compostos. Formas-pensamento. Seres criados pela energia humana, por seus pensamentos, por seus sentimentos de medo, ódio, cobiça, desamor.
Tema permanente na obra de Grassmann, na qual o fluxo da vida, a vitalidade, sempre está em oposição com a finitude, a tragédia, a vida perecível, com os poderes da sombra, com a transação com a parte escura, negra, sombria, com os elementais Súcubo, a forma feminina, e Íncubo, a forma masculina. Seres da sombra, energias perversas que se metamorfoseiam em formas atraentes para suscitar sonhos eróticos, práticas sexuais no sono, no sonho, e em estados obnubilados. O objetivo lendário mais conhecido é sugar a energia sexual humana. Sugar a energia em geral. Seres das trevas que vampirizam o mundo dos vivos, dos tridimensionais, e se alimentam da vida terrena. Relação perversa, parasitária. Talvez eles surjam e se aproveitam dos humanos que deixam brechas, fissuras, entradas, dos que tem como substrato da libido justamente este tipo de fantasia ou perversão.
Projeções plasmadas no astral. O astral é o reino da ilusão.
Cavalo, cavaleiro, lobo, cachorro, macaco. Dominar o cavalo é sinal de glorificação. Vide as estátuas equestres que representam a glória dos grandes guerreiros. Mas dominar o cavalo tem o significado maior de dominar as forças da natureza. E dominar as forças adversas. Os chefes militares ou políticos elevados à condição de estátua equestre estão alçados ao olimpo, paraíso, local dos deuses, heróis, eleitos.
Cavalo também é um animal ctônico. Ele domina as entranhas, o interior da terra. Ele conduz o homem no interior da terra, no mundo de Plutão.

Filhos de Lilith. Demônios, seres da sombra, seres que não contemplam Deus. Filhos de Lilith, a primeira mulher de Adão, segundo lendas hebraicas. A lenda conta que Lilith não aceitou a relação com Adão que sempre fazia sexo sobre ela, pois não se achava inferior a Adão e queria fazer sexo em condições igualitárias, sem domínio de um ou outro. Lilith sai do Paraíso e não aceita que os anjos a levem de volta. No exilio tem centenas de filhos, todos demônios. Lilith assumiu o seu próprio destino, a sua natureza, é o ser diante do mundo. Lilith recusou a proteção divina e as regras impostas por Deus às suas criaturas. De certa maneira, Lilith cria o seu próprio metro. Os filhos da lendária Lilith são personagens de Grassmann na recriação do mundo. Marcello Grassmann não nos devolve o paraíso, mas o mundo a partir de Lilith.

…Quando alguém escreve, mesmo de modo realista, sobre o mundo, esta pessoa está escrevendo uma história fantástica porque o próprio mundo é fantástico, insondável, misterioso. [Joseph Conrad. Prefácio de  The Shadow Line]

É constante em Marcello Grassmann a junção entre forças anímicas e humanas. Entre a natureza mais pujante e o ser humano. É de tal maneira permanente esta oposição ou, ao contrário, esta ligação, que, por vezes, suspeitamos tratar-se de um só ser, talvez representado em desdobramentos.  É evidente que podemos fazer várias conjeturas sobre este cenário sonhado pelo artista, e que mais de uma verdade seja veraz. E isto por duas razões. Podemos conjeturar, pois o autor destas imagens é humano, como nós, e tem o nosso mesmo oceano incógnito e inconsciente. E - é possível que este seja o principal argumento a favor da simultaneidade de verdades na obra de Grassmann – as suas figuras são arquetípicas, permanentes na história da espécie, modelos geradores. Tenho para mim que Grassmann sempre teve acesso a este manancial e que o essencial de sua produção é feito com símbolos. E os símbolos, por sua própria natureza, é um núcleo essencial que se presta a uma infinidade de significantes e que não se esgota com uma única interpretação, mas se abre a cada nova geração e a cada ser para novos entendimentos.
O tema da morte e da donzela, tão presente na Renascença, e tão forte em certo momento na obra de Grassmann, é a personificação deste embate entre opostos ou, o que provavelmente é o mais próximo da intenção do artista, é o confronto do ser humano com o seu inelutável destino. O diferencial entre o ser humano e a vida puramente animal é a consciência que é identificada, fundamentalmente, pela percepção do tempo. O homem é aquele que sabe que morrerá.
Na “A morte e a donzela” a morte rouba, se apropria, toma a vida da jovem virgem, suga a energia da vida, interrompe a existência. De certa maneira, existe um processe de sedução; a morte busca a adesão da juventude. O núcleo do mito é a morte antes da plena experiência vital, o término ainda sem experimentar o amor adulto, sem a vivência do prazer afetivo, emocional, sensorial.
Os homens costumam atribuir esta crueldade aos deuses e ao destino. De qualquer maneira, a relação e o confronto com a morte estão no cerne da consciência do ser. Na Idade Média e na Renascença a Morte e a Donzela é motivo de muitas representações na pintura, na dança e na música. Entre nós, é muito conhecida a “A Morte e a donzela” para Quarteto de Cordas nº 14, em Ré menor, escrita por Franz Schubert, em 1817. Schubert se baseou no poema de Matthias Claudius. O centro do confronto é a recusa da donzela em ceder, a tentativa de convencimento da morte, e a impotência humana diante do destino.
É comum, nestas representações, associar a morte com o sono, com o adormecer, com a paz, com o término dos conflitos. Ainda que em Shakespeare, (inventor do homem moderno, segundo Bloom) ,em Hamlet, ele indague: “Que sonhos pode haver neste sono da morte?”. Em Marcello Grassmann não se indaga sobre a natureza da morte e da vida possível no sono da morte. No seu caso, o sonho é a própria imagem da jovem e da morte e o caráter estático da cena, a imobilidade das figuras, a serenidade como atmosfera. De resto, como em boa parte da obra do artista, existe um clima de uma realidade metafísica não subordinada à materialidade convencional. A obra de Grassmann é a manifestação e o registro deste sonho.
A respeito da individualidade do artista e da função de sua obra, existe uma declaração de Pound que é muito apropriada:

O trânsito desde a recepção do estímulo até o registro, até a correlação, é isto que consome a energia de toda uma vida.
Outra luta tem se travado para conservar o valor de um aspecto local e especifico, de uma cultura especifica, neste terrível turbilhão, nesta terrível avalanche em direção à uniformidade. Toda esta briga é pela conservação da alma individual. O inimigo é a supressão da história. contra nós está a propaganda atordoante, a lavagem cerebral…
Gente que perdeu a reverência perdeu muito. [Ezra Pound. Entrevista Paris Review]

Do método. Ou de como ter acesso.
Não há maneira de penetrar em outro espaço-tempo senão a mais antiga das maneiras, a vidência. Não vale a pena discutir aqui se existe objetivamente este outro espaço-tempo e se existe a vidência. Na arte e no misticismo este universo metafísico existe e o seu registro é amplo, constante, pertence a todas as civilizações. A curiosa discussão sobre o dimensionamento do real e do existente, onde o método é sempre o reducionismo ao puramente circunstancial, não nos leva a nada, salvo às posições arbitrárias. Para a crítica de arte o existente é o signo criado pelo artista. O alfabeto onde a crítica bebe é o composto pelos signos registrados e organizados pelo artista. Saber se realmente estes signos é o fiel retrato de uma realidade objetiva pressupõem muitas coisas, inclusive um interesse pela justaposição de formas, pelo decalque naturalista (aliás, nada mais intelectual e antinatural…) para nós a questão é clara: o universo onde circula e se expressa Marcello Grassmann existe, como o provam, os seus desenhos e gravuras.
Marcello Grassmann penetra neste universo não cotidiano da mesma maneira como isto sempre ocorreu, através da vidência. E a vidência não é um estado de delírio. Ao contrário, é um se colocar noutro tempo e espaço conservando a lucidez e a memória. O vidente é aquele capaz de retornar com a memória da visão.
Por outro lado, a arte sempre foi produzida por homens em estado especial. Criar formas e cores sempre foi o resultado de um processo onde o método é se colocar de acordo. Este acordo prevê um parceiro inesperado, sobre o qual se sabe pouco. Com quem o artista se põe de acordo? Ou é a própria espécie humana; ou o seu inconsciente; ou no reino dos arquétipos; ou entidades superiores. E este acordo prevê um papel para o artista: no ato da criação ele é médium, ainda que, em análise restrita, de si mesmo. O que parece certo pelas experiências registradas, é que o artista permanece em estado de alerta, com a mente receptiva, despido de uma racionalidade coercitiva.
Há outro dado da questão, na área da iconografia do artista, extremamente relevante: é o fato de o seu trabalho ser aceito e compreendido por outras pessoas. O fato de o trabalho encontrar o seu ambiente e circuito de comunicação é relevante, pois os outros homens entendem, reconhecem – quem sabe? – se reconhecem nestas imagens. O que nos devolve ao proceder do artista. Pois, se outras pessoas são capazes de encontrar e reconhecer as imagens-Grassmann, a percepção do artista não terá feito outra coisa senão o registrar e organizar aquilo que as pessoas obscuramente já sabiam. Estas imagens são novas, produzidas pelo artista, mas há memórias semelhantes em outras pessoas, a tal ponto semelhante que são capazes de identificar estas figuras. Desta maneira, poderia ser dito que o principal dado da vidência não é o ver, mas o permanecer consciente, o saber que viu. A vidência, de uma maneira qualquer, parece comum a todos os homens, dada a universalidade da arte e do símbolo. O particular seria o guardar conscientemente esta vidência. E, no caso mais particular ainda, o caso do artista, seria o guardar a memória conscientemente e ser capaz de torna-la forma. O artista seria um informador. O formador da consciência.
Sejam em que universos, locus, forem – arquétipos, inconsciente, outras dimensões temporais – o mergulho do artista é o ponto afirmativo do uso criador e instrumental da imaginação e da aceitação do oculto como uma ciência, um saber. A imaginação não é uma filha de ninguém. É impossível imaginar sem linguagem. A imaginação é um produto comunitário. Dai o imaginar ser instrumental do conhecimento. Parte-se do referencial para, em processamentos sucessivos, projetar no tempo. No imaginar, ainda que a partir de um universo referencial, comunitário, o homem realiza um ato particular. Este ato não é provado e não é reproduzido em condições semelhantes. O ato de imaginar, o ato individual de imaginar, não é integralmente reproduzível em circunstâncias idênticas e, sendo assim, não é cientifico, segundo o padrão newtoniano.
Ao artista cabe o ônus de um ato não cientifico e não provado, mas apresentável por meio de formas. Como estas formas não representam uma ação científica, uma ciência, por inferência, estas formas expressam o improvado, o intuído, o oculto. O instrumento conhecedor expressivo utiliza como método a vidência e a imaginação e cria um campo de ação típica de origem oculta e de natureza esotérica. Apenas o colocar-se de acordo tornará o espectador entendedor e conhecedor. Ai reside o esoterismo da compreensão formal na arte: exige-se do espectador uma atitude especial, criadora, imaginadora, evocativa. Em certo momento, para que haja comunicação, obra e espectador devem participar do mesmo mistério.
Artista e espectador devem descrer da racionalidade como único instrumento aferidor do existente, isto é, do real. Ambos, para exercer seus respectivos papeis, devem aceitar o inexplicável, o não catalogado, o oculto. Em outras palavras, é impossível o exercício da arte sem aceitar o irracional como método e campo de ação.
Sobre o método e o trabalho do artista, Italo Calvino, artista e pensador europeu de alta estirpe fez um depoimento significativo:

Ou pelo contrário, porque não existe verdadeira integração humana numa miragem de totalidade ou disponibilidade ou universalidade indeterminada, e, sim, num aprofundamento obstinado daquilo que se é, do próprio dado natural e histórico e da própria escolha voluntária, numa autoconstrução, numa competência, num estilo, num código pessoal de regras internas e de renúncias ativas, a serem seguidas até o fundo? O relato me conduzia por sua espontânea propulsão interna àquilo que sempre foi e continua sendo o meu verdadeiro tema narrativo: uma pessoa se impõe voluntariamente uma regra difícil e a segue até as últimas consequências, pois sem esta não seria ela mesma nem para si nem para os outros. [Italo Calvino. Prefácio para Os nossos antepassados (Il nostri antenati). Tradução de Nilson Moulin.]

O painel de Marcello Grassmann no Palácio dos Bandeirantes.
Em 1989 a crítica de arte Radha Abramo, Curadora dos Acervos dos Palácios do Governo de São Paulo, como era do seu modo de ser, resolveu instituir uma comissão e um júri para escolher o novo painel do Palácio dos Bandeirantes para substituir o painel “Tiradentes”, de Candido Portinari que seria transferido para o Memorial da América Latina. Habituada à luta contra o totalitarismo da ditadura no Brasil, a combativa Radha Abramo, pessoa amável e querida de todos, sempre preferia soluções colegiadas e democráticas. Éramos muitos: José Roberto Teixeira Leite, Casimiro Xavier de Mendonça, Carlos A. Cerqueira Lemos, Ernestina Karman e eu. Tratava-se de um concurso fechado, pois escolheríamos os candidatos. Por votação, após longas discussões, os artistas convidados foram Antonio Henrique Amaral, que terminou por ser o vencedor, Claudio Tozzi, Emanoel Araújo, Valdir Sarubbi, Sérgio Ferro, José Roberto Aguillar e Marcello Grassmann. A sugestão do convite ao Grassmann foi do Casimiro Xavier de Mendonça, crítico culto, sensível e de escrita refinada. Eu discordei por ver o artista vocacionado para a subjetividade e pequenos formatos. Eu argumentei que o Marcello não poderia fazer este painel, que isto era visceralmente contra a natureza do seu trabalho, postos ao método dele, contra o seu processo de criação. Casimiro argumentou que seria um desafio para o artista e ganhou a votação. Eu fiz uma espécie de piada (sem graça, já se vê) perguntando se convidar o Albert Einstein para um duelo de espadas com Aquiles seria igualmente um desafio. Na verdade ninguém riu.
Marcello Grassmann recusou o convite.
Na verdade se tratava da própria natureza do trabalho. O grande mural do Marcello Grassmann é o conjunto notável de sua obra, este retrato de corpo inteiro de uma visão de mundo. Mais até do que uma visão de mundo, uma maneira de sentir o mundo. O seu muralismo é justamente a junção, o conjunto de seus trabalhos.
Georges Simenon, o escritor de espantoso sucesso, a quem André Gide considerava um dos maiores romancistas do século vinte, em entrevista para o Paris Review, nº 9, no verão de 1955, (cujo conjunto de entrevistas de escritores é um dos mais notáveis documentos da nossa época) disse para Carvel Collins:

…Possuo uma determinação muito, muito forte acerca dos meus escritos, e seguirei o meu caminho. Por exemplo, todos os críticos disseram a mesma coisa durante vinte anos: “É hora de Simenon nos dar um grande romance, um romance com vinte ou trinta personagens.” Eles não entendem. Eu nunca escreverei um grande romance. Meu grande romance é o mosaico de todo os meus pequenos romances. Entende?

Carvell Collins entendeu. Eu entendi. E o Marcello Grassmann, a seu próprio respeito, sempre soube disto.


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JACOB KLINTOWITZ (Brasil, 1941). Crítico de arte, jornalista, editor de arte, designer editorial. Ganhou duas vezes o “Prêmio Gonzaga Duque” da Associação Brasileira de Críticos de Arte, pela atuação crítica. É autor de mais de uma centena de livros sobre teoria de arte, arte brasileira, ficção e livros de artista. Contato: jklinto@uol.com.br. Página ilustrada com obras de Marcello Grassmann (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.



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Fase II | Número 14 | Janeiro de 2016
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