quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Sobre as Relações do Abjeccionismo e do Surrealismo


São merecedoras de atenção cuidada, por tão curiosas e singulares, as páginas que Breton dedica à Magia, em particular a Flamel, no Sécond Manifeste du Surréalisme (1930). Nada da adorável ingenuidade lapidar que levara Breton seis anos antes, quase incógnito, a propor aos dicionários do tempo a sinonimia do surrealismo com o automatismo psíquico puro. O nível da pesquisa surrealista atingira já em 1930 outro patamar, mais sólido e mais largo, os dicionários haviam ficado para trás, bem como o público, esse público que no mesmo manifesto se exige que não entre, que não passe sequer da porta, e nenhuma surpresa em perceber Breton na ante-câmara do mundo, ou nos seus subterrâneos, a estabelecer as pontes entre o surrealismo e a Magia, entre o supra-real e a pedra filosofal.
Desses passos, o que mais admirável me parece é aquele em que o autor reporta o momento em que Nicolas Flamel, assistido por um poder superior, recebe das mãos dum anjo, o livro de Abraão Judeu. Mas não menos tocante é o passo em que ele, Breton, confessa humildemente não ser ainda capaz de aceitar que Flamel, nascido no século XIV, continuasse vivo na segunda metade do século XVIII. E já agora que dizer quando convoca Agrippa para saudar de passagem (ou em permanência?) o regresso, pela mão do surrealismo, do furor? Aqui, na ideia de inspiração, tão afim da divina loucura de Platão, se fecha o círculo que começa na descida dum livro por intermédio dum anjo – dum daemon digo eu. Fecha-se sem se fechar, pois será de ver como Mário Cesariny toma em mãos este Flamel e trabalha com ele em 1964 na margem direita do Sena. De Cesariny ficaram felizmente as anotações do “Diário da Composição”, inserto no final do livro A Cidade Queimada, onde de resto cita o Fedro de Platão; nelas interessa muito a torre fálica, ornada dos símbolos da ciência oculta, a torre de Saint Jacques, cravada por Flamel no coração de Paris, como uma outra seta à espera do seu alvo ou um outro daemon encoberto à espera da sua revelação interior.
Aquilo que aqui me interessa é porém outra coisa; as considerações de Breton sobre a magia são apenas colaterais ao ponto que aqui me vai. O fecho desse segmento do Segundo Manifesto recorre a algumas indicações rituais que o praticante deverá ter em conta nas operações mentais alquímicas, antes de mais a nobreza de intenções, a pureza da alma e a clareza do lugar onde tudo se opera. É pois a partir desse fecho que Breton parte para as três ou quatro páginas finais do texto, dedicadas a Georges Bataille, um contemporâneo, e que já nada têm a ver com o segmento anterior. Estas páginas finais, sem o epílogo, interessam-me muito. Leio-as e releio-as com atenção. Fervilha aí, à superfície, a virulência, a paixão do ajuste de contas que caracteriza aqui e ali o manifesto, sob esse aspecto tão diferente do primeiro. Mas também não é esse grau de linguagem, a temperatura do discurso a ferver em cachão, tão próxima do panfleto político partidário, que me interessa. O diálogo entre Breton e Bataille tem outro motivo de ser e não perde nem ganha com a veemência intempestiva da expressão. Por baixo desta, nas entranhas do passo, esgrime-se um diálogo de ideias, melhor, joga-se um jogo muito mais elegante e essencial.
Esse é o jogo que Bataille começou a jogar na revista Documents em 1929, acusando o surrealismo e Breton em particular duma sede de integridade que em tudo lhe parecia, pela anti-sordidez, a verdadeira natureza do sujo. Entende-se melhor agora por que razão Breton escolheu estrategicamente no momento de fecho do segmento sobre a arte mágica passagens sobre a transparência interior e exterior do praticante. É por aí, no trânsito para o excurso final, que Breton começa a dizer a Bataille o que lhe interessa. Não é ainda a carta sobre a mesa, carta de pinta preta, carta sobre carta, carta resposta à do outro jogador, mas um preliminar, uma agulha que serve para mudar de linha e entrar no jogo. Seja como for, a imagem desse preliminar é tão forte que a indicação do jogo de Breton está dada; ele defenderá a todo o custo, e com uma veemência que não põe nem tira ao caso, a integridade ou a anti-sordidez de que é acusado, deixando o sórdido para Bataille.
Bataille nessa época havia já publicado, sob pseudónimo, Histoire de L’Oeil e preparava-se para dar a lume, com o seu nome, um texto escrito em 1927, L’Anus Solaire, texto fundador daquela parte mais característica da escrita de Bataille, que levará no início da década seguinte, 1943, à publicação do livro capital, L’Experience Intérieure, que virá a constituir o primeiro volume da soma ateológica. A ateologia foi a palavra encontrada por Bataille para designar uma via paralela à mística, enquanto experiência do êxtase, mas também da dor e da angústia, e que com ela se não confunde nem nunca se encontra por um motivo de monta: a experiência ateológica não desemboca em nenhum além, não supõe a existência de qualquer outro mundo, não concebe qualquer absoluto nem qualquer diálogo transcendente, não aceita nenhum plano divino. É tão-só, através da exacerbação de certos comportamentos, uma experiência dos limites humanos, com o único fito de experienciar a possibilidade de viver o impossível dos seus limites.
Percebe-se pois a obsessão com que Bataille agitou e sacudiu o erotismo para dele tirar essa aproximação ao impossível. É óbvio que num erotismo vivido sem condicionantes morais de nenhuma espécie, nem edipianas nem outras, o horror e o horrível se fazem a cada passo presentes, sobretudo se esse erotismo supõe como quadro de contexto, como acontece em todas as narrativas de Bataille, o Eu social tal como ele é depois de seis ou sete milénios de civilização. Se o horror dificilmente se imiscui numa narrativa como O Empecido de Pascoaes, apesar da zoofilia de Albino pela Ruça, e até do semi-incesto da mãe com o filho, é que se está diante duma comunidade arcaica, ligada à terra e à pastorícia, que não perdeu ainda no dia-a-dia, pelo isolamento em que vive, memória residual das práticas ancestrais, anteriores à imposição moral da proibição do incesto parental. Nas narrativas de Bataille é o contrário que está em causa, pois todas elas se passam em meio urbano e respeitam à classe alta, a que mais fez e se bateu, talvez por razões de eugenia, pela criação das proibições morais que determinaram o início do actual estádio civilizacional.
Mas é no horror, no horror com que Eu social, o Eu da primeira consciência, se confronta, que o homem segundo Bataille se excede para encontrar uma pureza inominável que o compensa de toda a repugnância sentida. Daí o protagonista de Ma Mère, um dos textos mais significativos desta experiência, dizer, no momento em que tem a certeza que mais tarde ou mais cedo a mãe se lhe entregará por vontade própria, que na fundura do meu desgosto, sentia-me idêntico a um Deus. As lágrimas que então se choram, diz algures o narrador, não são só de terror mas de abençoada alegria.
O jogo entre Breton e Bataille, tal como ele surge nos textos deste da revista Documents, segunda metade do ano de 1929, primeiros meses de 1930, e na resposta que Breton lhe dá nas páginas finais do Segundo Manifesto, não é apenas um jogo entre dois comparsas abstraídos do mundo, perdidos num qualquer recanto do tempo, concentrados apenas no tampo da mesa onde saem as cartas do baralho que está entre os dois, mas uma cena muito mais ampla e complexa que se torna o palco gigantesco onde se representam alguns dos dramas fundamentais da humana condição pensante. Do lado de Bataille está a recusa de qualquer transcendência, a afirmação dum materialismo feroz e um retomar da experiência de Sade, sem no entanto pagar por isso o preço que o marquês teve de desembolsar e perseguindo uma meta de alegria desconcertante, toda interior e solitária, que talvez não existisse no autor de Justine. Seja como for, tudo em Bataille se passa do lado de cá, o único que existe, do lado do corpo e das sensações e mesmo essa alegria superior, essa alegria que tudo alivia e justifica, objectivo de todas as provações do horrível, não é mais do que sensação corporal, que se obtém pela exaustão de outras sensações. Nesse sentido, a linha de pensamento de Bataille é intransmissível, tem um valor pessoal exclusivo e não sofre qualquer possibilidade de socialização. Serei mesmo tentado a perguntar se esta linha não é, pela hiperbolização a que está sujeita, uma experiência destinada apenas a ser vivida por dentro da literatura e até da literatura naturalista, a mais apta a reportar as sensações naturais, que o corpo experimenta. Se assim for, experiência estética, não mais, e por isso inofensiva – por mais perigosa que seja a aparência ou o invólucro intelectual em que é dada.
Em Breton o jogo é diferente. Não lhe interessa a experiência pela experiência e muito menos para atingir uma sensação. Aquilo que o move é o mundo da alma, que ganha uma espessura própria, com as suas leis e o seu funcionamento paralelo. Esse mundo ganha uma tal autonomia em relação à realidade empírica que se pode falar duma outra realidade, muito mais absoluta, que ele chama supra-real e os românticos alemães de real absoluto. Ele não nega a existência do mundo sensível; aceita é a realidade dum segundo plano, onde o sensível é substituído pela imagem, que não sendo uma abstracção do intelecto não tem consistência material nem possibilidade de ser abordada pelos sentidos sensoriais. Só a imaginação está em condições de abordar esse segundo plano, imaginação que equivale assim a um sentido meta-sensorial, capaz de estabelecer o contacto do sensitivo com o mundo da alma.
Ora assim sendo, a actividade humana, e até tão-só natural, desemboca em Breton num além, supõe a existência dum outro mundo, concebe o absoluto e chega a aceitar um plano divino, se por este se entender não um Deus antropomórfico, como o das religiões reveladas, mas uma realidade supra-sensível. O que interessa Breton é o contacto com esta outra realidade; o seu objectivo último não é uma sensação (de prazer, de horror ou de alívio como em Bataille) mas o mundo paralelo da alma, a segunda realidade, o supra-real, a que se acede pelo imaginar, visto a homologia, a da imagem, por ínfima que seja, entre esta faculdade e essa outra realidade. Uma meta deste tipo só tira da literatura ou da pintura ou de qualquer outra arte o necessário para alimentar o seu desejo de além, o seu anseio de absoluto, não mais. Convém até perceber que um tal objectivo pode existir sem passar obrigatoriamente por qualquer arte verbal ou não. O sonho nocturno leva o homem que dorme ao supra-real sem para isso necessitar mais do que o transe do sono. Nenhuma arte, pois, a não ser a maior, a de Flamel, na procura do Eu interior.
Quando se alude à conquista dos conteúdos da primeira consciência, através daquele bailado de símbolos que lá para trás se referiu, fala-se mais duma posição ética do que estética, para usar uma terminologia pouco precisa mas que pode dar a entender quanto a aventura de Breton foge aos terrenos da arte. E de tais terrenos, quando existem, o que se pode tirar na procura do supra-real nunca pode ser, como em Bataille, uma arte naturalista, sensorial, que seja capaz de reportar sensações físicas, mesmo extremas, como as da ponta final do horror, mas uma arte sobre-natural, que seja ela já, como num sonho, uma expressão do mundo da alma. É mais fácil receber assim um livro como Malpertuiss – procuro um equivalente deste livro entre nós sem êxito – do que La Nausée, esse sim com equivalentes e em legião.
Há um momento no jogo entre Breton e Bataille em que tudo se faz claro. É o momento em que Breton comenta uma imagem de Bataille – uma rosa sem pétalas, uma rosa desfolhada não passa dum pedúnculo deselegante com um tufo sórdido e escuro no cimo – e diz que uma rosa mesmo sem pétalas continua a ser uma rosa. Quem não vê aqui a ideia sobre a forma e a forma sobre a matéria? Quem não vê aqui a perenidade da ideia sobre a volubilidade da matéria? O surreal sobrepõe-se à realidade física, perceptível com os sentidos sensoriais, como essa rosa universal de que fala Breton paira sobre a rosa transitória, que desapareceu. Depois disto percebe-se que nas vazas que saem sobre a mesa o empate é o único destino possível para este jogo; tão irredutíveis são os mundos em confronto, que nenhum deles pode gritar vitória. Não admira por esse motivo que Bataille, em texto posterior, de 1931, mas só dado à luz em 1968, acuse Breton dum complexo de Ícaro, sempre à procura de bater asas para o além. Reconheço aqui, nestas asas de Ícaro, não tanto o anseio de evasão do labirinto, que também existe, mas a necessidade de trocar a realidade sensível pelo fluido inefável e luminoso da corrente da alma.
Curioso que ao ver Breton como uma águia sempre desejosa de habitar os píncaros do mundo, e por isso sempre ansiosa de se evadir da realidade, elevando-se para a luz do Sol, Bataille reserve para si a imagem da toupeira ou do rato, que vive nos intestinos da terra e tira dos seus excrementos o alimento e a saúde. É a vitalidade da podridão ou do horror natural, num segmento que a química de Lavoisier já conhecia, contra a ilusão fotista da ideia ou do ultra-mundo tal como um Breton de asas aquilinas e poderosas o concebe sob a forma do supra-real.
Há porém um ponto em que Bataille e Breton coincidem – e não sei se terá sido esse ponto a ponte de passagem para o passo do terceiro manifesto em que Bataille aparece ao lado de Péret e Leonora Carrington, mas também de Callois. Esse ponto de coincidência é o seguinte: do lado de Bataille há o horror, tão dele, e do lado de Breton o desgosto da realidade sensível. A abordagem negativa ao sensível é comum a ambos. Há porém uma diferença de monta: o horror de Bataille, se for exaurido, leva à satisfação, ia dizer à iluminação, ao passo que a realidade sensível, amputada da imaginação, que é a asa da alma, fica para Breton prisão sem saída. A única atitude digna dum homem aprisionado no real de primeiro nível, que por qualquer razão desconhecida não pudesse recorrer à imaginação para viver no mundo da alma a verdadeira vida, seria o desgosto fundo, seguido dum estado de revolta permanente – mas tão desesperada e tão impotente como aquela que se pode conceber para uma alma condenada para sempre, por mandato superior, às labaredas do Inferno. Por esse motivo para Bataille o real sensível pode salvar – apesar de salvação ser palavra desconhecida no vocabulário no autor de L’Experience Intérieure – e para Breton esse mesmo real pode ferir de morte.
Isto não é despiciendo para se entender um dos segmentos mais característicos do surrealismo em Portugal, o abjeccionismo. Ao que se diz passa este por ser uma criação própria do surrealismo português. Cesariny fala dele no texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em Português” (1973), já aqui nestas notas referido. Atribui o seu trilho a Pedro Oom, na viragem da década de quarenta para a seguinte, século de Hiroxima, e de ficou a pergunta final de Erro Próprio de António Maria Lisboa, que Oom sacolejaria em 1962 (que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos), e um poema título do mesmo Oom, “Um Ontem Cão” (1949). Seja como for, a ideia, esta muito de Cesariny, de que num país que vivia amordaçado por uma ditadura qualquer intervenção surrealista colectiva organizada se fazia impossível é também um ponto maior a favor da abjecção. Daí o específico português do abjeccionismo, ou pelo menos o favor que ele teve no único país – com o vizinho do lado, entenda-se – do ocidente da Europa que continuava a viver sem liberdade de expressão, mesmo mínima.
Começo pela noção de que o abjeccionismo foi criação portuguesa. Quando se lê e reflecte sobre a passagem final do segundo manifesto fica-se com a ideia de que se encontra aí um precedente importante para ele; a palavra não está criada, nunca aparece no discurso de Breton, seja sob a forma de substantivo ou de adjectivo, e no entanto ele serve-se de outras próximas (sujo, senil, rançoso, sórdido, estragado), mas o significado está já em movimento. Não é tanto porém na oposição entre Bataille e Breton, entre a águia que se eleva sedenta de luz e a toupeira que se compraz com a escuridão dos subterrâneos, que eu posso ver no passo do livro de 1930 o contraste entre surrealismo e abjeccionismo; é antes na oposição de Breton com ele mesmo, quer dizer, entre o plano sensível e a sua ideia, entre o curso da realidade e o supra-real, entre a rosa desfeita e a rosa perene, que eu sinto a ligação dos dois momentos. Com isto quero dizer que aquilo que pode haver de surrealista no abjeccionismo nada deve ao horror de Bataille; o credor dessa parcela é antes e em exclusivo o sufoco daquela realidade sensível que Breton quer superar a todo o custo e que por vezes, caso a imaginação não compareça, faz a vez de prisão insuperável.
Isto leva ao segundo ponto, o da especificidade portuguesa do abjeccionismo por via da ditadura política que amordaçava o país. A mordaça em termos freudianos significa o recalque sem possibilidade de compromisso simbólico, o que por sua vez leva a encarar a ditadura como uma séria ameaça à comparência da imaginação. Sem esta os portugueses que haviam aderido à demanda do supra-real ficaram apenas com um palco a arder, sem saída, um gigantesco auto-de-fé, onde estavam destinados a torrar antes de todos os outros, e com mais desespero do que eles, já que ninguém tinha como eles a consciência certa de que existia o maravilhoso de outro mundo. Neste quadro percebe-se assim o favor que o abjeccionismo teve em Portugal e como em certos momentos, quando a ditadura apertava o prego e o palco fechava qualquer saída, ele se acabou mesmo por sobrepor ao surrealismo.
Seja como for, é ingenuidade pensar que a percepção da abjecção da primeira consciência – assim digo para que se perceba a extensão e até a universalidade do fenómeno – é um caso circunscrito a situações políticas de ditadura. O abjeccionismo é a face inferior mas necessária do surrealismo; ele está para o surrealismo como a primeira consciência está para a segunda ou o supra-real para o real sensível. Não há supra-real sem realidade sensível, tal como desde há sete ou oito mil anos não há segunda sem primeira consciência – e esta é primeira não por ser primordial ou preceder no tempo a segunda mas porque se sobrepõe hoje, por vezes na totalidade, e quase sempre à bruta, à outra. Na linguagem de Breton, o supra-real é já uma síntese entre o real inferior e o sonho – como este em termos freudianos, que aliás não coincidem aqui na exactidão com os de Breton, é um compromisso entre as duas consciências. A impugnação do real sensível limitado a si, a crítica dos limites do mundo sensitivo material, está sempre presente no surrealismo, como está, no rasto de Dadá, pela valorização do primitivo, a percepção e o processo da toxicidade da primeira consciência.
O perigo do abjeccionismo – presente em qualquer círculo onde as imposições de primeiro nível existam com algum peso, haja ou não haja ditadura política, pois na verdade basta a escolar ou tão-só a familiar – é o da radicalização das exigências de primeiro nível ser tão impositivo que se dê o esquecimento da consciência do supra-real ou do real absoluto e da sua demanda, ficando apenas em seu lugar a dicotomia entre a ordem e a chacota ou entre a norma e o seu retrato caricatural. Quando isto assim acontece, os que caricaturam, presos ao primeiro nível, mais que não seja para fazer dele o traço grotesco, esquecidos do outro mundo, tendem a deslizar para um abjeccionismo que se torna um fim em si mesmo, deixando de ser a contrapartida necessária da demanda do mundo da alma. Nesse momento o abjeccionismo desliga-se do surrealismo, ganha autonomia e, pela perda do plano sobrenatural, aproxima-se da literatura naturalista. Os supostos da nova expressão fazem-se assim afins duma filosofia que tanto pode ter a ver com o sensualismo – todo o pensamento vem das sensações – como com o existencialismo – ser é existir.
Que se passou no caso português, onde o abjeccionismo tomou nome e tanta projecção ganhou? A princípio, naquela transição da década de quarenta para cinquenta, com as obras de António Maria Lisboa, de Mário Cesariny e do Pedro Oom do “Um Ontem Cão”, o abjeccionismo, talvez ainda sem cristalizar na palavra, é apenas a consciência do que se abandona ou do que se troca, a parte de sombra que todo o voo extra-real carreia e pede. Assim Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano de Mário Cesariny, escrito em 1948 e editado em 1952, nada tem para reabilitar como o seu autor fez questão de indicar. O título glosa com catártica ironia a literatura realista da época, muito marcada pelo marxismo, um pouco ao modo do que ele fará mais tarde com o título de O Virgem Negra ou até com o de 19 Projectos de Prémio Aldonso Perdigão. Nem prémio, nem virgem, nem reabilitação nenhuma, mas o contrário disso. De resto a obra de Cesariny é sempre, no mais pequeno sinal, nos títulos ou fora deles, um exemplo modelar de como a parte sombria do real, existindo e comprimindo, magoando e maltratando, não pode nem deve sobrepor-se, menos ainda abafar, a pesquisa do mundo da alma que caracteriza e identifica a aventura surrealista.
E por aqui se percebe como aqueles, e tantos e tão bons foram eles, que tentaram piedosamente recuperar a obra de Cesariny para o realismo, rasurando dela a crucial trasladação para o arquétipo, a pedra filosofal do Eu interior, tomaram entre nós o lugar daqueles sacristães com mandato exterior que tentaram a todo o custo ler Rimbaud do ponto de vista do catolicismo romano – e sabe-se quanto a empresa foi de todo perniciosa para o poeta.
Mais tarde, ao longo da segunda metade da década de cinquenta e da primeira de sessenta, com a perpetuação da ditadura e da vida política do ditador para além daquilo que seria na mais negra das hipóteses de considerar, o abjeccionismo em Portugal tendeu porventura a deslizar para um novo patamar, muito mais autónomo, em que a ligação com o supra-real parece ter, pelas condições em que o país vivia, afrouxado um tanto.
Quando Pedro Oom na entrevista fundadora do abjeccionismo (1962), momento em que glosa e reforma a pergunta final de Erro Próprio de António Maria Lisboa, adianta que a diferença fundamental entre surrealismo e abjeccionismo está em que Breton diz que há um ponto do espírito onde as antinomias deixam de ser contraditoriamente apercebidas e eu digo que, mesmo idealmente, duas proposições antagónicas não se podem fundir sem que logo nasça uma proposição contrária a essa síntese (Jornal de Letras e Artes, ano II, nº 75, 6 de Março, 1962, pp. 1 e 15; Cesariny recolheu-a em A Intervenção Surrealista) é possível, mas não é certo, que o contacto com o real absoluto, com a terra dos mitos, se tivesse já perdido. O que pode existir nesse momento é só o real abjecto, a terra teratológica, a terra dos monstros, em que tanto os carrascos como as vítimas são máscaras desfiguradas do horror. O que existe nesse instante é a estampa de Goya, do avesso, sem pinga de sono, comentando pela imagem dum homem autómato, máquina sem sonho, o mote de o sono da imaginação cria uma realidade monstruosa.
Daí a auto-repulsa e a negação sistemática, tão típicas do abjeccionismo português nessa fase, que é a do suicídio em cadeia (João Rodrigues, José Manuel Pressler, D’Assumpção, Manuel de Castro, José Sebag), mais própria talvez dum mundo negro, condenado em dimensão perpétua à baixa reclusão do real, tal como Bataille ou Sartre o podiam ver sem metafísica surreal nenhuma, do que da pesquisa surrealista marcada pelo oiro solar e quente do contacto com a alma e com o Paraíso dos Arquétipos.
De qualquer modo é preciso ter em conta o retruque que na mesma entrevista Oom deu quando lhe perguntaram qual a resposta para a pergunta que Lisboa fizera (que pode fazer um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos). Nada de desistências, nada de esquecimentos, nada de palcos fechados e sem saída. Ao invés, tudo fica aberto para a paisagem do além. Diz ele: sobreviver livre, possuir a capacidade de lutar contra as forças que nos contrariam não colaborando com elas. Neste caso o contacto com o real absoluto, com a terra dos mitos, não se perdeu; a qualquer momento ele irrompe soberano desta desobediência às forças que algemam. Mais: o surreal é ele mesmo o sinal da não colaboração com estas forças.


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Capítulo integrante do livro Notas para a compreensão do Surrealismo em Portugal, gentilmente cedido pelo autor. Para conhecer melhor vida e obra de António Cândido Franco, visite: http://literaturaliteraturaliteratura.blogspot.com.br/2014/02/conhecer-antonio-candido-franco-vida-e.html. Página ilustrada com fotografias de Teresa Sá Couto.






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