quarta-feira, 23 de março de 2016

S21 | VIAGENS DO SURREALISMO | NICOLAU SAIÃO




FLORIANO MARTINS | As disposições de um espírito (diálogo com Nicolau Saião)

NICOLAU SAIÃO | Das coisas maravilhosas e inquietantes

JOAQUIM SIMÕES | Vozes num dia de verão (conversa com Nicolau Saião)

NICOLAU SAIÃO | Arte e erotismo

NICOLAU SAIÃO | A propósito da crítica

MARIA ESTELA GUEDES | Nicolau Saião, escritor e pintor

NICOLAU SAIÃO | Relance sobre o fantástico 

NICOLAU SAIÃO | A caixa de Pandora

FLORIANO MARTINS | Nicolau Saião e o Surrealismo em Portugal

NICOLAU SAIÃO | Perfis da escrita, da vida e da pintura





NICOLAU SAIÃO (Portugal, 1949). Poeta, artista plástico, ensaísta, tradutor.

*****

Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Agradecimentos a Nicolau Saião
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

Visite a nossa loja








NICOLAU SAIÃO | Perfis da escrita, da vida e da pintura


1. D’ASSUMPÇÃO & SUAS EVOCAÇÕES SECRETAS

A quem servem as evocações? Em certas alturas, a nós mesmos. Talvez a um que outro, recheado de minutos de dúvida sobre a face da sociedade. A gentes projectadas num futuro incerto, possivelmente, viajando entre recordações e utopias. Entre os rochedos da memória provável.
A certas horas, rodamos em torno das recordações como um lobo em volta da presa. É a nossa própria carne que, como num espelho, se faz significado, matéria afastada que pouco a pouco se ilumina. Se para se escrever uma página, como referia Rilke no seu “Malte Laurids Brigge”, é preciso a frequentação de muitas ruas, muitos rostos, funerais e nascimentos, deambulações ao acaso e a cor quotidiana da vida e da morte nos olhos de nasciturnos, grávidas, simples seres solares e lunares que subitamente ficam presos à rota que vai do princípio ao fim – é preciso igualmente a decantação da memória para que ao termo, no cadinho que são os nossos olhos brilhando na obscuridade, num quarto vazio, a pouco e pouco as sementes auríferas se separem das escórias e palpitem, ainda que nuas e frágeis, ainda que em solidão singularmente solene. Crê-se que o futuro nos poderá ver como num espelho iluminado, devolvidos à nossa verdadeira imagem; mas a matéria do futuro é incerta, vaga, na sua superfície criam-se como que buracos negros que não é possível preencher: ainda estão e estarão por muitos anos, de pé, as aparelhagens pseudo-sociais, constrangedoras e inúteis, para desequilibradamente acantonarem neste local, naqueloutro, em outro ainda, as verdadeiras faces dos que, na sua passagem pela Vida, criaram mundos de liberdade que a “realidade societária”, informe e espúria, não quer consentir.
D’Assumpção foi sempre para mim uma espécie de presença ausente. Habitante de planetas longínquos e misteriosos ou então de lugares de ao pé da porta que contudo, como na estória de Jean Ray ou no “Erich Zann” de Lovecraft, por mais que se tente não se conseguem reencontrar, ele decerto era alheio ao movimento de muitos outros seres que eventualmente se cruzavam com ele ou com a sua aparência de movimento. Digo bem: porque frequentemente a nossa deslocação real, ao longo do tempo que nos foi dado viver, se faz virtualmente, havendo pontos – como nas fábulas – onde verdadeiramente a nossa figura se fixa, permanece nos olhos dos que nos amaram ou algo esperaram de nós sem que disso tivessem consciência, envoltos numa razão que ultrapassa as horas e os quilômetros. Por exemplo e ao acaso: para Cézanne – Aix-en-Provence; para Mário de Sá-Carneiro – Paris; para H. P. Lovecraft – Providence; para D’Assumpção – Portalegre – Paris – Lisboa (e a inversa também é verdadeira).
No fim da infância ou no princípio da adolescência (tocam-se, sendo todavia, inapelavelmente, mundos diferentes) em certa tarde o meu pai chegou a casa e, no meio da conversa, contou-nos que nesse dia fora com o mecânico (era na altura empregado no stand de meu padrinho João Vinte-e-Um, que negociava automóveis, motas, camiões) buscar uma motocicleta a casa de um cliente; de acordo com o que relatou, ao que lembro, fora o próprio cliente que a entregara – por não poder pagar as letras. “É o filho do Sr. Rosiel, coitado…” disse meu pai sinceramente constrangido. “Aquele que pinta”, referiu ainda a uma pergunta de minha Mãe. E pronto, foi tudo, conversa de acaso perdida depois entre o resto dos minutos.
Dias depois, entrei no “Facha”; o stand do meu padrinho ficava mesmo em frente, por baixo da “Cegrel” e em direcção ao “Rossio” e era o Café que me ficava mais à mão para os reconfortantes amendoins, rebuçados escapados à catástrofe que costumavam ser as finanças adolescentes… Lembro-me que numa mesa perto da porta um indivíduo de fato azulado, um pouco inclinado sobre o tampo, se entregava a qualquer actividade pouco usual. Quando tornei a passar o sujeito acendia um cigarro; o busto, erecto, deixava entrever uma folha de papel. Soprou o fumo, tirando com a mão esquerda um pedacito de tabaco que se colara nos lábios; nessa altura, o empregado perguntou: “Sr. D’Assumpção, quer em copo ou em chávena?” Referia-se à “bica”; naquela altura havia pessoas que preferiam bebê-la em recipientes de vidro e não na habitual chávena branca, de loiça; hábito que se radicava na aprendizagem de que (segundo constava) os micróbios frequentavam menos os primeiros…
Na rua, pensei: “Este é que é o tal da mota…”. Mas o que me ficara nos olhos, pelo traçado inusual, fôra o desenho. Onde se encontrará hoje, depois de por um momento se ter cruzado com o garoto que eu era então?
Quando cheguei ao “Stand” – (naqueles anos, como se sabe, tudo tem um halo de mistério, aliás a verdadeira face do mundo; depois perde-se pouco a pouco a capacidade de nos maravilharmos) – na ocasião propícia disse a meu Pai que vira o sujeito da mota no “Facha”, a desenhar. Ele retorquiu que o filho do Sr. Rosiel tinha estado lá fora, parece que em França, fazia quadros, mas estivera doente ou coisa que o valha. “Tem estado agora cá, não sei se para trabalhar com o pai…”, concluiu.
O Sr. Rosiel conhecia eu bem (viria a conhecê-lo bastante melhor, mantendo mesmo com ele largas conversas iniciadas no estabelecimento de electrodomésticos “Custódio Silva”, pela noitinha, enquanto – umas vezes por outras – um que outro cívico, obedecendo a ordens, fingia que olhava os aparelhos expostos na montra, vigiando a bem da Nação os perigosos dois-ou-três subversivos que ali, mefistofelicamente, trocavam opiniões sobre gente tão perigosa como Faulkner, Aquilino, Tolstoi, Van Gogh…). Como alguns se recordarão, tinha um “atelier” de fotografia à esquina por cima da loja “Hermínio Castro”; era ele que me plasmava em retratos tipo passe para diversas utilizações: para tias devotadas e madrinhas amantíssimas, com um xi-coração repenicado; para as cadernetas da Escola; para os usos e costumes de molduras sobre as cómodas, depois excursionando por feéricos álbuns, hoje envoltos em nostalgia, onde os primos, cunhados, avós e tios nos contemplam de juntura com faces de amigos que já não sabemos bem quem sejam. Certo dia, nessa loja, vi encostada à parede uma pintura onde os azuis e os vermelhos, os rosas e os verdes-maçã criavam uma estranha sinfonia. “É do meu filho…” respondeu o Sr. Rosiel à pergunta que timidamente lhe fizera. “Gostas? Vê lá tu que reparaste!”. Ficara contente. Era aliás uma pessoa extremamente atenciosa, cuja bonomia recordo por entre outras aparências de depois, sempre com o seu cigarrinho que nervosamente chupava com todo o ímpeto de velho fumador. De fato escuro, magro, tinha semelhanças com o filho. Mais tarde, conheceria o outro filho – dar-me-ia um pouco também com ele – este sobre o fornido de carnes, só tendo em comum talvez o olhar agudo. Como era fotógrafo, encontrava-se comigo frequentemente em eventos que eu ia cobrir jornalisticamente como redactor dum velho periódico local.
Mas voltemos a D’Assumpção. Tanto quanto o permite o rodopiar das palavras, ora aqui ora ali.
 Tempos mais tarde, entrei na época do ping-pong e do bilhar. Depois das aulas, a dadas horas, frequentavam-se as salas da “Mocidade Portuguesa” (onde os preços eram mais em conta), do “Central”, a sala traseira do “Facha”, o salão do Clube de Futebol do Alentejo, da FNAT (onde de noite, às vezes, havia uns teatros e se podia ver televisão), do “Alentejano” e do “Plátano”; quando estes estavam ocupados ia-se também à sala do “Estrela”, na altura num primeiro andar frente à Casa Umbelino, mas era lugar acanhado onde os tacos batiam por vezes na parede; o “Plátano” da época era também frequentado por partidários do dominó, da bisca lambida… Na parede, enquanto efectuávamos as carambolas, os efeitos, um que outro pique mais desenvolto e promissor, um quadro bastante grande servia para descansarmos o olhar vitorioso ou derrotado: o célebre quadro de D’Assumpção que, segundo ouvi relatar, seria depois vendido pelo proprietário a uma galeria do Porto, com bom e legítimo proveito.
Na minha recordação o quadro aparece-me enevoado: sei que havia um horizonte, árvores, - mas o todo da obra desapareceu-me para reinos inalcançáveis. E quantas vezes o contemplei, umas vezes apreciando-o em miradas sucessivas, outras num relance, assoberbado pelas excessivas carambolas do adversário! Mas o mesmo sucede com rostos, acontecimentos e coisas que connosco se cruzam na nossa navegação através do tempo, uma vez que as sedimentações se dão incontrolavelmente, por uma mecânica subtil que ora nos surpreende ora nos sufoca – se sabemos conservar o nosso coração de crianças.
Mais tarde, já adulto, soube de D’Assumpção de maneira diferente: algumas vezes falei dele com Herberto Hélder no “Monte Carlo”, nos meus tempos de tertúlia lisboeta logo ao voltar da Guiné, depois de com outro antigo companheiro ter entrado em contacto com a gente do grupo de revista “Grifo”; algumas vezes escrevi sobre ele, sobre a sua pintura; certo dia, como que por acaso, soube da sua morte – sobre a qual não me vou debruçar; tomei a iniciativa de expor quadros dele, integrados numa colectiva em que além de obras diversas de autores de Portalegre havia também serigrafias de Mário de Oliveira e óleos de Cesariny (a “Geração Sibilina”, que pertence hoje ao acervo do Museu local, por minha decisão, pois encaminhei para ali os quadros que o Mário oferecera a Portalegre, ficando ao meu alvedrio a entidade que os devia receber – secção cultural do Clube de Futebol do Alentejo? Museu Municipal?
Optei por este último, por me parecer melhor apetrechado para os expôr. E assim foi, com efeito: três anos depois já lá os tinha nas paredes, assim como os outros… Foi a última notícia que ao meu emprego dessa época me veio dar o Manuel Mourato de boa memória).
Aqueles quadros, hoje patentes no Museu, estão lá por uma razão: fotografados por Joaquim Ceia Trindade (A.J.Silverberg) por minha solicitação, as fotos foram remetidas ao marchand João Pinto de Figueiredo, que por intermédio de Mário Cesariny eu prevenira de que existiam; embora ele não estivesse, na altura, interessado na sua aquisição, sabia do eventual interesse de um apreciador do Porto; perguntou-me por telefone se os quadros estavam assinados. Eu não vira assinatura (saberia depois, pelo seu cunhado Sr. Valente, também da minha lidação, que o estavam nas costas, que as molduras interditavam) e assim lho disse, embora de acordo com o mesmo Valente um perito, que os analisara, atestasse que eram obras de D’Assumpção sem qualquer dúvida. Devido a isso – o que é compreensível nestes negócios – Pinto de Figueiredo declinou mais interesse. E, assim, foram posteriormente adquiridos pelo Museu local por um preço bastante razoável (preço de conterrâneo); em 1981, na exposição “Três Poetas do Surrealismo – A. M. Lisboa, M. H. Leiria e Pedro Oom”, era um desenho aguarelado de D’Assumpção que constituía a face do convite endereçado pela Biblioteca Nacional, entidade que a patenteava; e na mostra de 1984 “Surrealismo e Arte Fantástica”, organizada por Cesariny e C.Martins com a minha colaboração (infelizmente de longe e vendo com certa angústia o quanto ficaram assoberbados por tarefas inúmeras) no Teatro Ibérico e na Sociedade Nacional de Belas Artes, outro desenho de D’Assumpção aparecia no catálogo-livro em jeito de homenagem, sendo igualmente a partir de um óleo seu que o cartaz e o desdobrável foram iluminados.
Entre uma e outra idade houve contactos, reflexões, momentos e olhares que a escrita memorialista não atinge: pertencem ao céu e ao inferno do poeta, daquele que evoca. São imarcescíveis e impossíveis de fixar. A sua geografia é interior, pertence a lugares inabordáveis.
Mais terra a terra, saudavelmente perversa e envolta em roupagens quotidianas, aqui fica uma pergunta com que termino estas breves e leves, difusas recordações: como é possível que depois de tanto tempo após o seu falecimento, tendo o Pintor atingido tal notoriedade pública (ele que sempre dispôs da estatura que lhe era própria, mas que foi solapada num gesto em que a terra portalegrense, ainda controlada por medíocres e onzeneiros sem perfil, segue sendo fértil) não se tenha ainda efectuado em Portalegre uma retrospectiva ampla, séria e fundamentada de D’Assumpção? Como é possível que os seus conterrâneos continuem afastados da contemplação conveniente da Obra de um dos mais originais e suscitadores pintores modernos lusitanos?
Aqui fica, em terreno vago, a pergunta. E o seu eco gostaria que se projectasse, justa e acusadoramente, além dos rochedos que o proporcionam, rochedos que não serão para sempre as fragas da Serra da Penha em que alguns querem encerrar as consciências livres.


2. “OLHARES E VISÕES” - POEMAS-COLAGENS, GUACHES E DESENHOS DE JOÃO GARÇÃO

 “O olhar exerce-se nesse intervalo que vai da coisa à sua representação, no interstício imaginário que julgamos conhecer só porque temos os olhos que deus nos deu e os utilizamos para distinguir entre as coisas na sombra ou na claridade e a sua permanência na memória, no que todavia continua velado, obscuro, indistinguível. Ou pode continuar, caso não haja reconhecimento, no que é contínuo e diferente a cada minuto.”, assim o disse eu a dado passo num texto lido durante a inauguração da Mostra.
 Ou, como refere Floriano Martins ao mesmo propósito, “(...)O simulacro está ligado aos vestígios fechados, não revelados, da existência. Isto nos leva ao palco, ao tablado agónico das simulações, aos enredos míticos e místicos que se esmeram em conferir realidade, à fábula. Lugar sagrado onde(...)a criação artística como um todo busca algo mais substancioso do que simplesmente derrotar o intelecto. Mete-se com o “finíssimo vazio” onde vai explorar suas possibilidades de ser. Absorve todos os engates e desgastes”.
 JG sabe que se a pintura tal como a poesia é comunicação, especial ou especializada, é também uma proposta de substituir o que se pensa haver pela matéria que se tem, ainda que de forma peculiar. Nada é igual a nada, que o mesmo é dizer: tudo é igual a tudo – mas num outro plano onde já se transfiguraram emoções, raciocínios e pensamentos mediante os sinais, as linhas e as representações plasmadas numa tela ou numa folha de papel. “Pintar é viajar” dizia apropriadamente Picasso. E em seguida: “Eu não procuro, encontro!”. Embora, é claro, esse encontro seja propiciado pelos minutos, dispersos pelos meses e pelos anos, que a vida contém.
Daí que “Foi quase sem sentir, ao longo do tempo, que pintei e escrevi estes trabalhos, em parte já esquecidos. Muitos deles fi-los e deixei-os na casa que então habitava, assim como muitos poemas escritos em folhas diversas. Reencontrei-os há um par de dias, já emoldurados uns, passados a limpo carinhosamente, outros. Uns lembrei-os logo, outros eram como filhos que tivesse perdido num lugar inabordável. E durante esse par de dias que mediou entre a minha chegada à casa da infância e adolescência e o acto de os montar e colocar nesta sala, olhei-os intensamente para que certas memórias revivessem”.
 Olhares e visões... Como se as cores, os ritmos, os sinais e as letras cobrassem uma vida específica, reentrassem na memória, nesse espaço que já não é apenas lembrança mas a recomposição de algo que se reconquistou na sua materialidade eminentemente espiritual, como diziam alguns desses que o autor pôde um dia contemplar anos e anos atrás...


3. NUNO REBOCHO – UM CONVIVENTE GOLIARDO MODERNO

Muitos são os benefícios de viajar: a frescura que nos traz ao espírito, ver e ouvir coisas maravilhosas, a delícia de contemplar novos lugares, o encontro com novos amigos e o aprender finas maneiras

 Muslih-din-Saadi, poeta persa

1. Dizia Samuel Clemens (Mark Twain), também ele viajante e cronista devido a decisão própria e, durante algum tempo, viajeiro por profissão, que viajar era passear um sonho.
E acrescentou que a escrita que daí resulta passa a ser o sonho transfigurado, com o seu território de realidades e de quimeras, de minutos que se abriram para novas visões e novos pensamentos e doravante perduram como relatos que nos ensinam e nos maravilham.
Andar pelo mundo e pela vida e escrever sobre isso – pessoas, coisas, sucessos da mais diversa ordem – não é fácil tarefa, é preciso manter simultaneamente a inocência (temperada por alguma malícia), a perspicácia e um enorme sangue-frio, pois sem aviso as recordações apoderam-se de nós e como que nos obrigam a passar para outra realidade, em geral extremamente sedutora mas que nos enfeitiça com inexactidões involuntárias, filhas do nosso mistério pessoal. Por isso Benjamin Disraeli dizia avisadamente que “vi mais coisas do que as que recordo e recordo mais coisas do que as que vi”. Todavia, a grande solução consiste sempre em entrarmos generosamente na viagem, sem temermos a multiplicação de experiências, até mesmo de acasos, pois sabe-se que no final a escrita e seus interiores meandros – se dispomos da adequada dose de sensatez criadora – acabam por depurar, resolver e transfigurar aquilo que se viu, se sentiu e se viveu, como que por uma brusca mutação que vem não se sabe muito bem donde.
E depois há a memória que se convoca nos grandes momentos de fecunda solidão, de fulgurante isolamento criativo em que somos simultaneamente objecto e sujeito porque é por nós que passa a organização do que significam realmente as lembranças, do que foram efectivamente os perfis das gentes que nos rodearam, os tempos reencontrados em que revivemos uma conversa, um ritmo vital, um passeio, em que de repente ressuscitam perplexidades e encantamentos, fragmentos de tempo em que a nostalgia nos visitou sem que nos pudéssemos esquivar e que logo a seguir assumimos peremptoriamente como um dos nossos maiores bens.
A isto, creio, chama-se compreender. Porque por detrás de toda a alegria difusa transportada numa evocação, ou em todo o pequeno tremor que nos assalta ao termos a sensação de que qualquer coisa nos abandonou, há sempre um rosto ou a ideia de que por ali paira algo de humanizado e aonde se chegou através de um olhar mais exacto, mais treinado pelos mundos onde se esteve por destino e pelos universos que as deambulações nos propiciaram.

2. Já se sabe que a arte da crónica não é nem nunca foi uma arte menor ou muito menos mero preâmbulo para qualquer coisa de maior envergadura. Trata-se, com efeito, de um corpo inteiro que se joga ali mesmo, nesse continente de luzes e sombras onde crescem deuses e demónios inteiramente nascidos da realidade que se forja com os factos arrolados e sua representação palpável. Ou seja, uma poesia muito própria e sem sujeições a outras escritas aparentemente de maior porte no arsenal do autor.
Cronista e ser convivente, o viajeiro de “Estravagários” – estas crónicas belamente poéticas sobre o Alentejo real que os sonhos perduráveis do autor encenaram – tem parentes perfeitamente reconhecíveis, ainda que seja seu e muito próprio o estilo que arrola entre o alinhavo jornalístico e o desalinhavo livresco. São os amantes dos prazeres do espírito – e dos outros que gostosamente passam pelo corpo e a que alguns, com certa dose de leviandade, apelidam de transitórios ou baixamente materiais. Em todas as evocações de NR se sente perpassar uma clara alegria de viver, ainda que cifrada por alguma melancolia; donde o gosto pela boa mesa, por exemplo, não se ausenta nunca – e repare-se que aquela expressão vai no sentido lato. O espírito do lugar, que é o das pessoas que o habitam, é bem palpável com todo o seu manancial de coisas essenciais que vivem intensamente se tivermos olhos para cheirar, ouvidos para ver e alma para saborear. Nas crónicas de Nuno Rebocho, colega evidente de Goldoni, Hazlitt, Cela ou Saroyan, sente-se que as pessoas que recorda e os acontecimentos a que dá relevo não estão ali como pretextos fantasmais para umas tantas laudas literatas, mas para habitarem o quotidiano deste seduzido sedutor. Caldeados pelo pormenor argutamente observado, pelo trecho recortado com ironia, pela frase incisiva e mediada quantas vezes por uma indisfarçável comoção, cobram vida relatos donde pode extrair-se um perfume de passados finalmente refigurados e limpos da escória que o tempo lhes fez adquirir, de coisas e de momentos que se vão esquecendo e de outros que, embora existindo ainda na hora que passa, irão ser pasto para esquecimentos futuros.
Com estas crónicas, onde freme um tom pessoal e que possuem aquele sabor coloquial que a profissão do autor certifica e esclarece, mediante a maneira peculiar onde se desenha a sua aposta e o nosso privilégio Nuno Rebocho presta inquestionável serviço à nossa convivencialidade humana e cultural, à nossa memória específica de povo e ao nosso aprumo de pessoas que querem lembrar o melhor e o mais alto.


4. SOARES FEITOSA OU OS PERFUMES DO MUNDO

Posso imaginar, nas minhas horas, a vida eventual e projectada deste cidadão, daquele amigo, de um outro cuja figura se cruzou com o meu olhar por uns raros momentos. Posso supor, posso encenar, posso-o até conferir por dentro e por fora dos tempos que nos são comuns. Tudo isso é, já se sabe, matéria de realidade e de sonho. Melhor dizendo: do que se certifica em cada um de nós, dado que tudo é a um tempo mutável e multiplicável - uma vez que os mundos de quem vive e de quem recorda (efabula?) se interpenetram mediante a escrita e a imaginação criadora. E se é verdade que, ao fim e ao cabo, tudo vai terminar num livro (na literatura que está para além dos minutos quotidianos), de que maneira é que se conformam esses estranhos pedaços de universo – do universo que se vai construindo através do corpo e do espírito que dá origem ao mítico reino das palavras vivas?
Francisco (Soares Feitosa) sabe que “as sementes são fartas e o vento generoso”. Viu de noite, em longas caminhadas sertanejas, “a mata, a floresta, os chãos nossos de cada dia”. Andou pelas quebradas das serras, sob as árvores copadas onde por vezes repousam os animais ao crepúsculo, contemplou os cavalos, o beija-flor e a sombra que ele mesmo fazia ao caminhar na madrugada escura para uma povoação encontrada ao raiar do dia definitivo. E por isso ele pôde colocar, num envelope tingido pela cera das abelhas do sertão onde se ramificavam palavras escritas (como “cacimba clara”, como “estrelas”, como “a vaca rainha, os bodes, os capotes”), sementes de imburana-de-cheiro “torradas e moídas pelo próprio autor”, para assinalar esse grande ímpeto rural e cósmico que cifra a sua poesia – essa poesia estuante de vida e de participação que nos encanta e simultaneamente nos interroga e de repente faz surgir imagens de ao pé da porta, como se estivéssemos ali: “ Era de noite que chovia:/ gotas amarelavam/ à luz frouxa da lamparina de querosene,/ e as mãos cruzadas do menino,/ frio da serra,/ quase-escuro da noite:/ naquele instante era,/ se fundava/ a cheia da cisterna!”(…), diz-nos ele a dado passo criando de repente um fragmento intemporal das vivências que nos são comuns nas duas latitudes, nas latitudes todas.
No seu livro “Psi, a penúltima”, livro seminal duma poesia que, tal como o seu autor, excursiona pelos quatro pontos cardeais e nos empolga ao dar-nos reminiscências, memórias, esperanças verdadeiras e retratos das cidades e dos campos que umas vezes se contemplam e outras se adivinham, Soares Feitosa (Francisco) é bem o aedo, o nosso próximo de humanidade ao dizer-nos impressamente: “Anda comigo, meu parente, veremos tanto o distante mar como as coisas conhecidas e as figuras que as habitam. Aqui te deixo a lembrança dum primo, dum avô, dum momento imorredoiro. Eis o sol e a penumbra, eis o voo dum pássaro, o cantar dum galo, o sinal dum verso numa página de acaso. E sobre tudo isto, junto de tudo isto, os perfumes das campinas e os sons da vida que se evola”.
Impressamente. Serenamente, mas com a vivacidade de quem tem em si o conhecimento do que significa uma palavra posta e escrita em cursivo, sublinhada num livro como numa pauta de música, aberta na manhã dos homens como um vulto caminhando firmemente num bosque ou na rua duma cidade longínqua.


5. C. RONALD OU OS FOGOS DA NOITE

 A voz dos deuses não é sempre que fala. Tal como a voz do poeta. Mas, quando isso sucede, há fogueiras na noite que se põem a tremeluzir. Contudo, a voz dos deuses é pouco segura, afasta-se para além de nós, oscila, cria espaços de sombra à escala do destino dos seus senhores: porque os deuses vão secularmente desaparecendo mas a medida dos homens é diferente, resiste e a sua sombra é mais humilde – como a dum gato, dum arbusto, duma oliveira. Duma pessoa, simplesmente.
Recorra-se então à voz do poeta. Ela tem fracturas, o sangue estanca-se, a penumbra faz-se de súbito nuns olhos inquietos. Não importa, o sinal aí permanece, se propaga e estende. Alastra. Seja num descampado ou dentro duma casa, os sons ouvem-se, é inegável o eco despertado. Em redor da nossa cabeça cria-se como que um espaço de brusca realidade – e é então
que as figuras e as palavras começam a aparecer: estranhas salas repletas de mesas e reposteiros onde passam claros e sóbrios vultos de mulheres, coisas simples aos cantos que tomam outro perfil, o som de flautas, de violões e até de guitarras espanholas. E de repente um silencio que se dilata mas fica ocupado por um grito reboante e claro, possivelmente feliz. O poeta interroga-se, mas não é tudo uma interrogação? Não é tudo a dúvida de quem, não sabendo, conhece todavia muito do que subjaz às frases? Evidentemente, é o mistério da poesia, essa florescida necessidade que tanto parte do acaso como a ele conduz, essa chama que o poeta acende com ramos e com papéis, com tecidos, com substancias inomináveis, com os próprios dedos e que deixam rastos de fogo nas paredes e, principalmente, nas páginas que se organizam em forma de livros.
C. Ronald conhece bem os diversos rostos das palavras. Assim como conhece a face da alegria e do sofrimento, desse quotidiano que muitas vezes nos fere e nos angustia.
Conhece as ruas e a floresta, conhece o que há dentro duma cozinha e também dentro dum coração desconhecido, o que se esqueceu para sempre dentro dum quarto, o que se tem e teve, vulgar e por isso mesmo absolutamente belo, numa saleta que se recorda duma casa que amámos. Um rosto de velho ou de criança, as mãos dum amigo que se foi. Os ruídos do mar e o vozear da freguesia quotidiana num bar ou numa cidade que se visitou pela primeira vez.
Nos seus poemas existe sempre uma busca do que é significativo, ele procura sempre aprofundar o conhecimento possível para que se entenda o como e o porquê da escuridão que por vezes envolve o mundo.
A meu ver, este poeta de que tenho falado com empenho através da voz e da escrita é possuidor de um método de renovação da visão há mais de quarenta anos. E muitos o têm entendido.
Nos sons da sua poesia algo se prolonga e percebe-se neles a mais nobre e serena música, como num mundo que discreto se renova e continua a ouvir através das páginas e dos campos onde as fogueiras iluminam a noite.


6. HÉLIO ROLA E OS DRAGÕES DO MAR

Um mundo feérico, alucinante e encantado de faunas diversas, de monstros e de meninos, de bichos que assumem a sua condição de santos civis e quotidianos visitados pela amargura e a mais devastadora felicidade. Coisas do mar, coisas da terra. A preto e branco e a cores. Olhos que se viram na direcção do horizonte. Ali no Brasil. Ou seja: ali ao pé da esquina, ao virar da página e da avenida: no teu largo, na tua rua, no teu quintal. Dentro do Brasil e fora do Brasil – no coração duma floresta da Europa onde se acocoram os mal-nascidos.
Entre dentes e entre linhas. Entre deambulações. Entre o grito e o soluço. Para levar para casa como recordação intempestiva, para levar a todo o lado como uma minúscula assombração. Uma gargalhada louca correndo nos ares como o trilo duma flauta numa viela onde jazem carros esventrados, sacos velhos e dejectos de um mundo supranumerário. E também muitos lugares de serena contemplação. A tua, a minha, a alegria dos outros, de todos os que ainda não se desvaneceram. O adeus que não cessa, a melancolia de cidades ao alvorecer. A lua, o sol, um bocejo sonolento no meio da madrugada.
Ao bom calor do Brasil - aqui mesmo no Alentejo, junto ao lago dos patos no Palácio de Cristal, numa simpática tasquinha de Borba. Em Coimbra, nas terras da Amazónia. Como se o tempo e os seus contrastes fosse não mais que uns olhos ouvindo atentamente, orelhas a captarem todas as cores, a boca e a mão esvoaçantes que traçam os seus sinais sobre um cantinho do universo.
Como se tudo e ainda bem não passasse de um desenho a tinta-da-china ou então um volteio de guache enfeitiçado.

7. HENRIK EDSTROM OU A RECONVERSÃO DO UNIVERSO

Todo o verdadeiro pintor é de facto um demiurgo. E, como referiu Pablo Picasso, “mais que o inspirado é aquele que inspira”. Que inspira o desejo de uma nova visão, de uma nova formulação e, ao mesmo tempo, fornece as faculdades interiores para que tal seja não só possível como concretizável.
Mediante as cores e as formas com que se erguem os sinais dos três reinos da natureza, o que este pintor lírico e surrealista visa é transfigurar a existência em algo de significativo e de salubre, indo para além das condicionantes sociais e humanas. Uma vez que a pintura autêntica é uma alquimia espiritual, que transforma e que faz permanecer na existência quotidiana os signos que a sustentam e através dela permanecem no mundo.
Sendo um filho da Europa do Norte, Henrik Edstrom. aprendeu bem cedo as lendas dessas terras onde os gnomos e as fadas dos bosques vivem paredes-meias com os habitantes dos jardins, onde os turbilhões de neve nos deixam adivinhar figuras mágicas ao crepúsculo das povoações. Onde as cores e os traços, por seu turno, nas tardes de sol e de bom tempo possuem uma exactidão precisa e luminosa.
Porque dá mais facilidade de manejo, sendo mais libertador do gesto uma vez que confere mais rapidez à execução, o pintor utiliza preferentemente o guache e a aguarela, como nas obras (uma série de 24 pinturas encantadoras e plenas de frescura) com que ilustrou os poemas do grande poeta húngaro Attila Joszef.
Henrik Edstrom, através da sua paleta tão sabedora e livre como o coração duma criança, viaja pelos mundos onde dá gosto viver, mas com o conhecimento que de tal pode ter um animal quotidiano ou fabuloso entre os bosques e jardins dos nossos afectos vitais.
Nele habitam o poeta e o artista - que as cores e seus prestígios revelam como num encantamento que a todos é, afinal, íntimo e comunicativo.
  Tive o gosto de o conhecer na biblioteca municipal, em Portalegre, onde veio  há um par de anos expôr uma surpreendente série de 46 óleos, guaches, aguarelas e colagens. Eu cumpria ali os meus últimos dias de funcionário.
  Durante duas horas, na sua voz suavizada pela idade, mas firme e sugestiva como os versos do Kalevaala que aliás teve o ensejo de ilustrar, falou-me de lendas da sua terra, de projectos e de maneiras de pintar – pois este pintor-poeta é de igual modo um fabro, um hacedor no plano das matérias, da forma concreta pela qual se exerce a arte de efectivar uma obra que haverá de andar nos dois planos do tempo: a que se palpa com os olhos e a que se observa com os dedos das mãos. Adicionalmente, a que – como a ars magna, a opus primae – reside e se reconhece no plano da alma, como nos disse Eyrinée Philalète.
Dias depois – já ele voava de regresso a Anneberg, onde nasceu em 1937 - sem que para tal eu houvesse feito algo de assinalável vieram trazer-me ao gabinete um embrulho relativamente volumoso. Abri-o com expectativa. Continha dois quadros belíssimos e, num bilhetinho, vinham os seguintes dizeres: “Para o amigo NS intitular como achar melhor”.
  Estão hoje na sala da minha casa de Portalegre. Chamam-se, com efeito,  “A partida para a ilha” e “O príncipe colhendo a estrela” e epigrafam duas passagens do Kalevaala.
  Foi a fórmula mais adequada que encontrei para lhe agradecer.


8. PALÁCIOS DA SILVA OU A NATUREZA TRANSFIGURADA

Nos quadros de Palácios esplende a transfiguração do mundo. As cores, os traços, as manchas - as formas que projectam o seu universo interior - organizam o caos e dão um sentido novo à perspectiva humana do quotidiano. Recriação da Natureza? Talvez. Mas uma natureza reencontrada, finalmente próxima do Homem, ou seja: habitável, plásmica e salubre - mesmo nos seus tempos de inquietação.
  Em Palácios há drama, - a selva obscura dos filósofos e místicos da Idade Média, mas há também a alegria forjada  por combinações coloridas em que o movimento da mão possibilita o encontro entre raciocínio e sentimento.
Descendente directo de La Tour e de Dubuffet, Palácios retoma de forma muito própria a interrogação nuclear que foi cara a Gauguin: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?, o que significa que ele se apercebeu que a viagem humana pode ser interpretada mediante a elaboração de uma escrita pictural onde consciente e inconsciente se entrecruzam e palpitam. Não é assim estranho que este colorista se sinta atraído simultaneamente pelo vitral e pela escultura monocromática: no fundo, é a interrogação dos elementos contraditórios que, frequentemente, suscitam a atenção e o interesse de parentes pictóricos como Boccioni e Manolo Millares.
  Ao mesmo tempo próximo e disperso, Palácios conservou do passado os mitos de uma infância que lhe permite esvoaçar sobre o abismo dos minutos que a razia social tenta limitar. Algumas vezes cândido outras vezes trágico, o universo de Palácios conhece os mistérios das estações. E, através duma concentração em que a paleta se transfigura, concebe visões vegetais e minerais que nos dão a imagem duma existência finalmente liberta e à medida do percurso humano.

NOTA Este artista alentejano, para cujas esculturas dei a lume os poemas de “Fotosíntese da pedra” (incluídos no livro “Os olhares perdidos”, faleceu prematuramente em 2001.


9. ANDRÉS NAGEL, EM RELEVO

Os resíduos preocupam visivelmente Andrés Nagel (1947). Trata-se de vestígios ou de novas propostas de coisas (latas vazias, escovas partidas, invólucros rasgados, lâmpadas fundidas, trapos velhos e manchados)? As suas cores, contudo, são como sinais de explosões, estranhos obuses coloridos atirados para o espaço. E, na organização do gatafunho, abrem-se janelas para o mais além.
 Definitivamente, Nagel procura devolver a dignidade ao detrito, mas algo há lá por dentro que o suscita e impele. Ou, então, que o impede de assentar as suas barreiras ou as suas frestas pessoais em ordem a fazer passar sobre as flores do mundo um vento devastador. Como é que se organiza a existência, será por bruscos arranques ou tudo se processa num muito certo e seguro caminho de deuses? A interrogação está aí e não nos descansa nada. As pirâmides de Yucatan ou de Tal-el-Amarna, os monólitos de Cuzco e de Gessen só por excesso respondem a esta interrogação crucial. Uns à escala do grande e, no relativamente pequeno a pintura, o desenho e a escultura, afinal, buscam na sua dimensão, mas por outro continente, o mistério que subjaz à pedra, ao tijolo e, no registo do artista, ao cartão e ao contraplacado.
 Andrés Nagel creio que tenta, ao seu modo muito pessoal, reparar as muralhas derruídas desta solitária fortaleza em que se transformou o espírito humano. Se o faz com tubos de tinta ou com objectos mais apropriados a uma arqueologia futura é algo irrelevante. Ou antes, emendo, talvez seja fundamental porque desta soma de indecisões (ou de buscas intensas) parte porventura - e entre o lixo do tempo – um grito cuja assimetria, se não tem a ver com outras escritas pensadas, tem todavia muitíssimo a ver com a descoberta do drama em que todos nós estamos mergulhados.


10. MANOLO RUBANO E OS JARDINS SUSPENSOS

 É por dentro do artista que tudo existe com mais intensidade: cidades e gentes, os grandes impulsos que fazem aparecer e desaparecer os astros e as coisas. Por isso, a mão do pintor é uma sombra que entre as casas e as árvores tenta seguir a trajectória do seu sonho, uma vez que a realidade existe em vários planos seccionados, como se fosse uma sequência de fotografias  deslocadas ao longo do quotidiano mas vistas de diversas perspectivas.
Criado por tios almocreves, Manolo Rubano (Manuel Rubano y Rocablanca, 1972) aprendeu as vivências de um mundo outro, de um mundo penetrado por ritmos não-habituais, suscitadores de um olhar diferente, mutável e especioso. Talvez por isso, se assim me exprimo, os ruídos de diferentes lugares também aparecem frequentemente nos seus quadros: o som de um carro ao longe, apitos de barcos em tardes e manhãs ausentes e esquecidas, as vozes ofertadas de transeunte para transeunte enquanto os minutos se escoam – todos eles sugeridos pela magia das tonalidades que se completam. E o passado comparece também em certos momentos de nostalgia ou de mágoa, com as suas impossibilidades e as suas memórias. Um rasto fragmentado, na verdade, como forma de interrogação aos deuses do tempo.
 Artista ligado ao acto de fazer, de manufacturar espécies diversas do espaço plástico, expande-se igualmente na escultura – nos objectos, como ele gosta de lhes chamar por temperamento – este artista que navega na figura do dia-a-dia; aqui e acolá, uma frase lida num livro de outrora ou num caderno já só vivendo na recordação.
  E as presenças enevoadas de palavras aprendidas através dos anos, ao sabor das viagens, entre a alegria e a inquietação. Ou seja: cores, cores e formas plásticas entrando em nós, saindo de nós, calmas e ardentes de sugestão e de procura. Assim como se tudo fosse um jardim encantado dos tempos da nossa infância.
Utilizando o pincel, o guache, o lápis de cor e a tinta-china, na tela e no papel, Manolo Rubano busca que o mistério do mundo apareça e se configure como se a Natureza se desvelasse.
 Ele, à guisa de pesquisador ou de investigador do espírito, pega neste ou naquele indício, neste ou naquele pequeno facto e relaciona-os entre si. Para melhor os conhecer, para melhor lhes dar o seu verdadeiro rosto de serenas evidências Como um demiurgo, como um simples ser que sabe que os traços que pomos nos quadros são como que o mapa da caminhada entre os múltiplos continentes da nossa vida.



***

Nicolau Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha etc.  
Em 1990 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo (2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair). 
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo Francisco, Fora de portas, de Carlos Garcia de Castro, Estravagários, de Nuno Rebocho e Chão de Papel, de Maria Estela Guedes. 
Fez para a Black Sun Editores a primeira tradução mundial integral de Os fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional Poetas na surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril
Com Mário Cesariny e Carlos Martins, colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995).  Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones lusitanas
Tem colaborado em espaços culturais de vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de Mérito Municipal.






FLORIANO MARTINS | Nicolau Saião e o Surrealismo em Portugal


FLORIANO MARTINS | Simbolismo, Modernismo, Futurismo – com quais desses momentos melhor se identifica o Surrealismo em Portugal? O crítico brasileiro, de origem austríaca, Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em sua História da literatura ocidental, aponta “a ausência de um verdadeiro Simbolismo em Portugal”, ao mesmo tempo em que situa Mario de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa como “dois poetas de formação esteticista mas de ambições que já antecipam o Surrealismo”. Por onde começamos? Gostaria aqui de fazer menção a um termo valioso do António Cándido Franco, o de “afinidade involuntária”.

NICOLAU SAIÃO | O nó do problema creio que assenta nas condições de antidemocracia que sempre – sublinho, sempre) – existiram em Portugal, não só propiciadas por uma classe dominante extremamente cínica e autoritária mas, ainda, pelo seu tipo de cultura primarizada e pela sua mentalidade inculta, plebeia no sentido exato e o seu reacionarismo incrementado e sustentado por um tipo de fideísmo profundamente limitado e preconceituoso que tentava eliminar, espingardear ou suster tudo o que lhe cheirasse a modernidade ou trouxesse o selo de algo menos academizado. Sempre dominaram os estabelecimentos de ensino a alto nível, que em Portugal são os órgãos que controlam apertadamente os sectores intelectuais que fazem entre nós a chuva e o bom tempo por razões óbvias. Era assim dantes e continua a ser assim hoje. Daí que as afinidades entre os autores/criadores tenham de ser involuntárias ou, dizendo de outra maneira, conforme se pode…
Isso faz com que, ainda neste tempo em que vivemos, ou sobrevivemos, a arte moderna em geral e o surrealismo em especial sejam olhados como excrescências carnosas, produtos de quase marginais, de gente que não se deve deixar entrar, preferentemente, nos salões onde os donos da sociedade exercem a sua música e a sua dança contra tudo o que é legítimo em vida sã.
Portugal segue sendo um entreposto claramente de signo cripto-fascista, mau grado a maquiagem arranjada nos primeiros tempos a seguir ao 25 de Abril – maquiagem essa que, por já não lhes fazer falta, têm estado a abandonar com decisão. Só têm algum respeito pela chamada arte moderna em sentido lato porque esta, nos lugares onde o ambiente é mais salubre, vale muito dinheiro! Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, como se sabe, foram sempre corpos estranhos no tempo em que estavam inseridos. E o panorama continua a ser assim… exceto se o autor/artista se alcandorou por companheirismos ou afeições, geralmente, aos lugares de topo da “árvore dos níveis”…



FM | O que evidencia a revolução surrealista em Portugal e como ela se insere em um mapa da Península Ibérica? Penso aqui nas relações entre Cesariny e Buñuel, que bem poderiam ter sido ampliadas, considerando afinidades históricas. Cesariny chega a comentar tangencialmente acerca de Juan Larrea, J. V. Foix, José María de Hinojosa… Porém nunca houve entendimento entre as duas vertentes surrealistas. Algum motivo determinante?

NS | O que a revolução surrealista, encarada a nível europeu ou mesmo ibérico, evidencia, é a meu ver as enormes dificuldades de se existir autonomamente, livremente. O poder político-social, precisamente pelas razões históricas nos dois países, tentou sempre impedir que fôsse fácil existirem relações entre os criadores daqui e dali. Por isso o cardo foi sempre enorme, parafraseando uma expressão de Cesariny…

FM | As cartas de António Maria Lisboa constituem uma fonte de iluminação sobre inúmeros aspectos referentes ao Surrealismo em Portugal. Poucos anos antes de sua morte, já descrente da perspectiva de reestruturação grupal do movimento, lemos em uma carta destinada a Cesariny ali imprimir seu desejo de ver seus amigos uma vez mais a seu lado, “desta vez não com a sombra de um Breton”. E em uma de suas últimas cartas, já no Sanatório da Quinta dos Vales Covões, em Coimbra, 1952, comenta com Mário Henrique Leiria acerca de uma “fundamental dificuldade” dos surrealistas: “sair da fácil expressão, do hábito a que dialeticamente se deram e onde anti-dialeticamente permanecem”, finalizando: “Breton será mil vezes culpado”. Até onde acerta António Maria Lisboa, não propriamente acerca de uma culpa de Breton, mas antes de uma falta de identidade no tocante ao Surrealismo em Portugal?

NS | A culpa de Breton, digamos assim simbolicamente, assentou no fato de que ele vivia numa França aberta e os surrealistas portugueses, ou que tentavam sê-lo, viviam num Portugal do antigo regime, ultraconservador e muitas vezes ultramontano. Em França era-se hostilizado pela mentalidade academicista da classe dominante, mas em Portugal ia-se parar diretamente, sem paninhos quentes, à prisão, à miséria econômica e à marginalização pura e simples. O que agravava as divergências, as questiúnculas e os destrambelhamentos até, dos autores portugueses, meros sobreviventes de uma nação dominada por gente nefanda.

FM | Há um comentário de Adolfo Casais Monteiro - A palavra essencial, 1972 - sobre composição e espontaneidade em que recorda que, “tal como em toda a literatura, também nas criações surrealistas havia uma diferença abissal entre a poesia espontânea de uns e a espontânea… vacuidade dos restantes”. Como lidou o Surrealismo em Portugal com essa aparente ambiguidade?

NS | Lidou mal, necessariamente. E o contrário é que seria estranho. Um surrealista autentico, em Portugal, vive ainda hoje, como vivia dantes, sob a férula de poetinhas que promovem, controlam, selecionam e acatitam muitíssimas vezes ilustres mediocratas que exibem como gente de grande gabarito.
Não é pois uma ambiguidade, mas uma consequência de Portugal ter sempre vivido no domínio apertado de aparelhagens de extermínio moral que epigrafa os “surrealistas” que lhes convém epigrafar. Liofilizados ou amansados. Objetos de literatura no pior sentido do termo. E quem se rebela… fica frito por esses cozinheiros de más iguarias.

FM | Seria possível imaginar um Surrealismo outro em Portugal sem a figura tutelar de Mário Cesariny de Vasconcelos?

NS | A realidade é que foi como foi. Cesariny, da maneira que pôde ou lhe consentiram, foi um resistente. Bem, mal, assim-assim? Sei das dificuldades que teve, que muitas vezes lhe criaram, já pela hostilidade já, depois, por o querem jungir a um surrealismo que, se fosse como eles determinavam, seria então credor de aplausos e de carinhos…duvidosos. Acresce que Cesariny tinha uma orientação sexual que essa gente tentava fosse a marca da sua totalidade enquanto ser humano/autor. O truque infame é bem conhecido…numa sociedade fideísta e, mais que isso, que se serve do fideísmo, tal qual se serve doutras afins, como arma de repressão e opressão.

FM | Quais relações podemos encontrar entre Surrealismo e o happening, como já o propusera Ernesto de Sousa em 1969, ao reunir poemas de Almada Negreiros, Mário Cesariny, Herberto Helder e Luiza Neto Jorge? E quais desdobramentos relevantes podemos comentar?

NS | Não o sei exatamente. Só sei que Cesariny, por várias vezes, me referiu que em Portugal o fenômeno happening corria o risco de acabar por ser uma coisa em estilo Parque Mayer. O que eu pude observar deixou-me muitas vezes com a sensação de que ele, que era um fino observador, percebera que numa sociedade como a nossa se corria sempre o risco de se mergulhar num “melting pot” transversalmente atravessado por um ar eventualmente percorrido por fumos e odores nada salubres.

FM | O que o tema Surrealismo significa hoje em Portugal?

NS | Algo que foi e continua a ser, da parte dos seus criadores sem jaça, qualquer coisa de muito luminoso, mau-grado as sombras que lhe tentaram sempre criar na figura. Da parte dos observadores que estabelecem os seus figurinos e as suas indumentárias para o baile social, algo que conviria desaparecesse o mais depressa possível. Apesar de o surrealismo praticamente não contar para nada socialmente, neste país, se pudesse ser exterminado deixaria muitíssimo mais felizes os que sentem no sapatinho essa pedra incómoda.



***

Nicolau Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha etc.  
Em 1990 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo (2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair). 
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo Francisco, Fora de portas, de Carlos Garcia de Castro, Estravagários, de Nuno Rebocho e Chão de Papel, de Maria Estela Guedes. 
Fez para a Black Sun Editores a primeira tradução mundial integral de Os fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional Poetas na surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril
Com Mário Cesariny e Carlos Martins, colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995).  Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones lusitanas
Tem colaborado em espaços culturais de vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de Mérito Municipal.






NICOLAU SAIÃO | A caixa de Pandora


1. AS PROFISSÕES RECUSADAS

O pormenor está em ouvir ainda que Breton defendesse um dia que o que era preciso, para chegar ao último estádio da Obra – discretamente, falo por símbolos… - era um superior mergulho na grande ausência, aquele estado de distracção fervilhante capaz de levar o poeta, ou o fulano por extenso, pelo mar ou a planície de casas, corpos, intensidades bruscas, sentimentos e esperas. O viandante transformar-se-ia, assim, num telescópio – ou num microscópio, porque o grande e o pequeno incluem-se e o que está em baixo é como o que está em cima – navegando como uma escuna que recebesse no casco o embate dos habitantes dos oceanos, os ventos de longe, o fulgor dos astros ainda inocentes.
Mas refiro-me a ouvir tudo. Os ritmos secretos da Terra? Sim, mas parece-me que foi chão que deu uvas, a acreditar em anos e anos de má literatura ou, mais grave, de más consciências transbordadas em “gestos cívicos” a dar por um pau, amores próprios e alheios, corridas pedestres. Jogging, como se diz. A verdade, aqui para nós, é que não existe segredo que contemple, por banda dos deuses da escrita, o ligeiramente ingénuo sujeito que se ponha ao trabalho: a corte celeste será então de loucos ou de poetas absolutos e não seria demasiado pensar que Diana ou Artemisa, no intervalo dos seus “affaires” normais, compusessem olhando em volta com certa angústia uma ode, um alongado canto onde se mesclariam porventura os lamentos por um planeta perdido, ou por uma terra distante, ou simplesmente uma interrogação mais ou menos rendida de como se encontra a chave do mistério – que segundo parece não entra todavia em nenhuma fechadura.
Digo para mim entredentes: passemos por esta rua, hoje o sol abriu contra os muros das velhas casas claridades insuspeitadas. Entreguemo-nos por alguns minutos às nossas selvagens alegrias. Façamos de conta que a literatura não existe e que sentarmo-nos num banco, no antigo Jardim da Corredoura, não traz imediatamente à lembrança uma página de Bulgakov, quando Margarita contempla o despertar de Moscovo e em sua volta se movem estranhas influências que iriam culminar no grande baile de Satã onde os sete palmos da existência e as cinco dimensões teriam uma palavra a dizer. Mas a literatura existe e é escusado querermos afastar as suas reminiscências.
 Afastar é como quem diz, porque não se dispensa a música ao longe seja qual for o sentido que se lhe dê. Resumindo: quem iria dizer (pensar, o que vai dar no mesmo) que o Tio Brandão era farda? Por estranho que pareça, ou não – e nisto os Liceus é que têm a culpa - só por volta dos vinte e muitos soube que o nosso homem era oficial do Exército. O que aliás não tem mal nenhum, acentuo. Pode ser-se militar quase como se é pasteleiro ou director dum clube de críquete. E os futebolistas canadianos que participaram com pundonor no campeonato do mundo no México, ou coisa, não eram empregados-de-balcão, advogados, estudantes e por aí fora?
 Vou então ficcionar por uns momentos. E atribuir profissões desencontradas a este, aquele, aqueloutro. Por exemplo: Tolstoi como jornalista no “Expresso”; Marco Aurélio como escriturário em Queluz ou Campo Maior; Camilo como farmacêutico num estabelecimento em Lisboa; Proust como árbitro de andebol nos momentos livres e, para ganhar a sopinha, primeiro-oficial num município; Abelaira como gerente duma casa de fados e, para espairecer, pintor de domingo nos intervalos das escritas; Eça de Queiroz, odontologista em Montemor-o-Novo; Pessoa, evidentemente, funcionário do FAOJ destacado em Sintra; Marguerite Yourcenar, professora de História em Beja; quanto a Rimbaud seria excitante imaginá-lo por uns segundos aluno da Faculdade de Letras alfacinha, assim como será difícil resistir a congeminar Flaubert como médico de senhoras em Elvas ou Alenquer.
 Se, como alguns excelentes críticos pretendem, os axiomas são desmontáveis mais que não seja dentro das suas cabeças, a suprema festa seria então abandonar os textos ao seu destino. E teríamos: “O vermelho e o preto” por David Mourão-Ferreira; “A morgadinha dos Canaviais” por Witold Gambrowicz; “Por quem os sinos dobram” de José L. Peixoto; “Histórias do fim da rua” por Chateaubriand; o “Só” de Saint-John Perse; finalmente, “A vida em Middlemarch” por Ramalho Ortigão.
 Imaginemos mais um pouco: não haveria maneira de se entretecerem as escritas? Assim, as frases iniciais de “O deserto dos tártaros” poderiam enroscar-se a dado passo num trecho de “A Cartuxa de Parma”; e o “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho” não ficaria descabido, convenientemente acomodado, numa página de Jorge Luís Borges. E o conflito moral de “Beau Geste”, antes e depois de ir para a Legião Estrangeira? Pelo andar que as coisas levam não seria de estranhar vê-lo na escrita sugestiva e ágil daquele romancista que ficou tão galhardo em telenovelas.
 Leio, dos “Princípios” de Eyrinée Philalète, o décimo-terceiro e não porque tenha simpatia pelos números ímpares: “Encontrando-se as coisas assim dispostas, colocai o ovo onde estiver a vossa matéria nesse forno e dai-lhe o calor que a Natureza pede, isto é, fraco e não demasiado violento, começando aonde essa Natureza o deixou. Não deveis ignorar que a dita Natureza deixou a vossa matéria no reino mineral e que, embora nós tiremos as nossas comparações dos vegetais e dos animais, é necessário contudo que concebais uma relação apropriada ao reino no qual está colocada a matéria que quereis trabalhar(…)”. Se o romancista é alguém para quem nada está definitivamente perdido, como se disse (com propriedade? sem propriedade?) o truque estaria porventura em efectuar passages à tabac aos sentimentos, às sensações, às alegrias e aos infortúnios. Como nas batalhas em jogos de computador. Mas como os jogos são todos de vida ou de morte, quer sejam no interior do núcleo (a palavra, leia-se) ou no grande exterior (ainda a palavra, previno) deixemos o Norte a norte, o sueste a Sueste e os rios correndo franca e limpidamente para a sua foz.
 Raul Brandão era pois militar? Era militar e ainda bem – e nem sequer lhe foi preciso, como a Mac Orlan, ter ido para os aquartelamentos legionários no deserto. Foi o que no seu teatro próprio melhor lhe quadrou (porque foi dess’arte e não doutra maneira) de resto parece que ao mandar os taratas efectuar “esquerda ou direita volver” acrescentava frequentemente “se me fazem o favor”. Reminiscências, dirão os mais experientes em tratos místicos, dos hortos de uma certa Arcádia, da pureza das areias argelinas ou da serenidade das planícies de Saskatchewan.
 Não sei, não quero opinar e além do mais as partidas é como se as tivéssemos, já, todas ganhas.
 Aqui ou em Sidi-bel-Abbès

2. GILGAMESH OU A APOSTA IMPOSSÍVEL

 Seria fácil imaginar um tigre a comer erva, assim como um cordeiro a engolir a pitança. Todavia… Todavia estou a lembrar-me, ao calhar dos minutos, daquela célebre hipótese de Mark Twain: “Se Moisés não tivesse existido, teria existido decerto outro indivíduo com o mesmo nome”. E funções, evidentemente, acrescento de minha lavra. Aqui, entra Chesterton em cena, peso-pesado das metafísicas ligeiras mas reconfortantes: “Eu nunca minto, a não ser que seja absolutamente necessário”. Pois, é como na História não reciclada pelos descendentes ou herdeiros de Walt Disney. Velha mania de ocupar os lugares todos, de preencher o tal vazio assustador dos metafísicos? Ou apenas sensatez suficiente para que saibamos, definitivamente, que onde está um baú não pode estar uma cadeira de baloiço, assim como onde está um inteligente não podem estar sete idiotas?
Em trocos miúdos: o que se aponta é de facto para o simulacro da “hybris” revista pelos sucessivos concílios. Esses tais que nos quebraram a cara como o faria um soco de pugilista desempenado, sem que no entanto em simultâneo nos tratassem da alma que como se sabe se multiplica nas celestes moradas em graus de aperfeiçoamento singular. Questão intemporal de ascensões no etéreo, digamos, ou de quedas corporais. Ou, melhor ainda, o apelo fascinado de certos mundos paralelos que nos oferecem a ciência e a religião oficializadas, certas paisagens serenas ou infernais cuja traça se ergue para logo se desmoronar, como em Hollywood.
Aqui entre nós, que pouca gente nos escuta: quem é que não sonhou ainda em mudar de rota, uma vez por outra, mesmo sabendo que o ser-se isto implica necessariamente não se ser aquilo, sendo a Vida como é (ao que alguns dizem com sensatez maldosa) não propriamente uma escolha mas a impossibilidade de se terem dois destinos?
Com o que, pelo que, conclui-se sem mais demoras que um tigre a comer erva só nos anúncios da margarina Custódio ou do automóvel Tortilha. Ou nas estórias da Carochinha que os malabaristas da coisa pública, finamente, nos distribuem pelas rádios e têvês.
 Digamos com certa inocência, como nas doces festas de anos de antanho: saibam lá vossências que há pouco tempo atrás um sábio que é também robusto memorialista – trata-se de François Jacob – assinalou que a existência mais parece coisa de biscateiro que de engenheiro, mesmo genético. As somas eventuais não apagam nem destroçam e muito menos repelem o já construído. É no género do “Blade Runner” ou dos fabulosos bricabraques de Tinguely. Coisa de truz – e eu fico-me um bocado a rir das tiradas dos que compenetradamente afirmam nos media que estão muito atentos e um pouco trémulos ante a possibilidade de se multiplicarem em provetas os hitlers, os stallones e outros hermanjosés. Mas não foi sempre a sociedade, além da ciência e das técnicas que lhe estão nos arrabaldes, uma perigosa brincadeira? Se no próprio laboratório do Éden, onde os elohins oficiavam… - mas deixemos isso por ora.
 Creio que fará sentido concordar com Thomas Mann quando este refere, nos intervalos do seu sonho montanhês, que ao nível das concreções superiores existe como que uma actuação alquímico-hermética do coração humano, uma renovação de todas as fibras do ser que nos força a ir em busca do conhecimento capaz de nos fazer compreender que os passeios pelas margens dos rios, as idas ao cinema ou ao circo de mão na mão, o acordar no azul penumbroso dum quarto às três da tarde ou às quatro da manhã são o equivalente de coisas que a mística só pode explicar de forma aproximativa. (Dantes agia-se de forma expedita e suave: calabouço com eles e uma eventual passagem pelas brasas). E talvez faça sentido, também, meditar nesta frase de Nietzsche que, como num espelho mágico, nos diz lá do fundo: “Há alguns que nunca se tornam doces e apodrecem mesmo no Verão. Só a cobardia os sustenta no ramo”. E antes de entrarmos no fato bem passado da angústia existencial, vistamos por baixo uma camisola barata de senso comum: “Quando eu tinha vinte anos, diziam-me: hás-de ver quando tiveres quarenta anos! Pois bem: tenho quarenta anos - não me mostraram nada”. (Benjamin Péret).
 Venham cá dizer-me que a metafísica é uma serena imanência! Não os acreditarei, com mil bombas. Seja no masculino ou no feminino. Porque os deuses têm cara de tarráqueos nestes tempos que vão correndo. Quer dizer; antes de subirem aos céus experimentam em nós os seus destinos; não falando - porque isso dá excomunhão mais ou menos democrática - no cultivo intensivo e na intensa proliferação de santos, aspecto que não será de desconsiderar. Na verdade é tudo uma questão de símbolos.
 Eis senão quando que Gilgamesh, por causa das vozes de sempre (já com Joana d’Arc irá ser alegadamente o mesmo incómodo) se decidiu a tomar da capa e do porrete e abalar para o deserto. Ia em busca da flor azul, como nos contos de fadas? Parece que não, o que estava em causa era tão só a imortalidade e não a saúde e a cura por extenso (úlceras, cegueira, tiro de pistola no flanco, enfarte de miocárdio). E então deu-se que Enkidu, ser primordial e selvático, inocente como um padre cura do breviário, lhe apareceu pela frente – os braços peludos de atleta, os olhos de vedeta das matinés adolescentes, a naturalidade de futebolista ferrabraz, a figura talhada ao jeito das fitas de Spielberg… e foi o coup de foudre conforme reza nas tábuas de barro. Coisa mística, de resto, como nos conta a seguir um velho papiro (apócrifo?). Saborosa e interdisciplinar.
 Contudo…
 Contudo, como já cá se ficou sabendo, os cordeiros não comem carne e os tigres muito menos tasquinham a ervinha tenra. Gilgamesh, algo ingénuo e estupefacto, viu aparecer de chofre coisas adustas no corpinho empolgado de Enkidu: tinha de se render à evidência, a metafísica às vezes fica claramente ultrapassada pelas circunstâncias do momento em tempo real, a filosofia e os textos pré-diluvianos são muito bonitos mas não servem, de todo, em determinadas ocasiões: Gilgamesh, com a personalidade enrodilhada, as roupas num farrapo, começou a perceber que Enkidu não era tão angélico e abstracto como nas ficções, mais parecia um gigolo do Parque Mayer, a braguilha desapertava-se-lhe em alturas muito impróprias e um arfar suspeito punha-se a trabalhar como um motor de avioneta. Gilgamesh concluiu então que os mitos são coisa fina mas não safam a virtude de um homem de brios, co’os diabos. Tratou, rapidamente, de se pôr a andar enquanto dizia de si para si que é inútil um zé-maria enlear-se no golpe da mágica/mitológica compreensão absoluta com um zé-antónio, porque então o zé-antónio transforma-se noutro zé-maria e tudo volta ao princípio.
 Circular, como nas fábulas iniciáticas. De sorte que o nosso herói, já com a escolaridade pessoal toda empinadinha, aprofundou-se finalmente pelo rosto da deusa, que mais adiante no relato o esperava a pé firme. “Será este pois o sentido da Estória que se conta depois do repouso do Senhor, quando Adão viu, entre assustado e divertido, o pirilau crescer com denodo ao contemplar o fruto da sua costela?” perguntará, do lado, o leitor com ironia.
 Na verdade, o andrógino inicial é coisa com certa piada, talvez, mas só faz sentido nos contos de proveito e exemplo mediante os quais se chega a conclusões diametralmente opostas consoante se for anjo ou demónio. Enoch sabia disso (e era esta a sabedoria dos antigos escribas, que só por irrisão se crismariam de hipnotizados. Adiante). O que realmente faz brilhar as pupilas da existência, essa existência séria que o grande Humboldt tão bem escrutinou, é o facto de haver opostos com a autonomia que dá origem às novelas surpreendentes. De resto, não. E foi nisto certamente que o Alfa-Ómega pensou, ele que é princípio e meio e parece que não tem fim e que, experiente até mais não, tem para além dos limites a legítima lábia e o conhecimento da matéria.
 Mas seria, com franqueza, de esperar coisa diferente? Como dizia outra vez Chesterton, depois de ter relanceado a lady do distrito de Belgravia com olho maroto, “Os amores platónicos, como todos os tónicos, são apenas um estimulante”. Se não acreditam, vão perguntá-lo a Gilgamesh.
 À Deusa, quer-se dizer…

3. AS ESPÉCIES POÉTICAS

 Sabe-se que há pessoas felizes - segundo me confidenciou o meu assistente de bordo, que por coincidência crepuscular ou madrugadora ainda é parente do daimon do pensador grego - que colhem os seus textos (poemaria sentimental ou quotidiana, versalhada esotérica com e sem rima, naco de prosa ou entradazinha diarística relativamente sobranceira ou merencória) ao deambular pelas ruas, no escuro dum parque, à porta duma estalagem ou na dulcíssima e profícua casa-de-banho duma amante ocasional ou dum consistente companheiro de estúrdia.
Assim como quem apanha, de passagem, no estrépito gratificante de um bar de luxo, meia-dúzia de amêndoas torradas ou um punhadinho de ervilhanas descascadas ao passar pelo balcão a caminho duma mesa onde os convivas o esperam com as peças de resistência.
Pelo menos é o que se extrai, se bem lidos, da frequentação de alguns autores e de matérias de aturado estudo de costumes, de enviesados momentos de profunda criação (alheia) que nos fazem, nos melhores casos, salivar com apetite.
Dizia Guillaume de Poitiers, numa bela tarde que também pode ter sido noite ou manhã, que fizera um poema de nada. Por seu turno, Saint-John Perse afirmou algures que a sua aspiração maior era fazer um poema sobre nada. Seria o nada que é tudo como artilhou o sagaz e melancólico portuguesinho de Durban (South África)? Mas é claro que por detrás destas pequenas e aparentes boutades vive e sobressalta-se uma profunda contemplação do Universo das probabilidades, no género das que Bernard Trevisan punha no seu tempo em equação.
E, detalhe profundamente contemporâneo mas conjunturalmente inquietante embora sem metafísicas, tende imensos cuidados vós que me ledes: se mal vos precatardes, pelo descuido dum dedo podereis mandar interactivamente para a inexistência definitiva e sem piedade um lindíssimo trecho que acabastes de escrevicar, o que pode dar choro e ranger de dentes sem ponta de literatura dramática. Em tudo terá também de haver, sem desdouro, um pouco de ternura!
 A verdade é que, nos tempos mais chegados, por mor da modificação de usos societários (?) sai-se para o lirismo como se sai para a caça. E, conforme me esclarecem, isso dá-se tanto em Chicago como em Bruges, tanto em Edimburgo ou Lyon como no Funchal, no Porto, em Nápoles, em Lisboa. Serão aspectos da mundialização, do aquecimento global dos corações e dos cérebros postos à prova pelos que traçam (os Bielderbergs? os Opus Dei? os aqueles que nem é bom nomear para não se ficar feito em estilhas?) as nossas folhas de destino sobre o planeta?
(Antes de passar para outro continente, continuando todavia a juntar alhos e bugalhos, permitam-me entretanto que proceda a alguns agradecimentos completamente filhos de uma comoção muito aparentada com certa inocência que me foi escapando devido à safra dos anos e às más companhias que sempre nos estorvam antes de as pontapearmos com decisão: a Axel Munthe por ter escrito tudo o que escreveu; a Mikhail Bulgakov por não ter escrito o que queriam que escrevesse; a Jean Husson por ter andado pouco com os gandulos das letras com quem queriam aparentá-lo; a Silver Kane por ser também Enrique Moriel e Francisco González Ledesma, além de possivelmente outros na vasta pradaria dos seus afectos; a Alain Decaux por ter narrado, em directo e de viva voz na televisão, todas as suas surtidas históricas que só depois, razoavelmente mais tarde, iria passar ao papel – feito notável que só um herói das letras conseguiria; a Sherlock Holmes e Poirot por terem existido; a Conan Doyle e Agatha Christie por não terem existido, excepto com a lupa e o cachimbo e o bigodinho roubados às suas criaturas; a Cézanne por ter sido apenas pintor; a Schubert por ter sido apenas compositor e músico; a Malte Laurids Brigge por não ser nem um a coisa nem outra; por último, mas não finalmente, a Rilke por ter sido tudo inclusivamente secretário particular de Rodin, que como poderia escrever outro companheiro da corda não entrava nesta estória; e a alguns ibéricos e lusitanos por o terem continuado a ser, não sendo alanos ou mouros).
 Mas dizia eu que se vai saindo para o lirismo como se sai para a caça. Nos últimos anos de civilização certos quadrantes aumentaram extraordinariamente o apuro da sua pituitária espiritual. A mistura em partes desiguais de carne de primeira e de segunda, ou mesmo de terceira ou quarta, vem permitindo uma transubstanciação que muitos julgariam inimaginável. Os gourmets da literatura não são, evidentemente, todos do mesmo género. Há felizmente nuances compensadoras. E se é um facto que se subdividem em dois grandes sectores – o escarlate e o cinzento, sendo o primeiro de tendência devoradora e o segundo raciocinadora – isso não implica o desaparecimento dos que vêem na poesia algo mais que uma tarefa ou uma fatalidade. Por enquanto – o panorama pode mudar.
Há contudo variações insuspeitadas e não estou a lançar uma indirecta, garanto, àquele ensaísta genial que uma vez vi ao vivo numa sessão em Cascais e que afirmou com pujança que nunca nada tinha sido criado no programa do Bernard Pivot, o que não o impediu de um mês depois lá ter estado a convite, de face risonha e radiante e engrolando seus conceitos lusos que ora se engelham ora se distendem como se fossem bonecos insufláveis.
Há o lirismo para comemorações patrióticas progressistas ou casamenteiras de estadão, para desforços conservadores, para amores infelizes, para gestos sociais diversos; o lirismo circunspecto, diríamos universitariante, em timbres secos e escanhoados, preciso e conciso como o relatório de um conselho de administração, ou o mais exaltado ainda que científico, sendo este uma variante algo descabelada do anterior. Digamos – mais pão pão, queijo queijo.
Segundo julga saber-se, há poemas que não convém serem deglutidos de manhã: pesam no bucho, criam soluços e azia. De modo que é mais aconselhável tomá-los à tardinha, quando os apetites já se locupletaram com meia dúzia de canalhices bem rimadas ou uma pratada de sonetos à marinheira ou com todos os matadouros.
A verdadeira vida está ausente, dizia Rimbaud. Ausente, no entender de alguns gastrónomos que por vezes também versejam – gastrónomos premiados se calha pelos salões de jantar letrados - como as narcejas, as galinholas, as lebres e as perdizes. A caça espiritual ainda será, se os fados ajudarem, uma realidade peculiar.
Em certas alturas, o pesquisador-amador das várias espécies poéticas está particularmente inclinado para a amável prática desta salutar manducação: de alma à bandoleira, com boas reservas de cartuchos de escolaridade obrigatória no cinturão, facanejo de aço carbónico na ilharga, ei-los que partem para os lugares apropriados.
 Nos montes e valados distinguem-se então minúsculas figuras movendo-se ora ágil e graciosamente, ora mais pesadamente; uns mais ardilosamente que outros lá se acocoram, armadilham, tocaiam, simulam. E finalmente estendem a presa com dois ou três certeiros balázios.
 No fim, chegado o crepúsculo, aconchegadas as matilhas no palheiro ou no pátio, ao redor da grande mesa de madeira de pinho grosseiro ou de carvalho mal desbastado, abancam os amantes desta actividade venatória. Todo o dia o sol lhes ondeou sobre as frontes, queimando-lhes as faces, crestando-lhes os olhos e a vivacidade. Uma paz muito suave os prende agora à fraternal roda de congéneres. Da cozinha já chega até aos narizes dos convivas o cheiro picante dos pitéus: Camões guisado, Lorca salteado, Antero com rodelinhas de paio, Neruda com alcachofras na caçarola, Pessoa com vinho grego, Régio frito com batatinhas às rodelas, Pascoaes assado com uma gota de limão prudente. (Eugénio, por distracção da cozinheira, primeiro ficara meio cru, depois demasiado passado).
 No fim virão as sobremesas diversas: vates novos, postos em remolhão de vinho do Porto durante horas, a embeberem-se, para fazerem contraste com as arrufadas de Coimbra e as queijadas de Sintra espirituais, com sabores e com doçuras a dar para o selvagem e o inusitado (e que até requentadas calam no gosto, entrada a hora da ceia).
 Lá fora crescem luzes no céu: Sírius, Canis Minor, o sete-estrelo, o brilho nostálgico de Vega que na Caldeia inspirava magos e arquitectos (talvez, como alguns cá, traçando por vezes seu versinho no fim dum lauto repasto).
 Se o tempo é de grilos, ralos e cigarras ei-los que cantam ajudando à festa. Mas sempre, por sobre a massa pura das árvores e o negrume palpitante da noite estrelada, se expande um ruído difuso, amplo, que conviria ser – para que tudo estivesse a carácter – o filosófico rolar das esferas do universo.
Seja como for, tenho para mim que as espécies poéticas ainda irão estar intensamente noutros locais privilegiados e privilegiadores – e que possibilitarão menos canseira - as grandes superfícies comerciais aprazíveis e acolhedoras onde por ora praticamente só se mercam produtos para bater: romances, novelas, robustas casquinadas políticas, memorialismo relativamente pindérico.
Mais frescas e nutritivas (porque sujeitas ao congelamento eficaz e benéfico que lhes preserva os elementares), mais baratas e abundantes, terão ademais o aliciante do diploma e certificado de garantia. É aliás assim que tem de se proceder em sociedade organizada e moderna. Claro que a caça pode continuar, deve continuar, ninguém pretende hostilizar a surtida cinegética. No entanto dá obviamente um certo conforto saber-se que há nas bancas, estimuladas pela tecnologia, espécies prontinhas para a festança quando calham de ser subitamente desejadas.
Enfim, será um quadro apropriado onde poderá talvez, até, achar-se um bom naco de felicidade. Havendo, mesmo, lugar para as surpresas porque existirão concerteza aspectos não contemplados nos manuais de civilidade obrigada a mote. Poderão inclusivamente propor-se, pelo seguro, interessantes variações: sonetilhos escalfados, elegias torradinhas, odes com mel e pinhões, haikais empapados em uísque ou no proverbial saké para os puristas. O espanto ganhará o seu justo lugar na sensibilização das línguas – mesmo mortas – através de uma ou outra distribuição fortuita mas enquadrada de provérbios e redondilhas.
 Entraremos no domínio da poesia quase perfeita, ora de cariz labirintiforme ora de raiz levemente mística. Às tantas, subindo verticalmente na bolsa de valores da existência como as pirites neo-zelandezas ou o café do Calulo.
Um tom rosado irá paulatinamente cobrindo as faces outrora lívidas dos cidadãos alfabetizados.
E tudo findará, evidentemente, por uma poderosa manducação geral só detida nos limites da antropofagia.
Bastante épica.

4. O OLIMPO JÁ ESTÁ A ARDER?

 Suponhamos, não por traquinice mas muito a sério, que numa quinta-feira um artefacto voador alienígena (um dos chamados, na Bíblia, “glória do Senhor” e, nos anais quíchuas, “serpentes voadoras” devido à forma alongada da sua fuselagem), por isto ou por aquilo pousava num arrabalde de Santarém, de Lamego, ou mesmo na Buraca ou em Linda-a-Pastora e, enquanto os seus tripulantes tratavam dos seus afazeres localizados, eram avistados durante quarenta e oito minutos (horário TMG) por habitantes locais, a saber: um membro da secção portuguesa dos Alcoólicos Anónimos; um sacerdote dominicano; três futebolistas de momento a jogarem nas reservas do respectivo clube; uma escritora doublée de cientista; dois agentes da autoridade acompanhados de um autuado; um jornalista de um órgão de tiragem média; dezasseis ovelhas e o respectivo cão (o pastor dormia beatificamente sob uma árvore ou junto a um muro e não se apercebera de nada); duas crianças e três adolescentes, incluindo um telemóvel e um boneco de pano; oito passeantes diversos sem estatuto definido por não interessar a esta crónica.
Perplexos, nos sítios e localidades respectivas, todos eles se punham mais ou menos coerentemente a relatar o avistamento, dando pormenores a quem os quisesse ouvir e os não mandasse bugiar logo a partir da quarta estrofe…
O periodista, que o chefe-de-redacção tinha na conta de pessoa séria e pouco dada a tratos vínicos, ainda colocava por mansuetude companheirona do superior, na terceira página, uma local em 16 linhas na qual, um pouco encabuladamente, falaria num caso curioso, num facto que intrigou observadores e lengalengas que tais, sendo o assunto rapidamente esquecido e mergulhando, como milhares de outros, no vasto cafarnaum do enigmático e do misterioso para pessoal com alguma imaginação e sentido do mundo para além dos quatro olhos e dos sete sentidos.
 Mas suponhamos agora que por fas ou por nefas o assunto era tomado a sério por alguns grupos da intelectualidade dominante que em geral ciranda nas veredas do poder. E que o assunto ganhava, nos círculos certos, certo destaque e certo crédito – tanto mais que nos últimos anos entidades responsáveis vincadamente oficiais ou mais discretas como entre outras a Sodalitium Pianum (serviços secretos da ICAR), a Agencia Nacional de Segurança (NSA), o Deuxième Bureau e o Inteligence Service se têm debruçado parece que proficientemente sobre esses curiosos factos em ordem a tentarem perceber o como e o porquê de tais intrigantes casos.
 A não ser dum ponto de vista académico – isso não aqueceria nem arrefeceria absolutamente nada. Quando muito deixaria apenas nos cérebros e nos relatórios dos operacionais uma congeminação, um raciocínio, talvez um leve zumbido de crença ou de descrença intelectual ou filosófica neles e nos superiores, talvez um pedacinho de inquietação na alma dos mais argutos ou temerosos ou perspicazes (ou desconfiados), porque ficariam com a pedra no sapato e a pulga atrás da orelha, como pitorescamente sói dizer-se.
 Na verdade, que poderiam esses beneméritos fazer, resolver? Dizer aos quatro ventos que afinal, pelas conclusões competentíssimas tiradas pelos grupos de trabalho (as task force como usam ser apelidadas) andava gente realmente pelos céus, que poisavam quando queriam e deixavam contactos se lhes apetecia com iluminados (posteriores) e delegados (santões) se lhes dava na bolha modificar ou incrementar localmente certas regiões e comunidades? Quem lhes daria crédito? Quem os levaria a sério? E se levassem, cadê o resultado? Poderiam pedir responsabilidades aos viandantes do cosmo por entrarem sem visto nem passaporte por qualquer fronteira a dentro? Por gerarem filhos numa moçoila aprazível? Por levarem de viagem uns tantos parentes da mãe Terra? Por…
 Mas creio que já todos perceberam, é escusado ser mais redundante ainda.
 Assim, num outro plano, já se sabe que são estorietas de ficção científica escrita ou cinematográfica, ou da legenda dos séculos, os relatos de cães com cabeças de homens ou de homens com cabeças de tigres. Ou de mancebos com asas de andorinha, de águia ou de pterodáctilo, ou de senhorinhas com cauda de pescada ou de espadarte. De acordo com o que nos informa a ciência de ponta, pelo menos até agora, a semente do homem não é susceptível de se misturar com a do animal sendo a inversa também muito verdadeira.
Esses sucessos, de acordo com os melhores autores, só estão dentro das possibilidades dos deuses – se lhes apetecesse, mas tanto quanto se sabe esses são gente sensata, até mais ver, e não lhes devem interessar, ao que se pensa, manejos em estilo doutor Mengele… Como diria um amigo meu com muitas leituras e reflexões, “Os planos, seja na vida seja na metafísica, ou na transvida ou na existência em geral, não se misturam”. Concordo com ele.
 “É possível, Nadja, que o maravilhoso, todo o maravilhoso, resida neste lado da vida?” perguntava o autor de “A chave dos campos” à sua apaixonada poética que a distracção do velho descobridor manteve sempre como platónica com resultados quase trágicos.
Possivelmente, quase de certeza que sim. Pois o outro mundo que nos escapa, escapa-nos por óbvias razões embora seja um belo projecto de vida tentar devassar-lhe os bosques e as montanhas, os desertos e os mares, a luz e a sombra do segredo que suspeitamos nele se acoite.
 As cidades reais continuam a existir deste lado, assim como os que as habitam. O fogo da imaginação é o nosso seguro penhor de que o melhor da noite é só ser noite, a noite, sem fantasmas nem assombrações, sem presenças etéreas ou substanciais de enganoso recorte, a noite com a luz das estrelas tal como o dia é o continente sob o sol e com tudo o que nos anima e conforta. Os grandes momentos das nossas mais belas horas. Sim, os planos não se misturam, não são susceptíveis de interpenetração.
 Pois o que voga no espaço exterior a seu tempo se conhecerá – quando chegarem os tempos adequados tanto de uns como de outros.



***

Nicolau Saião (Monforte do Alentejo, Portalegre, 1949).
Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha etc.  
Em 1990 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro Os objectos inquietantes (1992). Autor ainda de Assembleia geral (1990), Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998), Os olhares perdidos (2001), O desejo dança na poeira do tempo (2008), Olhares perdidos (2007), O armário de Midas (2008), As vozes ausentes (2011), Escrita e o seu contrário (a sair). 
Prefaciou os livros Mansões abandonadas, de José do Carmo Francisco, Fora de portas, de Carlos Garcia de Castro, Estravagários, de Nuno Rebocho e Chão de Papel, de Maria Estela Guedes. 
Fez para a Black Sun Editores a primeira tradução mundial integral de Os fungos de Yuggoth, de H. P. Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana, Bichos (2005).
Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional Poetas na surrealidade em Estremoz (2007) e co-organizou/prefaciou Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril
Com Mário Cesariny e Carlos Martins, colaborou na efectuação da exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, levou a efeito a mostra de mail art “O futebol” (1995).  Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões). O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum Canciones lusitanas
Tem colaborado em espaços culturais de vários países.
Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de Mérito Municipal.