quinta-feira, 21 de abril de 2016

CARLOS FELIPE MOISÉS | António Maria Lisboa


1. Com a saúde minada pela tuberculose, já gravemente enfermo, António Maria Lisboa encontra-se em Paris, pela segunda vez, em Janeiro de 1951, a convite de amigos que ali fizera em Março de 1949. “Sentado na soleira da porta, espera até ao sol-posto os seus amigos, nessa manhã partidos para a Itália”. Após uma série de privações que o debilitam ainda mais, e certamente mais o espírito que o corpo, confessa-se “sem dinheiro e sem quarto”, e declara: “Vou abandonar definitivamente a Europa. Parto para o Oriente numa viagem prelimi­nar. Regressarei à Europa então para fazer a Grande Viagem. Os amigos? Distantes, humanos, desumanos.” (1)
O episódio, singelo e reconditamente dramático, permite aproxi­mar a trajetória humana de A. M. Lisboa daquela de seus antecesso­res próximos, António Nobre e Sá-Carneiro, e a dos antecessores re­motos, os românticos—naquilo que têm de comum: o inusitado fascínio que sobre os dois primeiros exerceu a Cidade-Luz e o igualmente inusitado gosto pelo exótico oriental, daqueles outros. Mas também per­mite avaliar a distância que os separa, ainda enquanto trajetória humana, a partir da estranha “Grande Viagem”, empreendida após o regresso a uma Europa antes abandonada “definitivamente”.
O aparente paradoxo parece de fácil elucidação. À parte o gosto pelo paradoxo em si, o que temos é a consciência dolorosamente lúcida, por parte de A. M. Lisboa, de que nem Paris nem Oriente algum poderia resolver a sua inquietação existencial, originada de uma profunda inadaptação ao mundo dos homens. Como quem vivesse, não apenas em imaginação, o dito emblemático posto a circular por Álvaro de Campos: “Estrangeiro aqui como em toda a parte”. A misteriosa Grande Viagem tanto podia efetuar-se na Europa, como no Oriente, como em qualquer parte do mundo. Ou melhor, realiza-se de fato numa Europa tomada como símbolo de uma civilização onde se tornou impossível a “verdadeira vida” sonhada por Rimbaud, uma Europa transfigurada por um modo de ver aprendido no Oriente (por isso a “viagem preliminar”), símbolo do que o poeta entende sejam os fundamentos propiciadores da “verdadeira vida”. Não por acaso, ao utópico projeto segue-se imediatamente a referência aos amigos, “distantes, humanos, desumanos”. Para espíritos a um tempo ousa­dos, generosos e radicais como António Maria Lisboa, as grandes fronteiras e abismos, os mais altos propósitos humanos, a “verdadeira vida”, em suma, converge para a almejada, embora improvável, comu­nhão com os semelhantes, e não para os espaços quantitativos, mera circunstância geográfica.
Viagem ao Oriente, o poeta não empreendeu nenhuma; mas a “Grande Viagem” empreenderam-na por ele os seus poemas, afinal de contas, libelo contra (e apelo a) as consciências vagamente ador­mecidas de seus semelhantes, uns supostos “amigos distantes”. Daí o caráter profundamente humano e existencial da sua obra. (2)
Nascido em Lisboa, a 1 de Agosto de 1928, teve o nosso poeta em Pedro Oom a sua primeira amizade literária. A partir de 1947, forma com esse e com Henrique Risques Pereira um pequeno grupo à parte das atividades dos surrealistas de primeira hora, Alexandre O'Neill, Antônio Pedro e outros, com os quais, apesar de tentar, parece não ter conseguido entender-se. Em Março de 1949, parte para Paris, onde permanece por dois meses. Datam provavelmente daí seus primeiros contatos com o Hinduísmo, a Egiptologia, o Ocultismo em geral. De volta a Lisboa, colabora com poemas e desenhos de títulos estranhos (Pequena História a Mais Fantástica dos Amorosos, Mar­fim Peixe etc.) na que se chamou impropriamente “l Exposição dos Surrealistas”, do grupo dissidente. A partir dessa altura, a amizade com Mário Cesariny acompanhá-lo-á até aos últimos dias.
No mesmo ano, colabora na redação do manifesto A Afixação Proibida, no qual, tudo leva a crer, sua participação terá sido primacial. Em 1950, lança outro manifesto, Erro-Próprio, desta vez apenas seu, que aprofunda e amplia as postulações do anterior. Ainda em 1950, em carta a Cesariny, faz as primeiras declarações com referên­cia aos objetivos do movimento surrealista e à sua posição em face do problema. Comunica ao amigo suas especulações no sentido de conceber uma “Metaciência”, que, como o Surrealismo, “vê o Uni­verso Uno e Mágico”. Apesar da aproximação, Lisboa prefere intitular-se “metacientista”, e não surrealista, porque, argumenta, a “Surrealidade não é só do Surrealismo, o Surreal é do Poeta de todos os tempos, de todos os grandes poetas”. (3) A posição parece clara, e mais adiante tentaremos desenvolver-lhe as implicações. Mas o poeta vol­tará a insistir no problema, noutra carta a Cesariny e numa “Carta Absrta a Adolfo Casais Monteiro”, (4) insistência que denuncia a impor­tância do problema e a atenção que lhe dedicou A. M. Lisboa.
De volta da segunda estada em Paris, com a saúde seriamente abalada, não tem outro recurso senão internar-se, para um tratamento já nessa altura inútil, no Sanatório da Quinta dos Vales, perto de Coimbra. Apesar da tuberculose implacável, produz abundantemente, talvez até enfebrecido pela certeza da morte próxima: Ossóptico, Isso Ontem Único, O Senhor Cágado e o Menino, A Verticalidade e a Chave etc. Abandona em seguida o Sanatório, para ir morrer num quarto pobre na Rua das Beatas, em Lisboa, a 11 de Novembro de 1953, com apenas 25 anos de idade. Além disso, sabe-se que parte razoável do seu espólio foi misteriosamente destruída, logo após a sua morte. Do que restou, nem tudo ainda veio a lume.
Eis quanto se sabe da vida de António Maria Lisboa. À exceção de dois ou três amigos certos, terá passado despercebido. Após sua morte, pouco foi lembrado: em 1961, com uma “Exposição ícono-bibliográfica”, organizada em Lisboa, por iniciativa de Mário Cesariny e com um texto-apresentação de Virgílio Martinho; em março do mesmo ano, com um artigo de duas páginas, de Alfredo Margarido, “A posição ética de António Maria Lisboa”, publicado no Diário de Lisboa, o único trabalho crítico até hoje dedicado ao poeta; e em 1962, quando Cesariny organizou uma pequena antologia dos seus poemas, com o título Poesia, única edição acessível, hoje dos seus escritos.
E nada mais. É de supor, no entanto, que sua obra esteja desti­nada a lograr audiência cada vez maior, junto a leitores, críticos e poetas, à medida que for dada a conhecer na íntegra e em larga esca­la, e , por outro lado, à medida que as consciências responsáveis se libertem de preconcebimentos e facilitações, condição mínima para que se possa assimilar essa obra enigmática e solicitadora, como um desafio.

2. O problema inicial colocado pela obra de A. M. Lisboa é o da classificação em poemas, de um lado, e manifestos, de outro, classi­ficação proposta pelo próprio poeta, e a distinção esbarra no fato de encontrarmos, em várias passagens, a utilização indiferente dos mesmos procedimentos expressivos, quer nos poemas, quer nos ma­nifestos. A linguagem com que nos deparamos, nuns e noutros, é invariavelmente metafórica e tende, embora mais naqueles do que nestes, à alogicidade. Adentrando o recesso de tais procedimentos, o que temos é a verificação de que o pensamento estampado nos manifestos enforma igualmente os poemas, propriamente ditos, como em complementação mútua. Uns e outros acabam compondo um corpo único, em face do qual a diferenciação se transforma em problema secundário, quando não insolúvel.
Entretanto, se mesmo assim insistirmos, teremos que a possí­vel distinção entre manifestos e poemas se dá enquanto gradação e não enquanto essência. Nos poemas, a carga emocional que preside ao travamento do discurso é constante e ininterrupta, resultando numa permanente e estranha tensão; já nos manifestos, nota-se uma vez ou outra uma ligeira diminuição da carga emocional, aproximando-se o discurso do caráter explicativo próprio da lógica convencional. De outro ângulo tal distinção se associa ao fato de os poemas se con­centrarem maciçamente no Eu do poeta, compondo uma espécie de projeção imediata e exclusiva de espaços interiores; nos manifestos, esse exclusivismo cede por momentos à tentativa de objetivar ou impessoalizar as proposições contidas nos poemas, o que resulta numa espécie de descentralização do seu foco emissor.
O que importa frisar, por ora, é a característica fundamental de­corrente da mesclagem antes assinalada: estamos diante de uma poe­sia com “pensamento” e, se quisermos completar o binômio, diante de uma doutrina processada em linguagem “poética”. Numa palavra, a evidente realização da assertiva pessoana: “O que em mim sente ‘stá pensando”. Mas nessa ordem de ideias — emoção pensada, pensamento emocionalizado — Pessoa manifesta uma característica básica, a rigorosa disciplina interior e exterior, isto é, ao nível da logicidade cumulativa do raciocínio e ao nível da cristalina organi­zação expressiva de seus escritos, que em A. M. Lisboa aparece em escala mais reduzida. Como se a fusão emoção-pensamento, em Pes­soa, decorresse da vontade e de um apurado exercício intelectual; e, em Lisboa, de um condicionamento ingênito, independente da vontade e do esforço da inteligência. Nesse sentido, nosso poeta estaria mais próximo de Sá-Carneiro, pela inequívoca impressão de “espon­taneidade”, a impressão de quem faz poesia como se respirasse, comum a ambos, embora seja maior a afinidade com Pessoa, no sen­tido de que um e outro realizam uma poesia “filosófica”, contraposta à poesia “estética” do autor de Indícios de Oiro. Mas tal impressão de “espontaneidade”, além de subjetiva, a rigor constitui problema extraliterário, e aqui entra apenas como achega. O que temos, objetivamente falando, é a tendência para a sistematização e a conse­quente maior dosagem de racionalismo, no poeta de Mensagem, ten­dência pouco encontrada no autor de Isso Ontem Único.
Trata-se, afinal, de uma poesia extremamente “difícil”, à medida que se oferece como um conjunto de expressões intelectuais irredutíveis aos padrões de raciocínio com que habitualmente pensa­mos. Não nos referimos ao óbvio de que toda poesia é difícil, mas ao fato de que, noutros poetas, irredutíveis uns tantos poemas, o con­junto da obra acaba permitindo a determinação de certas coordenadas gerais, onde localizá-la, sem grandes danos para os padrões conven­cionais. A “dificuldade”, portanto, que deparamos em poetas de outras tendências será parcial e inserida em contextos mais ou menos fami­liares. Em A. M. Lisboa, a “dificuldade” é total, como se em sua obra aflorasse, nítida, a própria consciência do ato criador, e a partir daí se engendrasse uma poesia essencialmente poética, obrigando-nos a repensar as próprias bases daquelas coordenadas. Mas a esse tópico voltaremos, assim que o desenvolvimento o permita. Podemos, por ora, extrair dessa reflexão preliminar a primeira ideia em que se apoia a interpretação.
De início, e ao primeiro contato, é inevitável reconhecer que a poesia de Antônio Maria Lisboa é das mais estranhas de toda a mo­derna Literatura Portuguesa, quem sabe europeia, e nessa sentido apenas encontra afinidade noutro poeta adolescente, Jean-Arthur Rimbaud, e talvez em Isidore Ducasse, o Conde de Lautréamont. A primeira marca dessa estranheza é uma avassaladora energia que a convulsiona e a transforma em verdadeiro delírio, poesia em com­bustão, magma verbal, como se aí o fluxo mental desabalasse em incontrolável carreira. De pronto, a característica faz lembrar o Álvaro de Campos das “Odes”, mas aí o vertiginoso decorre também do “motivo” condicionador (a vida marítima, por exemplo, naquilo que tem de lendário e misterioso) e apresenta-se como uma espécie de ensaiada coreografia. Em Lisboa, a característica decorre exclu­sivamente da dicção especial, sem apoio direto em qualquer “motivo” equivalente, e impregna o conjunto da obra, toda ela impelida por um ritmo interior alucinante, ao passo que em Pessoa a circunstância ocorre somente em algumas passagens. Dir-se-ia que outros poetas, sobejamente conhecidos, alcançam realizar, também por momentos, algo semelhante: certos hinos de Hoelderlin, umas passagens de certos poemas de Baudelaire, alguns poemas, por coincidência também marítimos, de St.-John Perse — todos eles irmanados pela presença de qualquer coisa parecida com o frisson nouveau que Victor Hugo assinalou nas composições de Fleurs du Mal. Em suma, e para nos utilizarmos do esquema já clássico proposto por Marcel Raymond, A. M. Lisboa integra a corrente dos voyants, a grande descendência poética que tem origem em Baudelaire, passa por Rimbaud e vem até esses chercheurs d'aventures, que são os surrealistas — e divide o espaço da modernidade em poesia com a família dos artistes, tam­bém de origem baudelaireana. (5)
Veja-se como exemplo o poema “Rêve Oublié”:

Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irrefletido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti
Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna
Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a viver at
é cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo
Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada
Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o teto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro
E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata

Observe-se, entre outros aspectos, que a estrutura do poema se apoia em dois expedientes básicos: 1°) a organização em quartetos em que o último verso é regularmente introduzido pela relação tem­poral “e depois”; 2°) a associação inesperada, pelo absurdo, pela contradição ou a simples inversão, que se estabelece em cada verso. O primeiro expediente resulta em rigorosa simetria, acentuada pelo desdobramento anafórico de núcleos parciais, nos três primeiros ver­sos de cada estrofe (“neste” X 3, “agora” X 3, “continuar” X 3, etc.), e sugere um esquema lógico de tipo tradicional, em que cada quar­teto proporia uma parcela de raciocínio a ser adicionada regular­mente à seguinte, em progressão cumulativa. O segundo expediente, entretanto, rompe violentamente, e a cada verso, com qualquer esque­ma lógico possível, culminando ironicamente com uma “conclusão” final (objetivo dos esquemas silogísticos daquela espécie) em que o inesperado se requinta ainda mais. A propósito, um único verso escapa ao mecanismo, o terceiro da quarta estrofe: aí, a associação é perfeitamente lógica e esperada, “ondas do mar” e “brilho”. Já no primeiro da estrofe seguinte, a indicação de movimento, “entrarem”, per­turba a logicidade da aproximação entre “abrir-se a janela” e “estre­las”. Indubitavelmente, o verso “contar as ondas do mar e descobrir-Ihes o brilho” constitui uma quebra no andamento geral do poema e o enfraquece, porque provoca uma injustificável ruptura em sua massa atmosférica. Mas, exceção que é, não chega a alterar a confi­guração geral do texto, acima descrita. Em suma, o poeta, ao contrário de fugir dos esquemas lógicos, como quem os temesse, enfrenta-os deliberadamente e até mesmo serve-se deles, para demonstrar-lhes a falência. É o limite a que chegam a sua lucidez e o seu rigor.
A breve análise é suficiente para que se verifique a segunda característica. A primeira, a do fluxo delirante de associações absur­das, como vimos, faria pensar num irracionalismo radical, tendência que o próprio Raymond coloca na origem da tradição dos voyants. Lisboa, contudo, em meio ao fluxo que em certo sentido pode ser qualificado de irracionalista, consegue manter-se imperturbavelmente lúcido, senhor do mecanismo que põe em movimento, e jamais se mostra entregue à “inspiração”, ou coisa que o valha, como é hábito supor em poetas dessa linhagem. Trata-se duma estranha e diabólica lucidez, conseguida sem o sacrifício das forças irracionais, a lucidez que não é fruto de um racionalismo unilateral, aquele do bom-senso cartesiano.
Como marca irrefutável dessa lucidez, temos que nessa massa incandescente de palavras se inserem reflexões surpreendentemente iluminadas acerca da criação poética, dos significados e função da poesia. A. M. Lisboa pode bem ser chamado “poeta do poeta”, para usar a designação que Heidegger conferiu a Hoelderlin. A propósito, valia a pena registar que essa característica, a da presença de refle­xões acerca de poesia dentro da própria poesia, é comum a grande parte dos poetas modernos. Sintoma da profunda e decisiva crise de valores que vivemos, o fenômeno constitui o derradeiro elo de uma cadeia iniciada, para não recuarmos muito, com a grande revo­lução romântica. Um a um, os magnos valores religiosos, políticos, filosóficos, morais foram sendo postos em dúvida, até que o próprio ato de rebeldia, que é e sempre foi o ato poético, pôs-se em dúvida a si mesmo. Como se, para compreender o mundo caótico que re­sultou do processo, o poeta se visse obrigado a avaliar, antes de mais nada, o próprio ato de compreender. Antes de emitir juízos, tornou-se imprescindível a determinação precisa da perspectiva a partir da qual os juízos serão emitidos. E tal determinação processa-se de dentro para fora: o poeta, com o determinar seu ofício, concomitantemente cria um mundo (poesia = poien, fazer), na impossibilidade de sim­plesmente se situar, e situar sua poesia, dentro de um mundo previamente dado. Fechado o parêntesis, voltemos ao nosso poeta, a fim de esquematizar as suas reflexões acerca da poesia.
Como para Rimbaud, o núcleo dessa poética infusa, disseminada na poesia de A. M. Lisboa, radica na noção de “alquimia verbal” de­corrente de uma “alucinação dos sentidos” e destinada a “mudar a vida”. A concepção do poeta de llluminations, por demais conhecida, dispensa determo-nos em sua explicação. Limitemo-nos a salientar o que importa para a compreensão do poeta português. A “alquimia verbal”, aqui, assume a forma de enumeração ininterrupta de asso­ciações absurdas, portanto inesperadas, em virtude da ausência de conexão lógica entre os seus termos, o que lembra vagamente, porque noutro plano, o processo da enumeração caótica, estudado por Spitzer. Tal como ocorre na poesia de Cesariny, em Lisboa tam­bém o processo enumerativo constitui um recurso total e não parcial de estilo, e as unidades enumeradas são orações e não palavras ou expressões. Ao lado dessa forma especial de “alquimia”, a concepção de poesia em que se inscreve resulta em encarar o ato poético como foco de absoluta indisciplina e subversão do real. Indisciplina no sentido da recusa terminante em adoptar esquemas mentais pré-estabelecidos; subversão, conforme decorre, no sentido de que essa indisciplina objetiva desmontar toda e qual­quer concepção estratificada da realidade que se baseie no logicismo discursivo e sistematizador. Noutros termos, um audacioso projeto de rebeldia contra a rotina, a facilitação, as meias e apa­rentes verdades aceites como definitivas. Na raiz do projeto, a “alucinação dos sentidos”: “alucinacão” como troca, mescla, confusão, e “sentidos” na acepção de vias de acesso ao real. Uma vez obtida, tal alucinacão significa a própria transformação da realidade. Um século depois, temos a realização do clarividente aforismo de Schopenhauer: “O mundo é a minha representação do mundo”. (6) E parece que apenas nesse sentido é possível compreender o changer Ia vie preconizado por Rimbaud.
O ato poético transforma-se, assim, numa reflexão de tipo radical, uma vez que pretende refazer pela base ou pela raiz, a relação Eu-mundo, cristalizada por uma tradição simplificadora. A poesia fantástica que daí se origina endereça-se como um bólido exatamente contra essa lógica ordenadora e empilhadora de dados, responsável pela esterilização dos impulsos vitais e a redução do homem à con­dição de máquina que se autodevora.
Leia-se, primeiramente, um poema, “Conjugação”:

A construção dos poemas é uma vela aberta ao meio
e coberta de bolor
é a suspensão momentânea dum arrepio num dente fino
Como Uma Agulha

A construção dos poemas
A CONS TRU
ÇÃO DOS POEMAS
é como matar muitas pulgas com unhas de oiro azul
é como amar formigas brancas obsessivamente junto ao peito
olhar uma paisagem em frente e ver um abismo
ver o abismo e sentir uma pedrada nas costas
sentir a pedrada e imaginar-se sem pensar de repente
NUM TÚMULO EXAUSTIVO



E, em seguida, um fragmento de um manifesto:

Houve um tempo em que se negava que o Homem estivesse em estado mórbido com hidratos no fígado. Não é idêntica, a esta, a desconfortável sensação dum queixo agudo sobre um olho que atra­vessa a garganta. É esse olho que hoje preenche o conceito de Liber­dade, quero dizer: o conceito, se há algum válido, de Poesia, e não Liberdade tal como nos é definida pelos racionalistas como possibilidade de Escolha através da Razão, mas como explosão aconte­cida no mais profundo do Ser. Síntese que corporiza espontanea­mente o poema num ato tradicionalmente chamado involuntário. É ali o Banco da Poesia energias de instintos, previsões, tendên­cias, sentimentos, recalques, imagens remotas ou recentes. E, em vários momentos, o Poeta reconheceu nas conchas, nas escamas e nas fibras vegetais essa matéria especificamente subversiva que tem a Cor do Futuro. (...) A Poesia está na origem do símbolo, e na concentração sobre o objeto que, de súbito, é um ideal em si mesmo. Propondo-nos nós a revisão exaustiva do Mito científico, parcelarmente otimista, e vendo conseqncias altamente vantajosas, opomos ao Empirismo a junção do dia AO DIA!

Quer parecer que os textos evidenciam à saciedade a colocação que vimos propondo. Não obstante, observe-se como a concepção do ato poético, apenas insinuada no poema, aflora e é tratada diretamente no manifesto, embora num e noutro a linguagem seja desconcertantemente metafórica. No poema, encontramos a obsessiva sensação de movimento brusco, para adiante, no encalço do des­conhecido, “um abismo”, após um breve e mágico instante de para­lisação sufocadora, “a suspensão momentânea dum arrepio num dente fino”. É o ato poético entendido como um radical ir além de, no encalço da descoberta de novos significados para o mundo e as coisas. Atente-se sobretudo no penúltimo verso, “sentir a pedrada e imaginar-se sem pensar de repente”, em que o “sem pensar” deve ser compreendido como a ausência de apoio em esquemas mentais pré-estabelecidos. Por outro lado, o “Mito científico”, de que fala o manifesto, prende-se claramente a essa mesma questão, e por isso deve passar por uma “revisão exaustiva”. Finalmente, a enigmá­tica “junção do dia AO DIA” deve ser entendida como alusão ao binô­mio que o texto deixa em suspenso, linhas atrás. De um lado, “o mais profundo do Ser, Banco da Poesia”, quer dizer, a pura subjetividade e a transcendência; de outro, “conchas, escamas, fibras vegetais”, ou seja, a pura objetividade e a imanência. Os dois extremos devem fundir-se (junção), a fim de que, igualados a si próprios (dia AO DIA), cada um possa transformar-se no espelho do outro, alquimicamente.
Antes de passar ao tópico seguinte, assinalemos que a estra­nheza dessa poesia decorre, além dos aspectos já examinados, de ela apoiar-se numa imaginação basicamente plástica, pictórica, a partir da qual vão-se engendrando poemas como quadros sucessi­vos, cenas formadas por matéria perfeitamente visível, no entanto impossíveis de visualizar, o que resulta num absurdo magicamente diabólico, à Jeronimus Bosch, como neste “Poema do Começo”:

Eu num camelo a atravessar o deserto
com um ombro franjado de túmulos numa mão muito aberta
Eu num barco a remos a atravessar a janela
da pirâmide com um copo esguio e azul coberto de escamas
Eu na praia e um vento de agulhas
com  um Cavalo-Triângulo enterrado na areia
Eu na noite com um objecto estranho na algibeira
trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de musgo.

3. Assentemos o que se nos afigura como a noção básica: grande parte da magia desses poemas resulta da recorrência ao paradoxo (visível no expediente da associação inusitada, que atrás examina­mos), elemento primordial no processo criador de A. M. Lisboa. Afastemo-nos do plano analítico e microscópico em que o problema vem sendo colocado e tentemos considerar seu significado enquanto efeito global, dentro do sistema em que se insere e que auxilia a erguer. Em que sentido o paradoxo? Se, de acordo com uma tradição racionalista largamente aceite, concebermos o real, ou aquilo que podemos chamar de real, como uma sequência infinita de planos dualísticos que mutuamente se excluem, o que temos na poesia de Lisboa é, de um lado, a sistemática aproximação dos dados que compõem esses planos, provenientes de categorias de ser que se antagonizam, e que aparecem “absurdamente” conjugados. De outro, e como consequência, a violenta desagregação de qualquer con­cepção do real que se apoie nalguma espécie de jogo dualístico. Surge, assim, diante de nós uma realidade inóspita e “sem sentido”, já que não conseguimos enquadrá-la em nenhum tipo de dualismo conhecido, um mundo que parece resultar de alguma insuspeitada transmutação alquímica. Noutros termos: vemos erguer-se diante de nossos olhos, que se recusam a crer, um mundo no qual não somos capazes de distinguir Ser e Não-Ser, um mundo de ininterrupto Vir-a-Ser, onde todas as coisas são e não são ao mesmo tempo. Mas ainda assim, por maior que seja o nosso esforço, estamos apenas tentando apreendê-lo a partir das acanhadas perspectivas em que nos apoia­mos. Tal mundo exigiria, para que fosse devidamente conhecido, a formulação de uma nova perspectiva, para a qual não parecemos estar habilitados. Mas voltemos ao projeto inicial, na tentativa de compreendê-lo melhor, sem deformá-lo.
Do quadro ainda algo obscuro, ressalta uma observação que não parece causar transtorno: num dos seus vários sentidos, o projeto visa à libertação da lógica, e sem dúvida consegue-o. Acompa­nhemos, então, o seu percurso, a partir desse ponto mais ou menos seguro. Tal libertação conduzirá a consciência, a do poeta assim como a do leitor, a uma dimensão superior da realidade, a um uni­verso supralógico. O processo aí posto em prática resulta na fusão dos planos dualísticos que, mesclados, passam a constituir uma nova categoria de seres, regida por “leis” próprias, nem reais nem ilusó­rias, nem finitas nem infinitas, nem materiais nem imateriais, e assim por diante. (7) Mas uma nova categoria que não se acrescenta, simples­mente, àquelas de que proveio, porque as congrega e transfunde, numa nova visão integradora. Não se trata de uma concepção a mais, proposta em termos de alternativa, para ser escolhida ou preterida em face das restantes, mas de uma concepção que remaneja, agluti­nando-as e portanto conservando-as no seu interior, as dicotômicas concepções convencionais.
Paralelamente, a própria perspectiva aberta pelo projeto exclui (e mesmo aborrece) qualquer hipótese de misticismo ou espiritualismo transcendentalista. Essa dimensão “superior”, essa “outra” realidade não decorre de nenhuma inserção estranha, de fora para dentro, mas sim dos próprios recursos humanos, e conserva-se no seu estrito círculo. Trata-se da própria consciência do homem e do próprio mundo natural compreendidos de uma maneira mais pro­funda, mais pura ou mais original, enquanto compreensão que objetiva atingir as origens da realidade. Metafísica, se se quiser, mas uma metafísica imanentista. Porque, “diversamente do para-além religioso, o para-além surrealista não pode situar-se nem fora deste mundo, nem antes do tempo da nossa vida. É, paradoxalmente, um para-além imanente, contido nos próprios seres de cuja aparência a experiência nos liberta. (8)
Estamos diante de uma visão do mundo, diante de um (à falta de outro termo) pensamento que anseia por conceber a realidade de um modo radicalmente novo, abarcante e totalizador. Chamemo-lo pensamento poético. Tal expressão, porque pode encerrar um signi­ficado equívoco ou dúbio, deve ser esclarecida. Antes do mais, é o próprio A. M. Lisboa que a ela recorre, do seguinte modo: “Já não é só a Religião que me limita os passos e o Horizonte para onde se dirigem, é também a Ciência. O Pensamento Poético é para mim o único com valor porque é o único interessado na Realidade que se nos apresenta como um todo e não parcelada.” (EP) E, páginas adiante, caracteriza melhor o que entende por tal pensamento: “Dado o aparecimento duma estética chamada do Absurdo, e não só desta como de várias outras encostadas ao que os surrealistas fizeram, com os materiais usados pelos artistas — damos exaustiva importân­cia a toda acão Mágica, que se caracteriza, em oposição à Mística: Impositiva, Transformadora, Sintética, Diabólica, Convulsiva. (...) O poeta já não apela para a lógica do espectador, antes a nega, nem tão pouco para a sua memória da natureza, mas para a sua Ima­ginação. (...) Trata-se de inventar o Mundo! Descobrir as semelhan­ças e dissemelhanças, pôr a nu o rendilhado que une o Invisível ao Visível, estabelecer um Arco-Voltaico entre Consciente e Inconsciente, entre Passado e Futuro, provocar um Curto-circuito para os destruir isolados, para perfurar a Razão com a Loucura e vice-versa.” (EP).
Três ideias básicas, uma geral abstrata e duas particulares con­cretas, parecem destacar-se no trecho transcrito, sustentando-lhe a argumentação: 1a) a ideia da superação do dualismo lógico, a que nos vimos referindo desde o início deste tópico; 2a) a ideia de que a imaginação ocupa o centro do projeto que visa a esse fim, como faculdade criadora e transformadora, destinada a “inventar o Mun­do”; 3a) a ideia de que a tarefa implícita no projeto não pode derivar nem para o racionalismo nem para o irracionalismo, mas que só é possível, e de fato somente se concretiza, pela fusão de ambos: “per­furar a Razão com a Loucura e vice-versa”. É exatamente a essa fusão que se refere Pierre Emmanuel, quando afirma: “Quem põe ênfase sobre a razão, engana-se; e também quem a coloca sobre o ardor. Muito clara uma, muito obscuro o outro: a primeira não pode manipular senão o já-conhecido, a experiência, e de acordo com princípios que forja a partir de si própria; o segundo entrega-se ao desconhecido, confiando no imprevisto, que o dispersa sem detê-lo em nada nem fixá-lo numa forma.” (9) Parece assim clara a acepção que ganha o termo “pensamento”, como se sabe raramente associa­do à atividade poética, salvo nas circunstâncias especiais que tenta­mos expor.
Finalmente, poderíamos ainda, se quiséssemos e caso os objetivos deste ensaio o permitissem, ampliar os limites da questão, es­tendendo-a a âmbitos que não são aqueles em que originariamente se coloca. Nesse sentido, recorramos a um esquema simplificador, sem maiores pretensões do que, somente, a de simplificar. Quando Antônio Maria Lisboa, no primeiro fragmento transcrito, se refere à Religião e à Ciência, que lhe “limitam os passos e o Horizonte”, parece estar sugerindo a existência de apenas três possibilidades (Ciência, Religião, Poesia) de conhecimento ou de perspectiva diante do mundo. A religiosa, interessada no real apenas na medida em que esse interesse permita a projecão do espírito para fora do real — misticismo, soi-disant —, é uma perspectiva que em última análise conduz à negação ou ao menosprezo da realidade. A científica, in­teressada efetivamente no real, mas a partir de pressupostos lógico-racionalistas, responsáveis pela substituição da realidade por esque­mas abstratos ou esquemas de aparências, que acabam assumindo maior importância do que a própria realidade, porque “mais coe­rentes” — é uma perspectiva que, em última instância, termina por deformar ou parcializar o real. E temos finalmente a perspectiva poética, cuja caracterização tentamos esboçar, faltando ainda acrescentar que, dentro de tal acepção, o poé­tico irmana-se ao filosófico, como nos primórdios do pensamento ocidental, entre os pré-socráticos.
Tal como acontecera nos tópicos anteriores, a ideia central do tópico seguinte já está insinuada neste que ora chega a seu final. Isto significa que estamos fragmentando uma unidade, a estrutura geral do pensamento de Antônio Maria Lisboa, cuja existência verdadeira se dá na forma de todo orgânico e indissolúvel. Possíveis rupturas decorrem, pois, da exposição e não da natureza mesma do objeto insólito com que nos enfrentamos e que só pode ser conhe­cido pela atomização.

4. Concentremos o núcleo do projeto, assim considerado, numa expressão mais simples, ou pelo menos não ambígua, enquanto tal: ver poeticamente. Em suma, é esse o seu objetivo maior, e não somente o objetivo mas o próprio caminho para atingi-lo, pois não há tarefa prévia que, uma vez cumprida, nos conduza a ver poeticamente a realidade: teoria e prática fundem-se na própria atividade em que o projeto se verifica a si mesmo. Ora, vista poeticamente, a realidade desintegra-se, multiplica-se em infinitas partículas, que adquirem incontrolável movimento, e principiam a existir (ou re­velam ter sempre existido assim, sem que nos déssemos conta) perpetuamente em passagem, em transformação. Visto poeticamente, o real perde a estabilidade, de resto ilusória; desorganiza-se, e de­vém uma espécie de caleidoscópio, incontrolável e imprevisível. Evi­dentemente, nos referimos ao efeito global que resulta do conjunto da poesia de Lisboa, efeito que em verdade decorre da acumulação de pormenores, poema a poema. Daí ser pouco provável que um deles, isolado, consiga sugeri-lo. Entretanto, vejamos:

UMA VIDA ESQUECIDA
Eu conheço o vidro franja por franja
meticulosamente
à porta parado um homem oco
franja por franja no espaço
meticulosamente oco uma porta parada
Um relógio dá dez badaladas ininterruptamente
dez badaladas por brincadeira dança
um homem com pernas de mulher
e um olhar devasso no Marte
passo por passo uma criança chora
uma águia e um vampiro recuados no tempo.

Parece clara no texto transcrito a ideia de que ver poeticamente significa, ao lado de outros componentes, a desarticulação do real, e a consequente perturbação da sua estabilidade e equilíbrio. Atente-se, sobretudo, no verso “um homem com pernas de mulher”, onde o procedimento se torna até excessivamente explícito, quase didático. (10) Mas vamos diretamente ao que importa. Tal desarticulação promove, inevitavelmente, a articulação de novas realidades, por jus­taposição, superposição, simbiose, osmose, etc. O mundo vai-se povoando de seres grotescos e fantásticos, que jamais se repetem, pelo fato mesmo de estarem imersos em permanente metamorfose. Ergue-se a partir daí uma realidade descontínua, fragmentária, gerada segundo mutações absolutamente arbitrá­rias, no sentido de alógicas, e não segundo qualquer lei ou princípio imposto de fora. Qualquer coisa como um fantasmagórico consórcio de seres que ininterruptamente se intercambiam partes, membros, atribuições, significados, como a prodigiosa e inesgotável multiplica­ção do caleidoscópio. Chamemo-lo “transmutação alquímica”. Para o poeta, assim convertido numa espécie de alquimista, a realidade não passa de um vasto e farto campo de experimentações, onde nada está definido nem é definitivo, tudo pode transformar-se, embora nada desapareça, porque todos os seres cedem suas aparências cir­cunstanciais a novos seres, que jamais deixam de surgir. O poema passa a ser, então, uma espécie de “retorta” onde se forjam insuspeitados mundos, não “nas trevas”, como na Idade Média lendária, mas “às claras”, já que esses mundos insuspeitados estão paradoxal­mente aqui, diante de nós, porque criados com matéria extraída deste nosso mundo, embora nunca o tivéssemos notado.
Aí está um dos núcleos e um dos significados mais importantes desse pensamento. Todo esse jogo, fantástico ou sobrenatural ape­nas na aparência, está interessado exclusivamente no homem e no seu mundo, dele se origina e para ele retorna. E o paradoxo se expli­ca porque “a poesia é magia pela magia, magia sem esperança; o poeta, um mágico que se entrega aos ritos por eles mesmos, e daí não espera nada salvo os Erlebnisse que se identificam com o próprio ato de perpetrar esses ritos”. (11)
Em certo sentido, estamos diante de uma visão ingênua da rea­lidade, pois resulta na confusão das partes que a compõem, em decorrência de os objetos não ocuparem aí lugar fixo nem possuírem sentido definido. Confronte-se essa observação com o seguinte qua­dro: “No princípio, tínhamos aquilo que se chamará mais tarde, por incompreensão, o caos, que não era nada mais que o universo do dinamismo — atualmente, diríamos universo da energia radiante — isto é, um cosmos qualitativo, onde os seres e os objetos não se ofereciam como distintos uns dos outros.” Tal é, segundo Pierre Gordon, a característica fundamental da mentalidade do fim do neolítico, e salta à vista a semelhança com o que acabamos de apontar na poesia de A. M. Lisboa, que nos ofereceria, então, uma espécie de revivescência de uma visão primitiva da realidade. O quadro torna-se ainda mais revelador, linhas adiante, quando o antropólogo descreve a passagem para um estágio ulterior, assinalando uma for­ma de “violentação”, que seria justamente o alvo visado pela rebel­dia do poeta: “A violência do homem rompeu essa unidade primor­dial e introduziu a segregação espacial e temporal. Os seres foram então cindidos e cada um pareceu assumir uma parcela autônoma de existência.” (12)
Como entender a estranha coincidência? A magnitude do pro­blema e principalmente o fato de não poder ser examinado senão em termos de conjecturas impedem que tenhamos uma resposta satisfatória. Após vários séculos de civilização, estaria o homem voltando à sua situação de origem? Não passariam, esses vários séculos, de uma camada superficial, facilmente removível, o que poria à mostra o primitivo ainda presente? Ou, de modo mais simples, como afirma Monnerot: “A poesia de hoje, por seu próprio modo de existir, reflete a nostalgia de um mundo perdido, em relação ao qual as nossas disciplinas parciais aparecem como sombras desagregadas, desagregação que remete àquela da própria vida atual, onde não se encontram senão fragmentos de conhecimento, onde as possibilidades e os poderes humanos, truncados, se assemelham a esses grãos de poeira suspensos num raio de sol, e cuja multiplicidade indefinida e a vacilação contínua ou adormecem e desencorajam ou excitam brevemente.” (op. cit. p. 20)
Enfim, não temos senão conjecturas em torno das hipotéticas relações entre mentalidade “primitiva” e mentalidade “moderna”. Uma verificação, porém, parece inevitável: a poesia de Antônio Maria Lisboa suscita indiscutivelmente alguns dos cruciais problemas do homem contemporâneo. Mas retomemos o fio da explicação, a fim de cruzar a ideia central deste tópico com o problema do dualismo, examinado no tópico precedente.
Essa desagregação ou desarticulação do real significa que as dualidades em que cautelosamente se apoia a lógica convencional, conforme vimos, perdem a razão de ser, porque se fundem numa só entidade. Cada par antagônico, por si, microscopicamente, e a totalidade inumerável desses pares, macroscopicamente, se conjugam numa síntese unificadora. No fim de contas, como num paradoxo final, mas inevitável, a consciência vê erguer-se diante de si, límpido, vitorioso, pulsando ainda ao calor da tensão: o Uno, o Absoluto. (13) Quer dizer, atomizada, esfacelada, multiplicada, a realidade deixa de ser o conjunto estratificado de dimensões antagônicas, que mutuamente se excluem, para se transformar no palco de contínuas e inusitadas mutações, presididas pelo princípio da reversibilidade. Nada pode estar seguro de sua própria ipseidade, tudo pode tornar-se outro, como se tudo circulasse por invisíveis, e também mutáveis, “vasos comunicantes”, porque na verdade tudo equivale a tudo. A única ideia possível de Unidade seria a radical Diversidade. Compare-se o pensamento do poeta com o seguinte fragmento de Plotino, com o qual também curiosamente coincide: “Cada coisa no céu inteligível também é céu, e aí a terra é céu, como também o são os animais, as plantas, os homens e o mar. Têm por espetáculo o de um mundo que não foi ainda engendrado. Cada qual se contyempla nos outros. Não há nada nesse reino que não seja diáfano. Nada é impenetrável, nada é opaco e a luz encontra a luz. Todos estão em todas as partes e tudo é tudo. Cada coisa é todas as coisas. O sol é todas as estrelas e cada estrela é todas as estrelas e o sol. Ninguém ali se move como se estivesse numa terra estrangeira.” (14) Tal é o aspecto que, diante do nosso olhar atônito, assume o real desintegrado pelo verbo poético.
Subvertida assim nessa espécie de magma, a realidade tanto pode estar num “botão de camisa” como numa “Andorinha Azul de chapéu mole”, e pode estar integralmente num ou noutro, porque tudo — botão, andorinha etc. — não passa de aparência, cifra, máscara provisória que reveste uma e a mesma realidade maior, sempre e progressivamente oculta, e é inegável quando essa concepção ao esoterismo, como se de fato existisse um Absoluto, uma Essência ou algo semelhante, noção dificilmente aceitável pela mentalidade irremediavelmente cética e relativista do homem contemporâneo. Mas um Absoluto que não estivesse inerte nalgum ponto, à nossa espera, e se movesse, na razão direta do nosso movi­mento ou do nosso conhecimento ou da nossa intensidade de vida. A esse Absoluto parece que é de todo impossível aceder: quanto mais avançamos, mais próximos e distantes dele estamos. E isto já sugere o tópico seguinte.

5. Absoluto, Essência: parecem termos inadequados, comprometi­dos por uma secular tradição filosófica atualmente no auge de uma profunda crise, ao que tudo indica, mais propensa a aboli-los suma­riamente do que a reconceituá-los noutras perspectivas. Vejamos se é possível dize-lo de outro modo. O que sustenta o mundo criado por A. M. Lisboa é a condição de totalidade que o anima, um mundo fechado, coeso, contínuo, como uma esfera sem rupturas nem fragmen­tações, por paradoxal que isso seja, diante das aparências de que se reveste. Tal condição decorre, primordialmente, da mútua identifica­ção e absorção entre a consciência e a realidade percebida por ela, através do ato de pensar poeticamente o real: “Negra Atividade Poética que nos leva a criar entre o indivíduo e o Cosmos um corre­dor livre e por ele um movimento incessante de enriquecimento comum”. (IOU) Numa palavra, a condição resulta de uma espe­cial modalidade de relacionamento entre o ser que conhece e aquilo que é conhecido, o Eu e o Mundo. É essa relação que tentaremos deslindar, a partir do texto:

RECUSA  III
Eu sou uma coisa qualquer
eu sou uma qualquer coisa
sou uma qualquer coisa eu
uma qualquer coisa eu sou
qualquer coisa eu sou uma
coisa eu sou uma qualquer
EU NÃO SOU UMA COISA QUALQUER
eu sou uma cidade
eu sou Zanoni de Bulwer Lyton
eu sou uma errata
onde está a minha vida deve-se ver a nossa vida
onde está Deus deve-se ver o Diabo
onde está o Amor deve estar o Grande Amor
  M
ágico Amor Meu
onde estou eu deves estar tu
onde estão os lábios da nossa vida HÁ
  uma porta secreta min
úscula
O-AMOR
                                   MEU AMOR.

O poema, certamente dos mais ricos e significativos da obra do poeta, gira na sua primeira parte em torno da sensação de coisa que pode tomar de assalto o homem que se pensa e que pensa o mundo: a reificação do Eu. Tentemos descobrir as raízes da sensação. O contato entre consciência e realidade, do modo como se configura na poesia de Lisboa, resulta sempre em atrito, constante e desgastador, é uma relação indesejadamente conflituosa. A tarefa de conhe­cimento dessa realidade (em última instância, o único propósito real que justifica a relação) somente pode concretizar-se à medida que o sujeito cognoscente estabeleça para si um lugar ou nível determi­nado, em tudo e por tudo distinto do lugar ocupado pelo objeto cognoscível. Noutros termos, a consciência vê-se obrigada a aceitar uma rigorosa autonomia de estrutura para si mesma, e outra para a realidade, seja encarada parceladamente, seja no seu todo. Em seguida, a tarefa tentará a aproximação dos níveis, a eliminação da distância e a integração de ambas numa estrutura comum. E aí surge o atrito. Nessa tentativa de integração, ora o sujeito, ora o objeto se vê usurpado, total ou parcialmente, da sua autonomia, conforme a ênfase da relação recaia num ou noutro pólo, e o conhecimento não se realiza em termos satisfatórios. O atrito cresce horizontalmente quando o sujeito percorre a assustadora legião de seres e objetos que se apresentam à sua disposição, cada um deles mergulhado em sua indevassável circunstância própria, isolado e alheio, compondo um mundo de estranhezas, com o qual a consciência não alcança estabelecer qualquer afinidade. Para o Eu que assim o pensa, o mundo revela-se despido de significado, um mundo para o qual a consciência não é capaz de atribuir significado algum, convincente e duradouro, a não ser que os invente e os impinja, arbitrariamente (e se transforme naquilo que Sartre chama de má-consciência), a partir de imprevisíveis movimentos em que o Eu se revolve a si mesmo, igualmente isolado e alheio, comprimido na sua também indevassável circunstância.
Mundo sem significação, mundo coisificado, o cosmos quantita­tivo, de que fala P. Gordon. É imediato deduzir que a relação conflitiva que o Eu estabelece com o Mundo decorre dessa ausência de afinidade e comunhão entre um e outro. A medida extrema a que recorre a cons­ciência, perplexa diante do quadro assim constituído, é tentar reco­nhecer-se mera coisa, dispersa entre coisas, reificar-se a fim de se igualar a um mundo em face do qual rejeita sentir-se estranha. Isto, no entanto, seria abdicar da possibilidade de conhecimento. Quer dizer, caso o Eu alcançasse reduzir-se à condição de coisa, conhecer seria então tarefa confiada a uma terceira entidade, capaz de pensar o real (= Eu + Mundo) coisificado. Daí a hesitação que se segue à afirmação inicial, “Eu sou uma coisa qualquer”, sob a forma de desdobramentos por permutações. A hesitação, de um lado, denun­cia a recusa da consciência em negar-se a si própria, mesmo porque, afirmar-se coisa já significa deixar de sê-lo. Por isso, a afirmação vai sendo desdobrada, na expectativa de que se possa encontrar no seu recesso algum novo sentido que não seja aquele evidenciado na fór­mula inicial. De outro lado, denuncia igualmente a absoluta arbitrarie­dade que se instala no horizonte do real, reduzida a relação à escala da coisidade: nada significa nada, tudo se equivale, e as palavras bro­tam fáceis, sem nenhum peso ou valor. Finalmente, fechando o círculo, a afirmação irritada e triunfante, em caracteres garrafais: “EU NÃO SOU UMA COISA QUALQUER”.
Em suma, reduzir-se à condição de coisa não soluciona o impasse. A solução, propõe-na a segunda parte do poema: o Eu não é o Eu, o Eu é o Mundo. Repare-se, a propósito, como a partir da assertiva “eu sou uma errata”, o mundo que não é o mundo mas é o Eu, ou vice-versa, se desdobra naquele dualismo que já exami­namos: minha/nossa, Deus/Diabo, Eu/Tu, de tal modo que os termos oponentes se identificam pela transição do relativo “estar”, e o per­curso culmina com a referência ao Amor, de que trataremos na parte final. Mas vamos ao que mais importa. Até aqui, examinamos apenas alguns aspectos do problema, sem pretender sua análise exaustiva. E deixamos para o final o aspecto que, mais do que os outros, pode ajudar a solver o enigma.
O texto em causa organiza-se sobre um expediente simples, de resto comum a quase toda a obra, que é o da obstinada insistência na primeira pessoa. À parte isso significar um possível enquadramento numa grande linha neo-romântica da poesia moderna; à parte o que o fato em si possa conter de ingrediente paranóide — o que temos é uma postura mental guiada por uma desmesurada introjeção, mas lúcida e não apenas emocional, da qual resulta uma igualmente desme­surada ampliação do mundo subjetivo, a ponto de poder abarcar toda a realidade circundante. A dilatação do Eu acaba envolvendo o mundo em redor, fazendo-o mergulhar numa espécie de limbo, que então se habita de formas indiferenciadas. A consciência atenta e decidida transforma-se numa espécie de placenta, a partir da qual o real se cria. Real? Parece inadequado chamar ainda “real” a um mundo que se transfigurou para além de si mesmo. Meta-real, supra-real — os nossos recursos são insuficientes para designá-lo.
Mas vejamos a relação de outro ângulo. A insistência no Eu decorre da fixação de um ponto de vista, o único a partir do qual se torna possível a atribuição de qualquer sentido à realidade. A expli­cação, ao menos em esquema, parece simples. Quando afirmamos que, em Lisboa, o real aparece como uma série de dados isolados e incomunicáveis, ficou implícito que a afirmação se estende também à realidade humana, no sentido de que cada consciência individual constitui um pequeno mundo fechado em si mesmo e, quer saiba, quer não, defrontado com uma realidade carente de sentido, à qual é pre­ciso atribuir um, tão amplo quanto possível. Isto quer dizer que a rea­lidade terá teoricamente tantos sentidos quantos forem os indivíduos que se debrucem sobre ela, todos eles contraditórios, inconciliáveis... e todos legítimos. Temos uma imagem, talvez não muito convincente, porque esquemática, do caos. Para desfazer ou atenuar o caótico, cada indivíduo se vê na contingência de assumir ou reproduzir em sua mente toda a humanidade. Como? Como o tenta o poeta: adotando diante da realidade um ponto de vista absolutamente móvel, capaz de abarcar todos os possíveis e fixos pontos de vista adotados pelos outros. Uma espécie de ultraversatilidade que levaria o poeta a ser todos e nenhum, a um só tempo, à custa de ser profundamente e essencialmente ele mesmo. O paradoxo está em que tal realização, que tem por objetivo uma suficiente Weltanschauung, só se faz possível através de um rigoroso e obstinado individualismo. Como se, eliminadas as aparên­cias que a camuflam, a realidade se mostrasse uma só, independen­temente das diferenças individuais e independentemente de qualquer ponto de vista que adotemos. No entanto, uma só realidade jamais apreendida como tal, porque sempre renovada, conquistada e a con­quistar, indefinidamente, a cada movimento do espírito.
E com relação ao individualismo, o poeta demonstra estar cônscio do problema, ao afirmar: “Uma mudança de rumo em todos e em tudo não pode deixar de começar em nós individualmente”. Ou quando reflete: “A responsabilidade social do nosso próprio lugar cabe-nos inteiramente e de bom grado não a daremos a ninguém. Crentes de que a todos lhes acontece o mesmo, só poderemos, dentro de uma possível crítica, criticar o Indivíduo e não todo um Sistema ou Método de Ideias e Ação a que porventura diga subordinar-se. Eu sei que todo Sistema ou Método apreendido sofre uma transformação mais ou menos profunda no sujeito que o apreendeu e, portanto, seria tolice atacar as fontes, onde muitas vezes nós próprios fomos beber também, e esquecer o indivíduo que honestamente, ou não, afirma que seja assim, e um assim de que só ele sabe”. (EP)
Parece, então, esclarecido o problema central deste tópico. Res­taria, entretanto, explicitar o sentido que adquire o mundo assim con­cebido. Ou, obviamente, o sentido que lhe atribui Antônio Maria Lis­boa, o que tentaremos no capítulo final. Antes, porém, vale a pena considerar um aspecto tangencial, que completará o quadro.
Está visível, ao que tudo indica, que Lisboa realiza efetivamente a essência dos mais caros ideais do Surrealismo. Estamos talvez diante do mais surrealista dos poetas surrealistas, exatamente por­que, ao contrário de Breton, Soupault, Eluard e outros, não se preo­cupou em erguer ou seguir nenhuma doutrina literária, e também por­que, inclusive, recusou-se a ser chamado surrealista. Ora, o autên­tico espírito surrealista (que não se confunde com a doutrina, a de Breton ou outra), acaba por se revelar uma espécie de substratum mais ou menos comum a todos os grandes poetas de todos os tempos. Dir-se-ia, então, que a doutrina surrealista teve o mérito de tornar consciente e mostrar explicitamente aquilo que nas estéticas anterio­res era apenas presença difusa ou latente: uma larga e abstrata con­cepção de poesia, que parte das interrogações fundamentais — Para quê a poesia? Para quê ser poeta? E, por outro lado, ao contrário do que pede a doutrina (e mais não poderia pedir, porque esse mais somente enquanto realização efetiva pode consubstanciar-se em palavras), o que temos na poesia de Lisboa não é um mero apelo ao irracional ou ao inconsciente, paralelamente a uma repulsa da razão. Aliás, o “surrealismo bem comportado” da poesia assim con­seguida resulta apenas num objeto exótico, adicionado às categorias lógicas de um real que permanece mais ou menos intacto. Trata-se, isto sim, de um “fortalecimento da razão através duma profunda e abundante absorção de elementos inconscientes” (IOU). Quer dizer, o fantástico consubstanciado nessa poesia não decorre pro­priamente da pura imaginação, mas da razão mesma, conveniente­mente utilizada, ou seja, com liberdade e desinibicão. Como se, tam­bém no plano mental, se verificasse uma orgânica solidariedade entre fantasia e razão, delírio e linguagem. Vale dizer, a relação dicotô­mica Eu-Mundo somente pode ser refeita a partir da reformulação da dicotomia equivalente que a convenção atribui ao primeiro termo do binômio. Eu dividido = Eu divorciado da realidade; Eu unificado = Eu integrado na realidade. De fato, é uma realidade duplamente fan­tástica a que deparamos na poesia de A. M. Lisboa. Cada poema constitui uma ebulição alucinatória cuja tensão se mantém incrivel­mente coesa, constante. Um mundo de fulgurâncias, expressão irretorquível da sensibilidade visionária de quem parece manter familiar e ininterrupta convivência com uma supra-realidade, um universo paralelo, que aos nossos olhos escapa de todo. Não obstante aí esteja, diante deles.

6. Caso tenhamos conseguido reconstituir as características e a atmosfera da obra de Antônio Maria Lisboa, será imediato reconhe­cer que, diante dela, é infalível o espanto, o estarrecimento do leitor, que se vê defrontado com o insólito e o inexplicável. Afinal, que signi­ficado terá esse conglomerado de enigmas? É o que tentaremos escla­recer, voltando a atenção para as recorrências temáticas, que sem dúvida existem nessa poesia. Uma constante se destaca, entre outras: o Amor. (15) Vejamo-lo a partir do texto:

Sempre que o Sol cair hei de erguer-te em Oração lenta e longa, farei de ti um Objeto de Ouro para mergulhar no Lago debaixo das Acácias, transformar-te-ei em Corça e deixarei que corras os Bosques sem perigo, olhar-te-ei de frente até cairmos fascinados e vivermos ambos o Arco-íris da Memória! Abertos os Templos do Amor nas montanhas, descobertas as Grutas com Mil anos de existência, cavadas as Passagens Secretas próprias para a fuga dos Amantes mais tímidos, semeados os Prados em forma de Leito e as Florestas Virgens onde os isolados se encon­tram como por encanto, abertas as Nascentes de milhares de Rios por onde flutua sempre uma Mulher Bela e isso tudo de maneira esquisita como se não fosse real fixadas as Legen­das próprias e íntimas desta Vida Selvagem no Inconsciente do Mundo, chegados à Vida Universal onde tudo acontece sem explicação, porque tudo é real em nós, e onde não haverá conhecimento a não ser o nosso próprio conhecimento, onde o Intimismo de Cada Um é o Intimismo Universal, reconstruído o mundo pela negação: farás uma pergunta tonta, sem utilidade visível, pois não é necessária uma pergunta lógica para se res­ponder certo. Depois, desfeitas as barreiras da Realidade Tangível, erguidas as Novas Cidades onde habitarão os Poetas aju­darei a vestir-te e a despir-te de perfumes exóticos Solenemente! (EP).

De início, ressalte-se que a circunstância amorosa proposta na poesia de Lisboa não se confunde com a obcecada, deliquescente e mórbida sexualidade ou sexomania de boa parte das expressões sur­realistas. Como era de esperar, em face dos antecedentes, o sen­timento amoroso é aqui entendido não só como libertação de instintos sexuais nem só como contemplação espiritualizante, mas como a fusão de ambos. Mostra-o a imagem de mulher que aí se ergue. Um ser especial, misterioso, exatamente por seu hibridismo carne-espírito, foco solicitador de emoções e inteligência a um tempo. Nesse sentido, a mulher “está em íntima relação com as forças animais da natureza e, por esse motivo, com o inconsciente; mas possui asas, e por isso está em comunicação também com os mundos superiores, aqueles para onde se alteia, segundo a lenda, quando seu esposo pre­tende, ilegitimamente, violar o seu segredo. No entanto, é mulher tam­bém e pertence ao mesmo tempo ao nosso mundo. Ela é, pois, a sín­tese viva dos três reinos da realidade. (16) Diante de tal ser, é inevitá­vel que se instale, na base da disposição amorosa por parte do ho­mem, a atitude da adoração: “Hei de erguer-te em Oração”. Adoração, porém, que não significa a postura estática diante de uma enti­dade superior, isolada numa esfera inacessível, como tem sido nor­malmente a figura idealizada da mulher ligada ao “culto marial”, em toda a poesia do Ocidente. Ao contrário, adoração no caso não é senão a fórmula encontrada pelo amante para propiciar a conjuga­ção com o ser amado, a fim de que ambos se irmanem na mesma esfera comum: “Olhar-te-ei de frente até cairmos fascinados e viver­mos ambos o Arco-íris da Memória!” Tal atitude denuncia o fundo re­ligioso ou sacralizado que enforma o ato amoroso, assim compreen­dido. Trata-se da suspensão extática diante da mulher, então enca­rada como centro ou núcleo do Mundo, exatamente porque um ser híbrido, através do qual o homem se reintegra ou se re-liga a um universo em face do qual se sentia estrangeiro. (17)
Noutros termos, amor não seria, assim, nem o amor de si mesmo, nem o amor do objeto amado, nem o amor do amor — mas o amor de algo outro, o Oculto. No instante mesmo em que se realiza, o amor deixa de ser apenas amor e passa a ser a realização da “ver­dadeira vida”. Do modo como o entende A. M. Lisboa, e de resto o pensamento é endossado, com ligeiras discrepâncias, pelas teorias surrealistas, (18) o amor e a mulher transformam-se numa espécie de conduto, passagem ou interregno: “Descobertas as Grutas, cavadas as Passagens Secretas, abertas as Nascentes de Milhares de Rios” etc. — vias para a conquista do Absoluto, a “Vida Universal onde tudo acontece sem explicação”, ou seja, para a integração, e de certo modo re-integração, do homem na realidade. E tal se dá porque é de fato somente através da experiência amorosa que se opera o desejado pleno encontro do subjetivo com o objetivo e que se dá a igual­mente desejada fusão dos contrários. O Eu é o Outro, o Outro é o Eu, porque na verdade deixa de haver um Eu aqui e um Outro além, para haver simplesmente o puro existir, o puro Ser em que todas as for­mas particulares do real se fundem, ali, “onde o Intimismo de Cada Um é o Intimismo Universal”.
Em síntese, o amor abrange um amplo e generoso projeto exis­tencial que necessariamente leva amante e ser amado a saírem para fora do estrito círculo amoroso, como tal. E, para que se cumpra, o projeto implica uma condição fundamental, que tentaremos mostrar a partir do texto.

Amor confuso, amor repetido, amor esotérico, amor mágico
MAR
mar perdido de conchas no meio do mar
mar de marés justapostas de amor num mar de marfim perdido no teu joelho de marfim
mar de bosques que anuncia ao estrangeiro a terra perfumada
oceano no teu oceano de olhar
Amor sem nexo, amor contínuo, amor disperso
MAR
mar com uma bala direita no cérebro
mar sem apoio em nenhum ponto perdido no espaço, mas preso apesar de tudo numa enorme teia diabolicamente construída para ser livre (...)
Ficar depois energeticamente deitado até à descoberta da máquina de que só eu tenho o projeto
até me crescerem as barbas e com elas amarrar-me à cama onde me encontro deitado
e ficar a arquitetar crimes e caridades
até tu vires ler-me as minhas ideias rascunhadas na minha
outra Liberdade.

Além de outros aspectos dignos de menção, atente-se para o mais importante que é o fato de o texto exibir com clareza a atitude básica que norteia os movimentos do poeta na circunstância amorosa: o entusiasmo, a impulsão arrebatada e arrebatadora. Numa palavra, a condição da passionalidade, fundamento de tal concepção amorosa. E aqui se evidencia o que afirmamos no início, com rela­ção à avassaladora energia que convulsiona os poemas de A. M. Lisboa. Passionalidade significa aqui o empenho total, sem reservas nem economia, sem hesitações, constrangimentos ou subterfúgios, do ser em combustão, guiado por um impulso energético incontrolável, desejo de vida plena. Como se fosse apenas através da atividade amorosa, regida pela passionalidade, que o homem pudesse alcançar libertar-se das aderências e das falsas imagens de si mesmo e dos outros, para entrar na posse do seu Eu verdadeiro, da sua mais legí­tima autenticidade, para então se reconhecer igualado ou irmanado às forças cósmicas.
O amor transforma-se assim na expressão grandiosa do ser que se conquista a si mesmo, pelo uso da plena liberdade, e ao mesmo tempo se torna expressão simbólica do ato supremo em que o ser alcança dirigir-se para fora do seu mundo fechado, a fim de se dedi­car inteiramente à tarefa de compreensão do Outro, absorvendo e sendo absorvido, confundindo e sendo confundido, no mais puro e amplo conhecimento da realidade.
A tríade em grifo no parágrafo anterior acaba por se constituir numa espécie de “plataforma” ideológica da poesia de Antônio Maria Lisboa, (19) em termos de infatigável rebeldia e, ao mesmo tempo, libelo e apelo. Quer dizer, diante de um mundo em que tais aspirações — liberdade, amor, conhecimento — se revelam irrealizáveis, em nível de pureza, integridade e autenticidade, não resta senão fazê-lo explodir, através da Poesia, ato de integral liberdade, amor autên­tico e puro conhecimento. Premido, sufocado, usurpado, e assim por diante, o poeta, em vez de se remoer e se destruir na aceitação inglória e conformista das meias verdades e meias soluções que a realidade lhe oferece, busca afirmar-se e manter a própria integridade, em face de um mundo que se fragmenta, e que ele tenta reconstruir, a seu modo. E fazê-lo significa o compromisso altivo, sem qualquer sombra de desalento, lamúria ou passividade derrotista, com a tragicidade que a consciência de tal circunstância acarreta. Assumindo-o, o poeta deixa em aberto insondáveis perspectivas para um futuro, nem pessimista, nem otimista, quem sabe mais humano.

NOTAS
(1) A Intervenção Surrealista, Lisboa Ulisseia, 1964, p. 64-65.
(2) A Afixação Proibida. Primeira Comunicação Pública do Movimento Surrealista (colab.), Lisboa, Contraponto, 1953; A Verticalidade e a Chave, Lisboa, Contraponto, 1956; Aviso a Tempo por Causa do Tempo, in Pirâmide, n.° 1, Lisboa, 1959; Erro-Próprio, Lisboa, ed. do A., 1952; Exercício sobre o Sonho e a Vigília de Alfred Jarry seguido de O Senhor Cágado e o Menino, Lisboa, Ed. Gráf. Portuguesa, 1958; Isso Ontem único, Lisboa, Contraponto, 1953; Ossóptico, Coimbra, ed. do A. 1952; Poesia (antologia), Lisboa, Guimarães, 1962. Os textos serão indicados pelas iniciais dos títulos mais o número da página.
(3) Carta a Mário Cesariny, sem data, recebida em 28-4-1950, in A Intervenção Surrealista, p. 159-164.
(4) A Intervenção Surrealista, p. 166-173 e 177-178.
(5) MARCEL RAYMOND, De Baudelaire au Surréalisme (éd. nouvefle, revue et remaniée), Paris, José Corti, 1966, p. 11 e ss.
(6) ARTHUR SCHOPENHAUER, O Mundo como Vontade e Representação (trad. bras.), São Paulo, Brasil Edit., 1963, p. 18.
(7) “Aí está, sobretudo, o lugar ganho pela poesia como parte da vida do homem, a consciência de que nela se dá a mais autêntica fusão entre o real e o imaginário, entre o visível e o invisível, entre o racional e o irracional”. (ADOLFO CASAIS MONTEIRO, A Palavra Essencial, São Paulo, Ed. Nacional, 1965, p. 91).
(8) FERDINAND ALQUIÉ, Philosophie du Surréalisme, Paris, Flammarion, 1966, p. 116.
(9) PIERRE EMMANUEL, Poésie Raison Ardente, Paris, Egloff, 1948, p. 192.
(10) A propósito, esse verso, associado ao “olhar devasso” do seguinte, reve­laria uma série de conteúdos latentes, de fundo visivelmente erótico, caso proce­dêssemos a uma leitura psicanalítica do texto. Isso porém desviar-nos-ia dos pro­pósitos básicos: a compreensão do conjunto da obra. Entretanto, tal enfoque não poderia ser desprezado. A ele temos recorrido, quando o andamento da exposição o solicita, e a ele voltaremos, sempre que possível.
(11) JULES MONNEROT, La poésie moderne et le sacré, Paris, GaIlimard, p. 18.
(12) PIERRE GORDON, L’image du monde dans l'antiquité, Paris, P.U.F., 1949, p. 3.
(13) “Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o in comunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente. (A. BRETON, Manifestes du Surréalisme, Paris, Gallimard, 1963, p. 76-77.)
(14) Apud JORGE LUÍS BORGES, Historia de la Eternidad, Buenos Aires, Emecê, 1953, p. 15.
(15) A problemática amorosa assumiu primacial importância nas postulações do Surrealismo. Foi estudada exaustivamente por Alquié, Carrouges e outros, além de ter merecido uma “Enquête”, organizada por Breton (La Révolution Surréaliste, n° 12, 1929). Mesmo fora do âmbito surrealista, a afirmação parece manter-se. A problemática amorosa tende a transformar-se num ponto de convergência de todas as grandes inquietações do homem contemporâneo, ao menos de acordo com a maior parte dos poetas, ficcionistas, dramaturgos, cineastas etc. Como se o amor estivesse fadado a tornar-se verdade absoluta, derradeira possibilidade de integral realização humana. Nesse sentido, aliás, toda a arte de todos os tempos, eliminados os aspectos circunstanciais, parece tratar de um só tema: o amor e suas modalidades.
(16) MARCEL CARROUGES, André Breton et les données fondamentales du Surrea­lisme, Paris, Gallimard, 1967, p. 285.
(17) “No fim do neolítico, esses caminhos ofereciam, por outro lado, a vanta­gem de se ligar estreitamente ao ritual fálico, que se propunha restabelecer, pela união sexual praticada de maneira santa, e como sacramento, a unidade primitiva do céu e da terra; a integração de um sexo em outro, efetuada sob certas con­dições, suprimia o múltiplo e remetia o par humano à existência divina primordial.” (PIERRE GORDON, op. cit., p. 4).
(18) “Nele [o amor] se reencontram os prestígios do universo, todos os poderes da consciência, toda a agitação do sentimento; através dele se efetua a sín­tese suprema do subjetivo e do objetivo. é do amor que os surrealistas espe­ram a grande revelação.” (F. ALQUIÉ, op. cit., p. 117.)
(19) “Não somos assim contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a pátria, o conhecimento estabelecido (religioso, filosófico, cientifico) mas na e pela Liberdade, Amor e Conhecimento que lhes preside preferimos a estes.” (A. M. LISBOA, Aviso a Tempo por Causa do Tempo, transcrito em «Surreal-Abjeccion (ismo), Lis­boa, Minotauro, 1963, p. 47.)

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ESCLARECIMENTO DO AUTOR
In Poesia de Antônio Maria Lisboa, texto estabelecido por Mário Cesariny de Vasconcelos, Lisboa, Assírio e Alvim, 1977, p. 343-381.
A primeira versão desse texto aparece como capítulo da minha dissertação de mestrado ("Antônio Maria Lisboa: O Mundo Imaginado"), defendida na USP em 1969. Trabalho pioneiro, um dos primeiros sobre Surrealismo, na universidade. Nunca publiquei a dissertação na íntegra, mas esse capítulo (já uma segunda versão) eu incluí no meu livro "A Multiplicação  do Real" (São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1970, págs. 53-84).
Em 1976, o Cesariny (eu me correspondia com ele fazia um bom tempo) me pediu autorização pra publicar esse texto na edição do AML que ele estava preparando. Mas eu mandei a ele uma terceira versão, acho que melhorada - que no mesmo ano também saiu no meu livro "Poesia e  Realidade" (São Paulo, Cultrix, 1977, págs. 184-211).



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Nelson de Paula
Agradecimentos a António Cândido Franco, Maria Estela Guedes, Carlos Felipe Moisés e Nicolau Saião
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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Um comentário:

  1. Maravilhoso ,um dos livros é o meu refugio Cada vez mais me pareço com o que ele escrevia Uma incompreendida e criticada por todos !!!!
    Parabens
    uma prima do António

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