sexta-feira, 22 de abril de 2016

CRUZEIRO SEIXAS | Carta inútil e comunicação quase automática


1. FESTIVAL INTERNACIONAL SURREALISTA 2007 [1]

Sendo o mais velho (86 anos) sou no entanto único porque o meu interesse pelo surrealismo se tem mantido vivo, e porque apesar de tudo o meu estado de saúde o tem possibilitado assim podendo testemunhar da fundação do surrealismo em Portugal. Restam vivos Carlos Calvet, Fernando José Francisco e José [Luiz] Pacheco que certamente foram directamente contactados, e por si responderão. Foi nos anos 40 que se deu impulso inicial, em que de certa maneira REINVENTÁMOS DADA. Digo reinventámos, pois o regime político de Salazar, altamente policial, não permitia qualquer contacto que fosse para além dos seus próprios “princípios”. No entanto Júlio dos Reis Pereira (1902-1983), que de uma rápida viagem a paris captou algum reflexo do surrealismo em desenhos admiráveis datados de 1937. A sua obra posterior seguiu no entanto o expressionismo.
A nossa primeira exposição teve lugar em 1949, e reconhecendo-se a impossibilidade [de] funcionar em grupo, usámos a designação de OS SURREALISTAS. Na foto de conjunto que vos envio estão ausentes Carlos Calvet, Fernando José Francisco, João Artur da Silva e António Paulo Thomaz presentes na exposição. A partir deste acontecimento outros nomes a nós se juntaram. Dos livros publicados (e na louca esperança de que alguém se interesse pela sua tradução), envio-vos “A Intervenção Surrealista” de Mário Cesariny, que foi de facto o grande impulsionador do surrealismo aqui, sendo ao mesmo tempo poeta notabilíssimo. Somente a enormidade dos oceanos ou do Himalaia se pode comparar à enormidade de um poeta como Cesariny. Não é fácil substituir Breton como não é fácil substituir Cesariny.
Quanto a mim, transcrevo de um texto que Franklin Rosemont escreveu para uma exposição da Fundação Eugenio Granell de Compostela: Entre os pintores selvaticamente inconformistas do nosso tempo, Cruzeiro Seixas indubitavelmente sobressai. Transmutada provocação e a gloriosa potencialidade do improvável, são as marcas que o distinguem. Seja o seu instrumento o pincel, uma caneta ou uma tesoura, é sempre um mestre alquimista, um agitador, um enganador; a maior parte das vezes é as três coisas ao mesmo tempo! (…) Que a sua poesia não seja mais conhecida em países de língua francesa e inglesa é consequência dos caprichos absurdos do mercado na era do neo-imperialismo, agora delicadamente designado como globalização. Cruzeiro Seixas e os seus companheiros são poetas autênticos, que sabem manter os olhos abertos e fechados ao mesmo tempo.
Junto ainda alguns livros de minha autoria ou que se referem ao meu trabalho. Só recebi algum reconhecimento geral, nunca aceitei a designação de “artista” ou de “intelectual”; o meu desígnio é o de deixar um depoimento, o testemunho de um homem que dedicou a sua vida ao AMOR SUBLIME. Deixo-vos estes livros na impossibilidade, devido a dificuldades de visão e outras referentes à minha idade, [de] seguir o vosso programa. Não quero no entanto deixar de referir alguns dos nomes maiores do surrealismo daqui como António Maria Lisboa, Herberto Helder, Mário Henrique Leiria, António Dacosta, D’Assumpção, Ernesto Sampaio, Carlos Calvet, António Areal, Isabel Meyrelles, Raul Perez, Fernando Alves dos Santos, Mário Botas, etc, etc. Devido à nossa terrível situação geográfica periférica dificilmente um nome ou uma obra ultrapassam esta fronteira. Colocados entre a vastidão da Espanha e a vastidão do oceano, persistentes terrores desde a Idade Média em todos os gestos ficaram como uma forte marca de solidão. Infelizmente as pátrias ainda marcam hoje de forma indelével o próprio surrealismo. Enviando-vos apenas este contributo corro o risco de não ser útil, mas julgo que o inútil está presente de corpo inteiro neste vosso encontro. Começo no entanto a recear que o impossível se esteja a tornar demasiadamente possível.
Algumas vezes dobrei ou recortei papéis, chegando a resultados inéditos, de que vos envio original. É por ínvios caminhos que se encontra a Liberdade e o Amor. Além de que aqui em Portugal se deve a um Futurista (Almada Negreiros) a seguinte frase: Está tudo dito, só falta fazê-lo.
Com estes muito pesados 86 anos já pouco poderei fazer estando a caminho da cegueira. Fiz o que fiz e a propósito Edouard Jaguer escreveu: Cruzeiro Seixas, talent insolent à force de modestie. Foram de facto muitas as cartas insultuosas que fui obrigado a escrever, creio que a última endereçada à Fundação Calouste Gulbenkian. Espero e muito desejo que não seja passiva esta minha carta. Só o inútil guarda ainda toda a amplitude do Mistério. Mistério é a Liberdade, mistério e o Amor. Ontem estava eu idealizando o regresso dos dinossauros, ou um mundo sem gasolina, ou ainda mais imaginoso sem água potável, toca o telefone a prevenir-me de que havia um foco de incêndio no 1º andar do prédio em que habito! Imediatamente idealizei esta carta em chamas! De facto sonho mais quando acordado do que quando adormecido; sonho, por exemplo, com palavras que nunca existirão, e que por certo deixariam pálidas de inveja palavras como LIBERDADE e IMAGINAÇÃO, que há uns 50 anos ainda pareciam mais luminosas do que o próprio Sol…
Vivi 14 anos em África e vi ser destruída uma civilização. Vi, regressado à Europa, esta nossa civilização produzir mais lixo do que qualquer outra; nenhuma civilização do passado QUIS coisas como “detergentes”, “computadores”, “internete”… Leio e confirmam-me que os elefantes estão em vias de extinção, subsistindo apenas os que estão nos jardins zoológicos de todo o mundo! Que mundo é este? Idealizo agora um salão acolhedor preparado para uma recepção. Sobre o chão ricamente atapetado sob o excesso das luzes dos lustres de cristal, um número suficiente de, evidentemente extremamente cómodas, cadeiras-eléctricas. De facto a vida é apaixonante; já experimentei contar todas as folhas de uma árvore, e até já experimentei a morte. Mas, felizmente, nunca fui profissional de qualquer coisa. Se de facto apareceu editor capaz de editar 4 grossos volumes da minha poesia, posso-vos dizer que jamais a reli.
Enfim escrevendo esta carta inútil, espero estar convosco. Transcrevo a propósito ou a despropósito Isidoro Ducasse, conte de Lautréamont: Moi, comme les chiens, j’éprouve le besoin de l’infini… Je ne puis contenter ce besoin! Je suis fier [?] de l’homme et de la femme d’après ce qu’on m’a dit. Ça m’étonne… Je croyais être d’avantage ! Saudações eternas do Cruzeiro Seixas

2. D. SEBASTIÃO E OS CISNES NEGROS [2]

Os meus sonhos não têm imaginação; referem quasi sempre acontecimentos e gentes do dia-a-dia. Parece que a força dos sonhos mais se revela em mim com os olhos abertos em pleno dia: os sonhos que me transmitem amigos e inimigos próximos sempre acompanham a minha enormíssima solidão.
Desde há dias que se torna obsidiante um sonho que me foi narrado como acontecimento real, quero dizer quasi sem literatura. A realidade fica-se por um forte dos que os Espanhóis deixaram construídos ao longo da costa marítima. No sonho era possível estar deitado no espaço entre essa obra de arte absoluta que é a areia – (possivelmente milhares de anos, conchas, búzios, pedras, naquele corpo de fluidez sensual). Estranhamente estaríamos deitados no espaço entre céu, entre céu e mar. Muita gente ainda supõe hoje que o céu é o mar, e que o mar é o céu. Aqui há uns anos havia coisas apontadas como anormais. Agora já se sabe que nada é de facto anormal onde esteja o homem. Uma bela fortaleza é sempre uma representação do céu e da terra; ali se adestram jovens a matar e nas longas horas de sentinela, nas guaritas, avançadas sobre os paredões eternos, marcas de esperma.
Cisnes no mar, só julgo os ter visto na praia de Cadaquès, próximo da casa de Dalí, mas tudo estava assinado por ele, desde a sombra dum cipreste às palavras dum velho pescador. Estes cisnes daqui eram negros e arrastavam pelo espaço longos mantos de veludo vermelho. Também era neste cenário que a luz negra gostava de se mostrar como uma serpente chicoteando o espaço até tocar a moldura do retrato de D. Sebastião – que não deveria estar fechado num museu, mas permanentemente em circulação. Nos sonhos de todos nós, este D. Sebastião foi sempre derrotado como deve acontecer sempre com o esplendor do Sol derrotado pela noite, pelas nuvens que passam, pelo vento. A derrota é sempre a grande vitória com diamamantes sobre o oiro das armaduras. Um novo mundo deu um grito de recém-nascido e lá ficou a louvar a terra de Alcácer-Quibir. Tinha apenas chegado à adolescência; seus pais, quando conceberam tal luz, no quarto das grandes tapeçarias narrando guerras, ali onde estavam presentes fidalgos e demais criadagem, com as mãos marcando o mistério.
Por certo os mesmos assistiram ao parto como era então costume. Lá fora os cavalos relinchavam, cães ladravam e um leão ditava um poema épico a Camões. Aprendia-se dia-a-dia a olhar as coisas como os cegos. Quem pode ficar frio perante tais momentos? O rei é sempre pelo menos duas personagens; um rio de sangue o arrasta de extremo a extremo do espaço e tem um túmulo de pedra belamente lavrado, no gesto de desembainhar a espada. A morte é a vida preferida dos reis. Este rei D. Sebastião não cabia no espaço que lhe estava reservado pela História. Como pode ele caber no espaço dum sonho? Apenas porque há verdades que ninguém pode ter, porque dançam pelas ruas loucas mascaradas de mentiras.
O sonho é uma derrota? Pouco mais somos do que dinossauros levando na mão um transístor. Uma qualquer Alcácer-Quibir acontece-nos todas as semanas e são poucos os que se apercebem onde está a derrota e onde está a vitória.
A lógica, o quotidiano, o racionalismo são uma pequena parte do caminho. Se sabemos pouco dos sonhos, menos sabemos do quotidiano. É esta a verdade a que conseguimos chegar.

NOTA
1. O primeiro texto, inédito, dactilografado, com algumas emendas manuais, foi escrito para encontro em Edimburgo (?), Verão de 2007; tem valiosos elementos para a compreensão do surrealismo em português. Franklin Rosemont (1943-2009), citado no texto, foi o editor da revista Arsenal-Surrealist Subversion, que publicou quatro números (1970-73-76-89) e chegou a ter ligações à I.W.W.; Rosemont projectou e realizou a World Surrealist Exhibition, na galeria Black Swan, Chicago, em 1976, onde Mário Cesariny esteve em pessoa. Há fotografia dele ao lado do poeta beat Philip Lamantia (1927-2005), um dos redactores de Arsenal e que foi publicado em Nova Iorque por A. Breton na revista VVV (1944). Édouard Jaguer (1924-2006), também citado, foi um dos participantes do grupo Les surréalistes Révolutionaires, que Noël Arnaud constituiu em Paris à margem de Breton, durante o exílio deste em Nova Iorque. Reaproximou-se de A. Breton em 1959. Editou a revista Phases (1954-1975), que tinha por lema a arte é a continuação da revolução por outros meios, em que Cesariny colaborou em 1973 com um importante texto, “Chronologie du Surréalisme Portugais” (versão francesa de Isabel Meyrelles), depois recolhido no livro As Mãos na água a Cabeça no Mar (1985). A casa editora dos volumes poéticos de Cruzeiro Seixos, referida no fim do texto, foi a Quasi (Famalicão). A transcrição respeita a ortografia; fizeram-se raros ajustes na pontuação e na acentuação.
2. O segundo texto, inédito, é comunicação ou texto quasi automático (assim o classifica o autor) sobre sonho relatado por amigo; original dactilografado (com algumas emendas manuais) e datado de Março de 2012. Respeitou-se a ortografia, mas ajustou-se acentuação, pontuação e maiusculação, isto por se tratar dum texto escrito, numa máquina manual de dactilografia, sem rascunho, por um homem cego de quase noventa e dois anos. Título porém do autor. Noutros tempos, com olhos, o título teria dado desenho naturopsico, como os dedicados a Soror Mariana, a Álvaro de Campos e outros.

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Texto originalmente publicado em A ideia - Revista de cultura libertária – II série – vol. 16 – n.º 71-72 – Outono de 2013, aqui reproduzido graças à autorização de seu diretor, António Cândido Franco. Página ilustrada com obras de Nelson de Paula (Brasil).



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Nelson de Paula
Agradecimentos a António Cândido Franco, Maria Estela Guedes, Carlos Felipe Moisés e Nicolau Saião
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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