quinta-feira, 28 de abril de 2016

EDITORIAIS | Julho de 2005 e Março de 2006


Editorial ARC # 46 - Julho de 2005

É possível que em alguma parte do planeta o cidadão sinta-se sufocado pela irrealidade – esta é, de certa maneira, a ideia que muitos fazem de uma sociedade como a estadunidense. Em um país como o Brasil, por exemplo, o que sufoca a todos é o excesso de realidade. Não se trata de fantasia ou ficção – quando muito um efeito ótico ou uma representação teatral, recursos já quase sem função. Tudo corresponde em exatidão à realidade: miséria, corrupção, fraude, privação. Enfim, vive-se ali em um estado criminal, tudo perfeitamente embrenhado no imaginário-fantoche de sua gente. Onde ficará este país de que ouvimos falar apenas através da mídia?
No futebol brasileiro é comum observar os monstros sagrados percorrerem o gramado como se fosse um mundo só deles. São tão supremos em sua individualidade que perdem por completo o senso da partilha. Isto reflete o modelo de ascensão social no Brasil. A rigor, não é o que perdemos, mas antes o que jamais tivemos. O conceito de boa índole é um vírus, da mesma natureza do bom selvagem. Se acaso é verdade que a oportunidade faz o ladrão, este é um país de grandes oportunidades. Gente oriunda de qualquer classe social, uma vez em condição de poder, esbanja recalque, realça o sentimento de exclusão.
Refiro-me ao poder em instância miúda, a que atinge o cotidiano em facetas múltiplas: o protocolador de processos em uma repartição pública, a atendente de serviço de informação por telefone, o apresentador fortuito de um programa de televisão. A deliberação da própria vida nas mãos do rancor, miséria espiritual, que se origina na falta de comida, saúde, estudo etc. Porém quem acredita mais nesses ditos de campanha eleitoral? Golpe fatal da realidade: a descrença total em qualquer auxílio, retificação ou alívio. Torna-se a maquinação em verdade, e muito mais eficaz. Exímia projeção de um artifício: já não temos nada a perder.
Talvez apenas por um falso apego religioso, relutância sem princípio, inanição mental, medo atávico, algo que não nos permita visualizar com clareza o alvo, uns poucos ainda relutem em aderir ao novo credo: a realidade é tudo o que temos. O Ronaldinho fenômeno, o Domingão do Faustão, a Igreja Universal, o Rock in Rio, o Jornal Nacional, este editorial, os romances do Paulo Coelho, nada nos redime. Somos uma sociedade completamente vitimada pela realidade, cujo único aspecto inacreditável, porém não fantasioso, é o fato de que somos todos cúmplices – as exceções por vezes nem fazem ideia de onde estão. Com isto, não cabe a ninguém reclamar, e as indisposições soam como… Pensemos um pouco.



Em um de seus mais belos poemas, Jorge Luis Borges conclui dizendo que “essas pessoas, que se ignoram, estão salvando o mundo”. Trata-se de uma noção fantástica que o poeta argentino tinha do senso de justiça, algo inato e incorruptível. A expressão “salvar o mundo” foi absorvida pela irrealidade, tornou-se chavão cinematográfico a refletir prepotência. Neste trâmite, nem mesmo a poesia foi salva. E a casta intelectual, à qual pertencem todos os poetas, foi se tornando tão venal quanto os jogadores de futebol.
Ficamos unicamente com a realidade. Nossas evocações mágicas ou místicas já nem mais arbitrárias são, nem conduzem a analogia alguma. Ídolos caídos, nada mais. Um grande surto de decepção e a realidade impondo seus méritos. Mas tudo isto se passa nesse longínquo país chamado Brasil, que já não sabemos onde fica. Talvez para o resto do mundo esta seja uma notícia apenas curiosa. Para nós, brasileiros, trata-se do palimpsesto de farsas acumuladas, pele sobre pele, onde o fundo do poço torna-se improvável, um truque a mais, uma mágica circense.
Quem nos livra então da realidade? Não temos cinema para tanto. Alguns poucos ídolos aposentados ou gastos pela ganância. Uns símbolos maltrapilhos, desacreditados por conveniência. Só nos resta a realidade. O país do futuro tornou-se um país sem imaginário. Não tem mais José a quem se dizer: e agora? Não tem mais ninguém. E está longe, longe de casa e ainda mais longe da irrealidade.


Editorial ARC # 50 - Março de 2006

É sempre condenável toda forma de usurpação, de tal maneira que não há mérito algum em expressar indignação ante qualquer ação que assim se caracterize. O que pode soar estranha é a sensação de que, em alguns casos, a fraude nos leva a refletir se a situação dada como legal corresponde a tal condição. Ao que tudo indica, e já não cabe dúvida, no Brasil estamos sendo testados em relação a todos os nossos valores, sociais, culturais, éticos, estéticos. E onde supúnhamos haver uma tradição, com tamanho alarme se desfaz a terra sob os pés que já não sabemos mais como chamá-la. Não vale amparar-se no dito de que o mundo está de ponta-cabeça em todas as partes, pois há distinções profundas entre as inúmeras modulações de desequilíbrio que enfrenta a humanidade em nosso tempo. Há valores conformados, deformados, reformados, contornados, a depender do país e, sobretudo, de sua densidade cultural. Sim, pois a única certeza que permanece é a de que somos definidos por nossa cultura.
Deste modo, o declínio que enfrentamos hoje no Brasil é resultante primeira, e em franca ascensão, de nossa aversão a levar-se a sério como nação, o que naturalmente extrapola os planos estanques da política e/ou economia. Não se trata de saudosismo - por mais que se possa concluir que já fomos, de fato, bem melhores - ou de volta a uma frustrada perspectiva nacionalista ou de uma repreensão moralista de qualquer natureza ou deleite catastrófico. Trata-se apenas de constatar o irremediável: chegamos até aqui graças ao pouco caso que sempre fizemos de nossa cultura. Se vamos aos exemplos, que seja já e recorrendo a fatos recentes:
1. não há distinção entre o roubo de armas em um quartel do exército e de obras de arte em dois museus;
2. ao lermos matérias na imprensa brasileira acerca da América Latina, quase sempre elas nos parecem ter sido escritas por jornalistas estadunidenses;
3. a denúncia de que livrarias vendem, às editoras, espaços físicos e virtuais para difusão de livros, contribui para a compreensão da manipulação a que estamos sujeitos todos nós.
Discutir as falhas - seus mecanismos e artifícios - tem sua importância, claro, porém o que nos parece ainda mais indispensável é refletir sobre certo deslocamento de valores que estes fatos - e uma avalanche de similares - propiciam.
Tirar armas de um quartel e obras de arte de um museu com a facilidade como as duas façanhas se deram põe em dúvida a capacidade do Estado proteger seus cidadãos em qualquer instância. Poderíamos argumentar que baixos salários e precária formação profissional deixam as instituições a mercê da corrupção.
Fingir uma voz própria acerca do conhecimento da realidade de nações vizinhas põe em dúvida a ínfima parcela de credibilidade da qual ainda é merecedora a mídia em nosso tempo. Os argumentos poderiam ser os mesmos do item anterior, acrescidos de uma mãozinha do Estado, o desprezo que o Brasil sempre teve pela América Hispânica.
Forjar uma situação de prestígio no cenário literário, iludindo o leitor acerca da preferência de alguns livros e autores, é criminoso, da mesma ordem que o jabá da indústria fonográfica já de muito denunciado por alguns artistas. Os argumentos anteriores aqui não podem ser aceitos, considerando os altíssimos lucros dos atravessadores, em se tratando de mercado editorial. Eis um atestado de que a corrupção não é o único recurso para quem quer infringir uma ordem.
O que nos preocupa é a maneira como reagimos a tudo isto.
Todo e qualquer crítico de arte no Brasil conhece as condições que definem o cotidiano de nossos museus. Há casos inúmeros e não relatados de obras perdidas, tanto em face de sua irremediável condição de restauro, quanto na migração de um museu para outro, a tempo de evitar o pior. O descaso com que as forças armadas vêm sendo consideradas como se tratasse de um totem aplicável unicamente a nosso período ditatorial permite o surgimento de ações paralelas, ao mesmo tempo em que enfraquece a única possibilidade, em tal âmbito, de um país como o Brasil frear um estrondo ainda maior de desordem social. Cria-se inclusive uma indesejável relação hostil, quando tais forças deveriam estar naturalmente empenhadas na construção ou defesa de um espectro nacional.
O nicho em que é produzida uma mídia que já de muito deixou de ser apenas informativa não se define por impropriedade interna, não é reflexo direto de má contratação de profissionais, ou qualquer outro sintoma de algo que fuja ao controle dos veículos de comunicação. O que vale questionar é qual interesse o Brasil tem em manter essa interlocução com a América Hispânica mediada pela mídia. Qualquer jornalista pode considerar o silêncio do Estado em relação a este assunto como um sinal verde para que a mídia continue desempenhando um discutível papel diplomático, posto que o elenco que defende em sua maior parte é formado por conexões ligadas a uma indústria bélica e cultural ainda imperativa internacionalmente.
Argumentar, como o fez o diretor de vendas de uma de nossas grandes editoras - cabe atentar que esta grandeza é tão-somente da ordem do capital -, que a cobrança de propina para exposição em destaque de determinados livros nas redes físicas e virtuais das livrarias é uma operação aceitável em termos de comércio, é legitimar o crime em seu mais largo espectro. Basta substituir fatores: se o argumento de editores é que livreiros também precisam sobreviver, o que não dizer de traficantes de droga, vendedores ambulantes de CDs piratas e matadores de aluguel, estes senhores acaso também não precisam sobreviver?
Os três pontos aqui referidos não constituem uma importância maior em seu aspecto isolado - são variáveis de um modus vivente alarmante -, mas sim no que operam como conjunto de obra, ao provocarem a sensação mencionada inicialmente: a de que tudo parece estar fora de lugar. Já não necessitamos identificar o crime ou o criminoso. Eles próprios anunciam seus feitos, e muitos até se vangloriam de. Vivemos em uma sociedade criminal na qual nosso maior desafio é como refreá-la. Ainda acreditamos que a cultura seja a maneira mais ágil e consistente de evitar um maior vazamento de fogo no inferno.
Contudo, a cultura não é um fato isolado. A rigor, ela é um reflexo de nossa compreensão acerca da civilidade, da autoestima, do respeito pelo outro, da guarda dos valores comuns, da aceitabilidade, da firmeza de caráter, da cumplicidade entre indivíduos, da percepção da necessidade do outro, da disposição a ajudá-lo, enfim, a cultura reflete exatamente o que somos. De nada adianta sonhar com Deus, ou acreditar que somos abençoados pela existência entre nós de Guimarães Rosa, Antonio Bandeira ou Elis Regina; Drummond de Andrade, Tom Jobim ou Rego Monteiro. O mundo simplesmente não existe sem o dia de amanhã na exata proporção em que o dia de amanhã não existe sem considerar seu passado. Porém, em meio a tudo isto, o presente nos convoca a, no mínimo, suspeitar daquilo que somos.
Chegamos à edição # 50 da Agulha Revista de Cultura com uma suspeita afirmada desde seu primeiro editorial, a de que somos responsáveis pelo mundo que habitamos, de uma maneira ou de outra. Seja na denúncia ou na aceitação, este é o nosso mundo. Fazemos parte dele com tudo o que mais nos fascina e em meio a tudo o que mais deploramos. A resultante de 50 números até aqui publicados confirma nossa postura, revela os bons frutos de uma busca ininterrupta de diálogo com outras expressões, confirma a aceitação de uma revista que apostou na circulação unicamente virtual e que hoje é largamente conhecida em todo o âmbito geográfico que engloba os idiomas espanhol e português.
Jamais passamos o pires, ou utilizamos a Agulha Revista de Cultura para qualquer ação que extrapole seu plano editorial. Com mais de 900 matérias substanciais publicadas até aqui, sem mencionar sua parceria com o Jornal de Poesia - só em termos de Banda Hispânica já ultrapassamos a marca de 1.000 registros dedicados a poetas de língua espanhola - e com a portuguesa TriploV - onde mantemos um dossiê dedicado ao surrealismo -, tornamos possível um pequeno mundo de circulação de bens culturais e sua cabível reflexão, ao ponto que nos orgulha imensamente estar disponibilizando agora uma Agulha Revista de Cultura # 50, não somente pelo óbvio sentimento de que até aqui chegamos, mas pelo acervo de que já dispomos - sempre crescente - de material em grande parte inédito para inclusão nas próximas edições.
Os editores de Agulha Revista de Cultura se sentem felizes, naturalmente, porém insistem que a realidade deve ser encarada sob suas mais violentas formas, sem que jamais venha a ser adulterada. O que está por trás de um roubo de obras ou armas? O que está por trás da sequenciada rejeição às novas formas de governo com que erra e quem sabe acerte a América Latina? O que está por trás dos interesses em falsear a situação do mercado editorial brasileiro? Tais desvios de espelhos, estes sim, mais do que qualquer outra coisa, é o que mais nos preocupa, porque lidamos justamente com o fascínio, que não é o mesmo que fraude.



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Valdir Rocha
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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