quinta-feira, 28 de abril de 2016

EDITORIAIS | Novembro de 2002 e Março de 2003


Editorial ARC # 30 - Novembro de 2002

As cidades e sua música abrasada de extravios são uma imposição de falsos encontros. Tudo é perda ali, a começar pelo que julgamos encontrar: a ideia precária de localização que ostentam as inúmeras sinalizações, os caminhos dados como únicos, ainda que bifurcados. A rigor, a única razão para que o homem mergulhe no labirinto aflitivo da malha urbana é a de buscar perder-se de todo e descobrir ali uma antítese para o que lhe foi deturpado a caminho. Entrar ali para perder-se de si, tratando de recuperar um outro já de muito desfeito. Portanto, as cidades não são lugar de encontro, mas antes de acento da perda.
Assim vale caminhar por elas, perdendo-se no esgotamento de ruas e em sua escuridão ardilosa. Seguir por ali como quem recorda um verso de René Crevel: com as pernas abertas, uma cidade dorme nua sobre o mar fosforescente. Não descartar jamais o erótico. A própria e cultuada beleza, de prédios, roupas, carros - a estética da velocidade, seu charme domado -, nos engana ao esconder o vazio em que se ergue. O humano pode se instalar em qualquer espaço, mas deve levar consigo o sentido. Hoje um ardil conceitual embaralhou o racional ao irracional, proveniente de uma astúcia respaldada em certo temor atávico do homem conhecer-se mais intimamente. As cidades devem ser vista como um convite a que o homem saia de si, sim, mas que essa aventura se justifique por uma busca mais ampla de sua existência.
Tocar as reentrâncias das cidades, beijar-lhe com sutileza os caminhos, embriagando-lhes o passo. Um homem não pode compreender nada fora de si se evita tocar-se. As mulheres estão mais próximas desse conhecimento essencial porque sabem fazê-lo. Sabem preencher com mãos internas e externas todo o ímpeto de sua vida. Os homens se distraem com uma exuberância fortuita e erguem cidades onde ninguém mais se toca entre si. Pensemos nas cidades como um aglomerado de casas e ruas conectivas. Não temos aí senão uma fertilização da solidão. Os espaços de convivência são ilusórios porque o mercado das almas prevalece em tais sesmarias.
As cidades são um lugar fecundo para que se perceba as vozes que revelam as dissidências. Entregar-se a elas, perder-se nas dobras insuspeitas. Tornar a vida uma grande aventura. Calvino a elas se referiria como palimpsestos: raspando-lhes a face vamos dar em outra que nos evita olhar e logo em mais outra que se abre despojada e outra mais e mais, até o infinito. No entanto, o que quer que engulamos terá seu destino certo sob uma ótica que não é mais apenas laboratorial. As cidades não são mágicas. Não são fantásticas. Não são indícios de uma evolução humana. O próprio Calvino diria: não existe linguagem sem engano. As cidades são a medida exata do homem que temos hoje. Este homem tão afeito ao racional que consegue desconquistar-se. Não está mais. Não é mais ele. E rigorosamente não ensina a si mesmo sequer uma rua mais tranqüila para chegar ao espelho.
Raspando a face do que nos mostra o cotidiano damos em um imenso vazio desconfigurado. Não há cidades. Seguindo as placas, nada muda, pois abolimos a distinção entre visível e invisível. Perdemos as cidades, quando o ideal era nos perdermos nelas.
Nesta edição # 30 da Agulha Revista de Cultura encontramos diversos matizes que unem cidade e memória, salientando a essencialidade do instante, da deriva, não apenas recorrendo ao bordão da ruptura mas antes sondando as inúmeras possibilidades de identificação, complementaridade, desdobramento. Assim é que fortalecemos as relações no domínio de uma mesma língua (portuguesa) e suas leituras e entrelaçamentos com outra (espanhola), diapasão que permite abordagem e explanação de valiosas visões de mundo, onde o destaque será sempre a multiplicidade. Caminhemos por suas páginas sempre guiados pela voz de Crevel: com as pernas abertas, uma cidade dorme nua sobre o mar fosforescente.


Editorial ARC # 33 - Março de 2003

Nos habituamos a lidar com o visível como recurso único para entender a realidade. Na política há um personagem – o porta-voz – que funciona como arauto da visibilidade. Seu anúncio consiste em padrões de conveniência, tornando cada vez mais confuso o próprio entendimento daquilo que se anuncia. A realidade deixa de ser intrínseca e passa à condição de objeto promovido a tal entendimento. A realidade como um ready made. O estado de vigília das massas, sendo induzido, processa apenas parcialmente o que de fato acontece.
Já se disse que o grande dilema de toda esperança é justamente o cadinho de realidade à sua volta. Ao que parece, Salvador Dalí atirou no que viu e acertou o que não viu. Sua ideia de sistematização do caos através de um “processo de caráter paranoico e ativo do pensamento” tornou-se uma arma nas mãos do inimigo – até onde nossa esquizofrenia consegue separar, no homem, o que é amigo do que é inimigo.  A arte não se afirmou ante a realidade. Ao contrário, rendeu-se a seus caprichos – embora reste a dúvida a quem pertençam os caprichos. Acabou limitando-se ao palco, ao território do visível.
Porta-voz de si mesmo, disse Dalí em 1930 que tudo levava a crer que a realidade acabaria sendo “considerada unicamente como um simples estado de depressão e de inatividade do pensamento e, por consequência, como uma sucessão de momentos de ausência do estado de vigília”. Haveria acaso um modelo puramente interior de realidade? Talvez o que devamos nos perguntar infinitas vezes ao dia é por qual razão concebemos o visível e o invisível como joio e trigo. A vida é o que está ao alcance de nossas mãos ou de nosso desejo? E separar assim, uma dimensão da outra, atende a qual motivo?
Nossos dias hoje estão impregnados do que se pode chamar de metáfora das duas torres (Tolkien & Bush). Não há dúvida quanto ao fato de que os Estados Unidos tenham se constituído, ao longo dos tempos, na mais notável nação forjadora da realidade. A curiosidade vem do fato de que essa fábrica de sonhos seja aceita por seus partícipes quando se trata de arte mas não quando a realidade queima a carne. Uma contribuição decisiva ao descrédito da realidade é afastá-la do mundo da criação artística, tática que não se concretizaria sem a conivência dos artistas.
O que nos parece claro defender aqui é que não se pode escolher assento em um barril de pólvora crendo que haverá menos dor em uma fileira do que em outra. Não há a dor da arte distinta da realidade. não se promove a intensidade da dor por ser visível ou invisível. Um porta-voz qualquer vem nos dizer que a dignidade humana está a salvo graças aos últimos ataques militares contra o inimigo. Esta é a tônica da humanidade, este é o porta-voz que escolhemos para todos nós: sempre avançar contra o inimigo. Receita bélica seguida a risco pela arte: nenhuma coerência, descrédito total na estética ou na existência humana.
Mesmo que as guerras se mostrem como infortúnio essencial, o dilema central estará em como encará-las. A metáfora das duas torres refere-se a supurações que deveriam ser superações: visível e invisível, arte e realidade. O homem não está cuidando de si nem sofrendo novos ataques. Apenas rebentam feridas mal curadas.



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Valdir Rocha
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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