quinta-feira, 28 de abril de 2016

EDITORIAIS | Agosto e Setembro de 2000


Editorial ARC # 2/3 - Setembro de 2000

Por volta de 1970, pessoas qualificadas, competentes, bons profissionais do ramo de comunicações, previam que a comercialização dos aparelhos para reprodução de vídeos e a difusão das respectivas fitas colocariam em cheque as grandes redes de TV. Em vez de assistirem a um programa, entre meia dúzia de alternativas, as pessoas logo teriam uma infinidade de escolhas possíveis em matéria de filmes e outras modalidades de entretenimento audiovisual. Produção e exibição de filmes em cinemas, então, nem falar; nada sobraria, a não ser, quando muito, salas de projeção de vídeo.
Em meados da década de 80, a conversa era outra. O entusiasmo dos especialistas em tecnologias de comunicação voltava-se para as antenas parabólicas, especialmente as menores, que podiam ser instaladas dentro de casa, no lugar dos colossos que ocupavam um terreno inteiro ou o teto de grandes edifícios, desde que houvesse reforço das estruturas. Principalmente aquelas, portáteis, que podiam tanto receber quanto transmitir, convertendo cada pessoa, cada cidadão, em emissora particular de TV. Foram publicados artigos demonstrando que, na opção entre transmissão a cabo ou diretamente através de parabólicas, estas se revelavam mais práticas e viáveis, nem que fosse por não se precisar perfurar calçadas de rua para a instalação. Evidentemente, também era desenhado um cenário no qual não havia lugar para cinemas e grandes redes de emissoras de TV.
Dispensemos o exame de outras novidades em seu tempo, que logo a seguir se revelaram mostrengos de um futuro irreal, fugazes anacronismos, como o videoplayer. Deixemos de lado este autêntico ornitorrinco da futurologia, o crescimento do número das salas de cinema, sob forma de multiplex, provocando o renascimento de um entretenimento secular.
O último fracasso das previsões perfeitas de consequências das novas tecnologias de comunicação foi o vislumbre da grande conexão de tudo, via satélite: a super-rede usando celulares que desempenhariam o papel de unidades múltiplas de transmissão. Como se sabe, o modelo chegou a ser posto em prática; o satélite foi construído e lançado; contudo, custos adicionais e dificuldades técnicas inesperadas obrigaram à revisão e interrupção do projeto, acarretando prejuízo a investidores.
Na verdade, todas essas previsões foram corretas, no sentido de serem logicamente perfeitas. Seu erro foi justamente este: nossa lógica é discursiva, linear; por isso, partindo de um cenário determinado, eram feitas projeções lineares para o futuro, repetindo ilusões positivistas através da aplicação de modelos mecanicistas, fundados no determinismo simples. Acontece que a história não avança linearmente. A realidade, principalmente aquela produzida pelo ser humano através do trabalho, é dinâmica. Corresponde a sistemas complexos, nos quais intervêm as mais inesperadas variáveis; algumas, de natureza qualitativa. Isso não significa que o futuro seja inexplicável nem imprevisível. Apenas, no lugar do pensamento linear, determinista, aplicam-se a ele modelos complexos, como aqueles fundados na teoria do caos, na indeterminação, com a probabilidade substituindo a causalidade direta.
Estas observações vêm a propósito da questão das publicações eletrônicas versus publicações sobre papel, e, por consequência, do destino, da sorte futura de Agulha Revista de Cultura. Pode ser que mesmo um prognóstico de alguém como Bill Gates, um dos responsáveis por mudanças qualitativas nos cenários relacionados às tecnologias da comunicação, venha a revelar-se uma falácia determinista. Como se sabe, para Gates, a substituição do livro-papel (e, por consequência, dos periódicos) pelo livro eletrônico levará menos de uma geração. Acontecerá entre 2.010 e 2.020.
Ninguém, aqui, nesta redação virtual, é bibliófilo radical. Há argumentos fortes em favor da publicação eletrônica. Um deles, o custo menor, uma vez difundidas as telas planas para leitura do e-book. Há, ainda, um custo adicional do livro-papel, nem sempre contabilizado, que deverá pesar em favor de e-rockets e similares: aquele relacionado ao espaço que uma biblioteca requer e ao tempo gasto para organizá-la e conservá-la. Outro argumento é a maior facilidade de acesso à informação. Associado a ele, a possibilidade da publicação eletrônica funcionar como hipertexto, onde cada leitura remete a outras. E as publicações periódicas permitem acumulação virtualmente infinita. Cada nova edição jamais elimina a anterior: todas se somam e nada é descartável, conforme pode ser constatado através desta oferta de artigos de edições anteriores de Agulha Revista de Cultura, para quem não teve acesso a elas.
Em favor do livro no suporte tradicional, a possibilidade aberta pela publicação on demand, ou, no ainda vernáculo, para pronta-entrega, por encomenda, eletrônica, mas que também pode ser impressa. A tecnologia já disponível deverá baratear o livro, tornando-o mais acessível. Quem compra um livro no sistema convencional de produção, na verdade não está pagando por aquele exemplar, mas pela tiragem toda: no preço de capa de seu volume, vem embutido o custo do estoque, do armazenamento, do encalhe daquela edição ou de outras da mesma editora, enfim, uma taxa de risco que deixa de existir na produção por encomenda.
A quantidade crescente de mensagens recebidas por Agulha Revista de Cultura, comprovando a expansão de seu público leitor, demonstra a efetividade do veículo eletrônico. Mostra, novamente, que não se deve temer a densidade; que eletrônico e banal jamais terão que ser sinônimos. Isso não significa que esteja eliminada a publicação em papel. Poderá ocorrer, mais cedo ou mais tarde, através de tiragens ou por encomenda. Todas as possibilidades nos favorecem, pois não descartamos nenhuma. Ninguém, aqui, é viciado exclusivamente em Internet. Nosso vício é a cultura, a literatura de qualidade. Por isso, tudo pode acontecer. Aguardem. Certamente, voltaremos ao assunto.


Editorial ARC # 6 - Agosto de 2000

Fim da crítica literária e de artes. Fim do valor literário, da literatura de qualidade no mundo midiático e globalizado. Fim do livro. Fim da poesia. Apocalipses deste final de milênio, tomando o lugar do fim do mundo anunciado para o ano 1.000 da nossa era Mallarmé havia comentado que o mundo terminaria em um belo livro. Talvez nas duas ocasiões, nas duas passagens de milênio, em 1000 e 2000, se estivesse e se esteja anunciando a mesma coisa, uma crise no plano simbólico, afetando as representações do mundo. Como, nos últimos quinhentos anos, o livro se tornou o principal meio de registro e transmissão da matéria simbólica, faz sentido desta vez o Apocalipse incidir sobre ele, ou afetá-lo diretamente. 
O século XX já foi, todo ele, um final de milênio. Daí que, desde seu início, viesse sendo anunciado o fim do livro, sucessivamente engolido pelo cinema, pela TV, pela Internet. E, ultimamente, pela globalização da economia, conforme os dossiês que têm sido publicados sobre a mudança na composição de capital das editoras, absorvidas por complexos de comunicação. Por exemplo, no Nouvel Observateur da última semana de março, a análise das consequências da aquisição da Harper & Collins, americana, pelo grupo Bertelsmann, alemão, esvaziando complemente a editora. A regra do jogo, nesse e em outros casos, é a seguinte: a editora tem que atingir uma margem de lucro de 15%, a qualquer preço, em prejuízo da qualidade. Para tal, programação editorial só de banalidades, best-sellers e livros de interesse geral. E, se não cumprir essa meta, fecha-se a editora, ou passa-se para a frente. 
O Apocalipse do valor e da alta literatura vem sendo examinado pela ensaísta Leila Perrone-Moisés, entre outros lugares em seu livro Altas Literaturas(Companhia das Letras, 1998) e em um artigo recente no suplemento Mais, do jornal Folha de São Paulo. É associado a mudanças de orientação da crítica e do ensino de Letras pela ascensão das tendências culturalistas, pós-modernas, que estudam Literatura como um campo das comunicações sociais e dos estudos da cultura, no sentido dado ao termo pela Antropologia. 
Quanto ao fim da poesia, basta lembrar que, a propósito da morte de João Cabral de Mello Neto, uma verdadeira coorte de comentaristas e jornalistas de páginas de variedades e cultura proclamou que não havia mais nenhum poeta de grande estatura no Brasil. 
Apocalipses contêm a perspectiva de uma ressurreição ou de um renascer das cinzas. É esse o sentido de uma matéria recente na revista Veja, anunciando a volta da crítica, pois a revista passaria, novamente, a ter alguém (quem...?) respondendo pelo registro regular de livros. 
O diagnóstico de crise do valor e da literatura, provocada por culturalistas pós-modernos, é uma discussão acadêmica que ultrapassa e extrapola seus limites. Confunde o mundo com uma sala de aula, vê o mercado editorial como extensão de departamentos universitários, troca o lugar da infra e superestrutura, entendendo que os currículos e conteúdos de aulas são determinantes, e não um reflexo do que se passa na sociedade. 
Quanto à crítica, deixou de haver, ou de renovar-se, unicamente por responsabilidade dos grandes jornais e revistas. Quinze ou vinte anos atrás, convocavam um elenco de colaboradores de primeira linha para se ocupar disso. Achando que a ampliação de escala, o aumento de tiragem e leitores de suas publicações os obrigava a um aumento equivalente de banalidade, esvaziaram o setor. Foram eles mesmos que transformaram páginas de resenhas em simples transcrições de releases, ou em lugar para algum mestrando ou doutorando mostrar ao orientador e aos colegas que fez a lição de casa. 
Diversidade e qualidade são determinantes do crescimento de editoras. Por isso, a cada editora que se burocratizar, absorvida por algum complexo de comunicações, surgirá outra, ocupando o espaço abandonado pelo ex-concorrente. E, na hora em que as principais mediações, ensino e crítica, recuperarem um mínimo de qualidade, o mercado editorial voltará a florescer. Surpresos, jornalistas e professores constatarão um inesperado e inexplicável boom da alta literatura, da poesia de qualidade. 
Aparentemente alheias a seu próprio fim, desconhecendo o terreno arrasado e salgado em que estariam pisando, cresce a quantidade de revistas literárias no Brasil. Ao menos no Rio de Janeiro e São Paulo, sessões de leitura de poesia proliferam. Oficinas literárias têm filas de espera de inscritos. Sites literários e revistas eletrônicas registram milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares de acessos. Incompetência de alguns editores de páginas culturais na grande imprensa, queda de prestígio de teorias literárias e paradigmas cujo alcance havia sido inflado, erros de programação editorial, ajustes de mercados na área de comunicação - nada disso deve ser confundido com o Apocalipse. O fim do mundo certamente acontecerá, mas ainda vai demorar um pouco. 
Eternos sobreviventes, prosseguiremos.



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado | Valdir Rocha
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

S1 | PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
S2 | VIAGENS DO SURREALISMO
S3 | O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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