quarta-feira, 4 de maio de 2016

JOSÉ CARLOS ARAÚJO JR | As ideias que dançam: o teatro de Artaud e a dança Butoh


O equilíbrio de uma linguagem verbal e sua significação é incapaz de transmitir aos sentidos a vertigem obscura e vigorosa de um corpo que dança. A fixidez, a impotência e o peso da palavra paralisam os movimentos e silenciam os gestos. Já o dançarino salta os limites do verbo, e se lança no fluxo vital de constante mudança. Ele tem os ouvidos nos pés em contato com a terra, que contagia e faz vibrar o corpo todo. A dança vai abalar a inércia imposta pelas palavras e romper com a linguagem do verbo. É o gesto que foge ao alcance das sílabas da razão.
A arte e a literatura moderna vão buscar esse rompimento com o império da palavra. Antonin Artaud (1896-1948), numa tentativa radical e dilacerante experimentou uma linguagem para além da fala articulada. No seu horizonte estava a ideia que dança. Esse pensamento que vibra em seu teatro alquímico terá ressonância no oriente. A dança japonesa Butoh, na década de 60, vai ser afetada pelos ensinamentos e inquietações do criador do Teatro da Crueldade. Num dos textos do livro O Teatro e seu Duplo, Artaud faz uma reflexão comparativa entre o teatro ocidental e o teatro oriental. Enquanto naquele o texto e o diálogo predominam, neste há uma expansão experimental física e corpórea, onde a precisão da palavra é prescindível, dando lugar a uma ideia sísmica que desloca-se com o corpo.
Ideogramas animados encantam e abalam através de signos, uma ideia plástica de fissuras que cintilam e sugerem o contato direto com o desconhecido e o abissal. A linguagem cifrada e elástica atinge os espaços inimagináveis do pensamento e do espírito, e para além deles. Num teatro subordinado à palavra tem-se um jogo psicológico cotidiano envolvido, um enredo que deposita todo seu peso sobre a inércia experimental da plateia. Artaud pensa para além da psicologia no teatro e deseja a cena envolvendo o público numa atmosfera pelo avesso, vertigem crescente, semelhante ao transe xamânico. Obcecado por essa ideia de esquecimento de si e pelo processo de desindividualização ele parte, em 1936, para o México, disposto a estudar a cultura pré-colombiana e a participar do culto do peiote, junto aos índios Taraumaras.
Na dança do peiote, o Rito é executado num círculo. Ali, o delírio da planta jorra para fora do corpo através do frenesi dos movimentos. Labaredas, como línguas de fogo, agitam as sombras dos corpos em transe. Vibra a terra calcada pelos pés nus dos Taraumaras. Faz-se o contato violento com o universo e com o imemorial através do rito. Convulsão dos pés, delírio dos músculos, contração das vísceras, escarro do peiote nas covas abertas no chão. Força que jorra o vômito da planta de volta à terra.
É com os Taraumaras que vive um ritual de rompimento com a palavra. O verbo é o fardo, a ausência de leveza, que torna o corpo incapaz de dançar. Pode-se estabelecer certas correspondências entre essa experiência xâmanica e o teatro oriental. Nessas expressões do corpo e da terra a pluralidade de sentidos se impõe sobre a relação de causa e efeito. Há uma explosão do significado, não existe o entendimento único, absoluto, verdadeiro. "No teatro oriental – reconhece Artaud – as formas apoderam-se de seu sentido e de suas significações em todos os planos possíveis; ou, se quisermos, suas consequências vibratórias não são tiradas num único plano, mas em todos os planos do espírito ao mesmo tempo". Artaud deseja uma encenação sob um ângulo de magia e de bruxaria, uma poesia intensa no espaço: "(…) o autor que usa exclusivamente palavras escritas não tem o que fazer e deve ceder o lugar a especialistas dessa bruxaria objetiva e animada". Poesia xamânica que desemboca nos Taraumaras e no Oriente.
Dançarinos japoneses do Butoh vão enveredar por caminhos bem próximos da poética de Artaud. Como afirma Tatsumi Hijikata, um dos principais criadores da dança moderna japonesa: "As origens do Butoh estão em uma terra selvagem habitada por espíritos elementares que a mente racional não pode alcançar." Elaborado por Hijikata, o termo era Ankoku Butoh. Ankoku: trevas, obscuridade; Bu: ideia de evocação das danças xamânicas, o vapor do transe que exala o movimento vibratório, a entrada no sobrenatural; Toh: ato de pisotear e golpear a terra, abalar e sacudir o mundo, atraindo para si as forças da terra, convergindo sob as plantas dos pés. A evocação dos saberes obscuros à razão, a aliança com as forças da terra, o transe, o rito são elos que reforçam os laços entre os indígenas mexicanos, o teatro artaudiano e a dança japonesa.
Nos anos 60, ainda com as cicatrizes abertas pela derrota na guerra, os artistas japoneses vão repensar a sabedoria da tradição. Leram os autores malditos do ocidente, Sade, Jean Genet, Lautréamont, inspiravam-se no Dadá, no Surrealismo, no expressionismo alemão, buscando pensar o impensável e expressar o que não tem expressão. As aproximações entre escritores considerados malditos e as ideias da dança Butoh resultaram em encenações. Em 1984, Hijikata coreografou para Min TanakaRen-ai Butoh-ha Teiso: Foundation of Dance of Love, ao som da peça radiofônica Para acabar de vez com o juízo de Deus, escrita por Artaud, que inclusive alude aos Taraumaras em determinadas partes do texto. Em 1960, foi encenada Notre-Dame des Fleurs, de Jean Genet.
Assim, como Artaud vê nos Taraumaras um povo cuja terra "(…) está cheia de sinais, formas, efígies da Natureza que de forma alguma parecem nascidos do acaso (…)", a dança Butoh é repleta de signos, mitos e metáforas. Hijikata preocupava-se com movimentos que brotassem naturalmente do corpo. Não a mímica exata da flor ou do vento, mas, antes, que emergissem diretamente do corpo, não pedindo licença para nascer, para vir à superfície. Assim ensinava outro mestre do Butoh, Kazuo Ohno. O corpo da galinha decapitada que salta e se debate mesmo após a morte; músculos tensos em espasmos de expressão. Eis um gesto que grita em silêncio, que sopra pelos poros do corpo a ideia da dança Butoh. Mais do que técnica, o risco e o improviso.







 A Androginia
É possível imaginar a androginia como um outro ponto de confluência entre o teatro de Artaud e a dança Butoh. As polaridades, as oposições, os contrários reúnem-se num só corpo. A força centrípeta que age no interior do corpo que dança – embaralhando as polaridades – faz explodir a arte em movimento. Ambiguidade que se multiplica em esgares, numa miríade expressiva. Poeta-dançarino cuja paisagem interior escorre por fora do corpo.
Kazuo Ohno explora as faces do ambíguo, fazendo com que os disparates se reconheçam. A ideia de despolarizar-se está no centro da estética do Butoh, vivido por Ohno, como comenta a pesquisadora Maura Baiocchi: "(…) Suas ‘self-personagens’ são atemporais e despolarizadas. Sintetizam de uma só vez a criança e o velho, o elemento masculino e o feminino, a treva e a luz, dor e prazer, o feio e o belo, vida e morte". Só através dessa ligação de ideias antípodas é que se torna possível adentrar na pluralidade dos sentidos, exercício do "sair-de-si". O corpo sensorial pode então embrenhar-se no oculto e perder a identidade nas múltiplas possibilidades que excitam a própria ideia de loucura. Neutro ativo numa fuga de si mesmo, o mais longe possível do eu narcísico, pois a cada salto nômade despersonaliza-se e deixa para trás mais um pedaço de auto-reconhecimento. Estratégia andrógina, a unidade-plural explode em unívoco. Testículo e Ovário, Androceu e Gineceu se autofecundam, engravidando o próprio corpo de gesto artístico, de estética imprecisa.
Forças opostas chocam-se numa unidade também na obra de Artaud, mais claramente em três de seus escritos. Primeiro em Heliogábalo, livro em que ele narra a história de um imperador de origem síria que rompe com os costumes de Roma. Heliogábalo introduziu o culto monoteísta de Elagabalus, o deus-Sol que elimina as contradições. Homem e Mulher estão reunidos neste imperador adolescente que, através da anarquia, lança sua poesia desconexa na moralidade romana.
Já no texto "Um atletismo afetivo", de O Teatro e seu Duplo, Artaud baseia-se em teorias da Cabala para elaborar uma técnica de respiração dividida em seis modalidades. Os princípios utilizados são o Macho (Expansivo-Positivo), a Fêmea (Atrativo-Negativo) e o Andrógino (Equilibrado-Neutro). Através da combinação e treinamento dessas formas de respiração, penetrar-se-á no sentimento, alimentando a vida com um atletismo do corpo e da alma. Combinação simultânea entre o vigor transpirante do Atleta e a força implosiva do Ator, músculo do espírito, coração que pulsa em atividade. Nos Taraumaras, a androginia é entendida como energia no interior de sua raça. O equilíbrio Macho/Fêmea da Natureza na filosofia tarahumara é simbolizada nas faixas de cor branca (masculino) e vermelha (feminino). Ora usam uma cor, ora outra, significando o equilíbrio dessas duas forças opostas.
A identidade é apenas momentânea nesse lançar-se no abismo da multiplicidade que reside no ser. O florescimento da arte faz-se no acirramento das contradições suportadas no corpo e no espírito, na diluição da fronteira que impede o contato direto entre dois extremos. Diluição das fronteiras, não dos opostos, extinguindo-se na unidade. Pois a ambiguidade conserva, num só corpo, a permanência da guerra plural. Neste sentido, não há uma síntese pacífica de um conflito gerado, mas sim um equilíbrio-desequilibrante que incita o corpo a tornar-se a própria dança espontânea. Terra e água, contrários se chocam e vertem a lama devorada pela raiz hermafrodita do peiote. É o Barro onde nasce a dança de Hijikata e onde os Taraumaras afundam os calcanhares com vigor.
Encontro de duas naturezas, portanto, a androginia despolariza-se na singularidade, ao mesmo tempo que mantém suas facetas divergentes. Aspecto ambíguo que agride a intenção de territorializar, pois flutua insondável. Neutro que não é inativo, mas força que afirma, que escapa às definições através do anonimato e transgride os limites dos contrários. Corpo andrógino que dança e blasfema.
Veredas sem rastros do rompimento da linguagem através dos movimentos do poeta-dançarino. A experimentação e o exercício alquímico de uma expressão ativa, ardente e xamânica em Artaud, passa pelo "corpo-morto" do Butoh. Vida e Morte alimentam-se mutuamente, modelando a argila que dá forma ao gesto.



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Salvador Dalí
Agradecimentos a Hernán Alejandro Isnardi
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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