terça-feira, 19 de julho de 2016

FLORIANO MARTINS | O pincel com asas de Ivald Granato


Um dos maiores orgulhos que tive em minha atividade de organizador de livros foi a de propiciar ao leitor brasileiro um mínimo convívio com a poesia deste excelente poeta português que é Armando Silva Carvalho (1938). Refiro-me a Armas brancas e outros poemas, que em 2006 organizei e prefaciei para a coleção Ponte Velha, da Escrituras Editora, coleção então sob a minha coordenação geral. O livro trazia na capa uma obra de Ivald Granato e reproduzia em seu interior nada menos do que 30 obras deste imenso artista, fruto de sua generosidade, de sua doação completa, de sua cumplicidade sempre renovada. Assustei-me há pouco com a notícia de sua morte. Dias antes havíamos nos falado, por ocasião de meu aniversário. Conheci Ivald Granato graças a Jacob Klintowitz, no momento em que este acabara de publicar Gesture and art, delicioso volume com 350 páginas de estudos e reproduções de obras do próprio Granato. Neste mesmo ano o tivemos como artista convidado da edição # 50 da primeira fase da Agulha Revista de Cultura, acompanhado de um ensaio de Klintowitz. E em seguida o suplemento DC Ilustrado, do Diário de Cuiabá, publicou uma entrevista que lhe fiz. Sempre tive uma declarada antipatia por homenagens a defuntos recentes, gesto que em geral sempre me parece expressar um indiscreto charme do oportunismo. Raramente abro alguma exceção, e aqui está um desses exemplos incomuns, posto que reproduzimos a entrevista acima referida, como forma de reconhecimento pela grandeza da obra de Ivald Granato (1949-2016). Abraxas

Ivald Granato é o melhor artista que o mundo pop deu ao Brasil. Evidente que para ele não importa essa condição de “o melhor”, tanto quanto importa ao pop. Granato recorreu a todos os truques do mundo pop e por suas veias conduziu a primazia de uma pintura que soube rapidamente ir além do pop. O artista não comporta comparações entre os grandes nomes do pop em todo o mundo, pois cada um de seus artistas é fruto de uma sociologia distinta. Importa saber que Ivald Granato deixou longe, minúsculo, quase invisível no retrovisor, o restante do mundo pop no Brasil. Com a intrigante performance de seus pincéis, infinitamente além do bailado gestual dos truques de palco e do circo autopromocional do mundo pop, a pintura de Granato hoje constitui uma obra refinada e de intensa consistência estética. No Brasil da Discoteca do Chacrinha, a pintura de Ivald Granato é uma avis rara, em todos os sentidos. Este diálogo com o artista reflete sua sinceridade. É uma breve partitura incendiária para os leitores do DC Ilustrado.

FM | Em meio a todos esses personagens que saltam frenéticos da ponta de teu pincel, como se invadissem o salão de uma gafieira, e que ali se mesclam a tantos outros encarnados pelo próprio pintor, talvez não esteja de mais indagar quem é Ivald Granato. Ou melhor: qual Ivald Granato se sobressai em meio a todos eles? 

IG | Sempre fui plural, gosto da diversificação, o lado simples da vida e meio sem graça. O fato de variar é dinâmico e fica sempre atuante colaborar com o processo de viver. 

FM | Mas no meio da multidão o Granato se reconhece em alguém em especial? 

IG | Sim, tenho um pouco de muitos, mas tenho muito de poucos. 

FM | Recordo uma exposição tua, Dorsaymomaqui (1994), que a imprensa abordava como sendo uma evocação de outros artistas, como Picasso ou Gauguin. Já o Jacob Klintowitz, em ensaio com que abre livro dedicado a ti, observa que a tua maneira “de construir a figura, através das relações dos volumes internos, tem o seu exemplo máximo na obra emblemática de Paul Cézanne”. Há algum destaque, não necessariamente na pintura, alguém em particular que tenha importância essencial para ti, alguém que talvez até aqui a crítica nem tenha percebido, em parte por limitar a vida de um pintor ao universo da pintura? 

IG | Dorsaymomaqui foi extremamente experimental e ambicioso, pois fazer um relato da história da arte sem sobrepor a fotografia na base do olhar foi excitante, forte e desafiador. Achei essa experiência formidável, deitei e rolei, foi compulsivo e muito alto astral. Não foi a primeira vez que fiz coisas assim nas pastas, pintei retratos e estilos de todos, foi muito rica essa forma de trabalho. 

FM | Então o Granato não se reconhece na pintura de alguém? Não digo necessariamente uma influência, porém uma afinidade. Isto me interessa mais. 

IG | Com certeza tenho afinidades: Rembrant = Picasso = Lautrec = Cézanne = Matisse = Bacon = Basilit = Granato. 

FM | Exposições, fases, detalhes de traços, vultos, cores – por detrás do estilo em si, seus truques, jogos de aparência, evoluções, qual obsessão permanece ao longo desses anos todos de pintura? 

IG | Organização-desenho-pintura-performance-liberdade e independência. 

FM | Gêneros artísticos – a performance, por exemplo – se desgastam com o tempo ou com o excesso de sua utilização, sua banalização? 

IG | A performance, das tendências dos últimos quarenta anos, foi a que mais se renovou e correu paralelo à pintura. Desgastante foi o conceito de instalação e a apropriação de obras sem participação do artista, estes sim, são conceitos que ficaram banais. 

FM | Um dos riscos da ruptura com o mito é o de criar, com essa ruptura, a figura de um novo mito. Granato rompe com o mito da arte pop, por exemplo, mas com isto evoca um mito Granato. Sinuca de bico sempre? 

IG | Sempre convivi com a ruptura. Não me atrai o estático. Ruptura é processo de vida. Não o que fazem na arte, essa de romper e depois ficar fazendo o que chamou de ruptura anos e anos. 

FM | Performance, arte gestual, expressionismo, no fundo sempre me pareceu que o Granato tem em mãos uma guitarra elétrica disfarçada de pincel, que és em essência um roqueiro, sem que isto signifique uma frustração, mas antes um deslocamento de retina (inclusive a do observador), como quem tem a alma em um ambiente e o corpo em outro, não por estar perdido de si, mas antes, como estratégia ou golpe ilusionista. Acerto? 

IG | Sempre gostei de música. Na minha infância a minha irmã tocava piano e meu irmão bateria. Sempre fui amigo da música, porém tudo o que se refere ao material de produção para expressar arte, como pincel, tintas, lápis, canetas, papel, tudo isso sempre foi a minha maior paixão. 

FM | Aqui eu pensava muito em uma frase do Jacob Klintowitz, ao dizer que “o caminho brasileiro em direção a uma cultura de massa tem na sua obra uma linha de tempo que pode servir de paradigma”. Até poderia referir-me àquele teu encontro com o Ron Wood, por exemplo, onde os pincéis mais pareciam duas guitarras, emblemáticos da cultura pop. 

IG | Sim, foi uma atividade supernova e grandiosa, o Ron Wood é fantástico. Ele também fez Belas Artes. 





FM | Diante da máxima aceita por muitos de que o artista é fruto de seu tempo, cabe indagar: onde está o artista hoje? 

IG | O conceito abriu uma grande janela na arte, o que foi muito saudável nos últimos tempos. Depois resolveram trocar o glamour, a criatividade e a sabedoria pela punheta, todos querem ser paquerados como se fossem uma mocinha com 17 anos. 

FM | Diante disto o que sobra atualmente como arte? 

IG | A arte continua Bela: Sofisticada: Desafiadora. O meio é que ficou lamentável. 

FM | Já em 1979 observavas, acerca dos críticos de arte no Brasil, que “na maioria quase total só sabem falar sobre bom e ruim, sem capacidade de análise, mostrando uma imaturidade e uma sensação de pouca evolução”. Desde então decaiu muito o ambiente jornalístico, alcançando uma alta voltagem de superficialidade na leitura dos acontecimentos culturais do país. A crítica de artes seguiu a mesma trilha ou acaso algo em especial te surpreende nos últimos tempos? 

IG | A crítica sumiu, foi decapitada, a superficialidade ficou clara e nasceu a Curadoria, que não exerce o seu papel, nasceu um tipo cínico-obediente repleto de trapaças. O jornalismo da arte não caiu: despencou. Alguns críticos que estudam e sabem observar não têm espaço. A surpresa e a falsidade ideológica estão sempre presentes. 

FM | Como está o gás existencial, querido? O que o Ivald Granato ainda espera de si mesmo? 

IG | Acredito nas mudanças. Como tudo mudou muitas vezes não tem como não mudar novamente. Estou convicto que fazer arte livre ainda é espetacular.

FM | Esquecemos algo? 

IG | Creio que falamos o essencial. Estou à disposição. 



*****



Página ilustrada com obras de Ivald Granato (Brasil, 1949-2016).

*****

Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 19 | Agosto de 2016
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80








Nenhum comentário:

Postar um comentário