quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

LEDA CINTRA CASTELLAN | Brasil dos livros esquecidos


Muitas vezes, ao me aproximar de um livro, me lembro do filme Um dia, um gato. Filme antigo, mas quem o assistiu vai compreender: o felino se apoderava de óculos e o mundo mudava através de suas lentes azuis; assim, quando abrimos e lemos um livro, novos horizontes se abrem, nos permitindo ter visões diferentes sobre qualquer assunto, porque livros nos levam à outra frase, também antiga, mas sempre válida: “Depois de olhar para o outro lado do muro, ninguém continua igual”.
Talvez por esse desejo de ir mais longe, ver novos horizontes, sempre estive perto dos livros.
Livros escolares, Faculdade de Letras da USP, Mestrado lá fora e sempre livros; por gosto pela literatura, escolhi os livros de ficção, romances, contos, crônicas e também, e por que não?, a poesia nossa de cada dia!
No final da década de 1970, a volta para o Brasil me apresentou uma Universidade então esvaziada. Mas o caminho estava traçado e enveredei por outras vertentes desse caminho – traduções, críticas e resenhas em jornais e revistas, por um longo período de muitos anos, quando revistas como a Veja dedicavam páginas inteiras para as resenhas de livros, havia editorias de livros em revistas como a Isto É, revistas especializadas como a Leia Livros, mantida pela Editora Brasiliense, enquanto a Folha Ilustrada brilhava com seu Caderno de Cultura… Livros, livros, resenhas e mais livros e o JT – Jornal da Tarde era o jornal mais bonito do Brasil e, além de tudo, um jornal bem feito, dizíamos nós que o fazíamos e os leitores aprovavam.
Tempo em que O Globo e o Jornal do Brasil davam espaço para furos de reportagem e notícias culturais e de livros e no JT abríamos páginas centrais para falar dos livros de Simone de Beauvoir e Sartre e discutíamos o mais recente livro publicado de Roland Barthes.
Mas o país tem pressa, crises, pouca memória, tempo é dinheiro e os espaços para essas atividades vão diminuindo na imprensa. Em 1998, chegou a hora de voltar para a Academia na coordenação de um grupo que, ainda hoje, me parece muito bacana – discutíamos, levando grandes nomes da Letras, os autores que seriam pedidos no vestibular. Assim, passaram pelo auditório da Universidade de Mogi das Cruzes, capitaneada pelo Professor Dr. Leão Lobo, recém-saído da Reitoria da USP, nomes como Benjamim Abdalla Jr., Antonio Medina, Ivan Teixeira, Fábio Lucas, Silvio Fiorani, Ignácio de Loyola Brandão, Olga Savary e Dora Ferreira da Silva, a magnífica tradutora de Rilke, para discutir nossa literatura com alunos de cursinho.





 Faríamos, era a promessa, daquela a melhor universidade de São Paulo do ano 2000, mas no ano de 1999, ano seguinte ao do início desse curso, o curso desapareceu sob as regras nunca aprendidas na Universidade, do preço alto, não valia tanto gasto com nossa literatura; afinal, como diziam os jornais, que fechavam suas editorias culturais, livros não vendem jornais, nem trazem publicidade.
Ainda uma vez, hora de repensar. Trabalho em algumas editoras e coordeno a criação do selo Amarílis na Editora Manole. Tempos bons, de muitos desafios, mas uma crise, a de 2008 torna difícil a continuação nesse projeto e mais uma vez, impulsionada pela Literatura, crio a LRC, minha agência literária. Trabalho apaixonante, grandes desafios, conhecer autores, ler livros, falar com editores, inserir os livros nas diversas editoras; grandes nomes passam por aqui, autores com sua excelência, livros de rara beleza e qualidade e, também, autores inéditos ou quase, que a agência consegue inserir em editoras, formando novos nomes, alguns hoje consagrados no mercado editorial brasileiro.
Mas, como diziam os antigos, a vida dá voltas, os desafios estão aí para serem aceitos e, num país de literatura tão rica como o Brasil, que já nos deu escritores como João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Adonias Filho, José Lins do Rego, Érico Veríssimo e tantos outros, onde estão Josué Guimarães, que escreveu o fabuloso Camilo Mortagua, ou Tabajara Ruas, que nos deixou seu romance O Amor de Pedro por João, ou Hermilo Borba Filho, com seu delicioso O General está Pintando, ou, ainda, como não lembrar que Paulo Emílio Salles Gomes por vezes abandonou as telas do cinema e, diante das letras, nos presenteou com As três Mulheres de 3 P? Por vezes, não há dúvida, recuperamos algum grande escritor como Manuel Antonio de Almeida e seu Memórias de um Sargento de Milícias e, por vezes, surge a lucidez de Joselia Aguiar, a homenagear Lima Barreto na próxima Flip. Mas onde está Marques Rebelo, com sua brilhante trilogia A Guerra está em Nós, verdadeiro retrato da sociedade carioca das primeiras décadas do século passado? Onde estão tantos outros grandes nomes da nossa literatura? O esquecimento parece cobri-los.
Impressões caras, leitores poucos, memória fraca ou nenhuma de um país sem memória e, em 2013, surge a Editora Cintra, uma casa de publicação apenas digital. Na Editora Cintra publicamos Geraldo Ferraz, que teve seu romance Doramundo, o amor pleno de incidências sociais entre Dora e Mundo, filmado por João Batista de Andrade, Patrícia Galvão, o ícone Pagu, da qual publicamos Parque Industrial, o primeiro romance proletário do Brasil que, depois dessa edição digital alçou mais uma vez voo, provando que a boa literatura não pode morrer e alcançou edições impressas na França, Croácia, México e, futuramente, Argentina, aumentando o percurso iniciado nos anos 1960 quando essa obra alcançou os EUA na brilhante tradução de K. David Jackson e Elizabeth Jackson.
Resgatamos também o teatro de Jorge Andrade, que nos conta parte da história paulista nas dez obras que nos deixou, colocando nas letras e nos palcos os personagens da época do café em São Paulo, mostrando-os de forma fria e objetiva, em textos em que a emoção deriva das próprias tramas e ações.
Publicamos ainda Esdras do Nascimento, único escritor brasileiro cuja obra, Variante Gotemburgo, foi aceita como sua tese de doutorado, ou Menalton Braff, premiado com um dos maiores prêmios da literatura mundial, o Portugal Telecom e contumaz finalista desse e de outros prêmios importantes como o Jabuti e o Sala São Paulo, ou a também muito premiada Roseana Murray, que nos ensina que a vida pode ser contada em poesia e tantos outros de igual e superior qualidade.
Essa é a maior possibilidade que nos proporciona a impressão digital, com o tremendo inconveniente de angariar ainda menos leitores do que os livros impressos, que já pagam por ter poucos leitores, o que faz da editora digital um projeto para um longínquo futuro.
E em 2015 a Editora Cintra dá seu grande giro. Se nós salvamos do esquecimento autores já consagrados, por que não tirar desse mesmo esquecimento autores de grande qualidade que permanecem inéditos por falta de visibilidade? É o círculo vicioso mais uma vez presente: o autor não é publicado porque é inédito e é inédito porque não é publicado. E, nessa possibilidade de inovar com a publicação digital, publicamos autores como Affonso de Barros que, em seu livro A Batalha, narra a conquista de sua Bahia de forma romanceada e rica, num texto em que revoluções, costumes e figuras do século XVIII estão presentes numa trama heróica e ao mesmo tempo poética nesse autor que faz da palavra escrita uma forma ampla de comunicação, ou Matheus Arcaro que, em contos densos, narra a história de uma humanidade que se procura em Violetas Velhas e Outras Flores.
Na inovação caminha a editora, mas como compreender o presente se não entendemos o passado? Então a Editora Cintra aposta mais uma vez buscando em nossos ancestrais indígenas das diversas etnias, os escritores e ilustradores que até a pouco ignorávamos e ainda estamos aprendendo a apreciar, quando narram suas lendas e histórias em palavras encantatórias como nas rodas que fazem aos finais de tarde nas aldeias para as crianças ouvirem essas histórias contadas pelos mais velhos.
Escritos antigos, contados por escritores mais recentes e ainda pouco conhecidos, embora alguns deles, como Yaguarê Yamã, que recebeu o prêmio White Ravens da Biblioteca de Munique, e Olívio Jekupê, já publicado na Itália, juntamente com outros grandes escritores premiados com o catálogo de Bolonha, sejam escritores de alentadas obras como Escritos Indígenas – uma antologia que a própria Editora Cintra publicou e disponibiliza, abrigada no sítio web da Amazon.com.br.
Mas nem só de queixas vive a literatura brasileira, nem suas editoras, já que pertencendo a esse continente americano, diretamente ligada a uma América Latina riquíssima de grandes nomes, fantásticos escritores, ainda nos reserva boas surpresas como a de ver nossa literatura indígena reconhecida em países como a Costa Rica que em número anterior de sua revista Matérika, através de entendimentos com o escritor Alfonso Peña, publicou esses Escritos Indígenas, uma antologia de vários escritores e ilustradores indígenas, e nos presenteia com a possibilidade de publicar desse mesmo Alfonso Peña o titulo Lábios Pintados de Azul que nos leva às profundezas da podridão humana, nos sombrios corredores do sub-mundo.
Pobre de marketing, caro num país de poucos leitores, ainda acredito que se possa romper o circulo – não se publica porque não há leitores e não há leitores porque não se publica –, neste país de pouca memória e política instável, ao invés de continuar repetindo o jargão dos Tristes Trópicos de Claude Lévy-Strauss.



*****

LEDA CINTRA CASTELLAN (Brasil, 1959). Agente literária e editora.Contato: leda.editoracintra@gmail.com. Página ilustrada com obras de Kenichi Kaneko (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.

*****

Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 22 | Dezembro de 2016
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80






Nenhum comentário:

Postar um comentário