segunda-feira, 3 de abril de 2017

JACOB KLINTOWITZ | Quantas vozes tem a humanidade?


Eu assisti os praticantes-artistas – muitos deles que pela primeira vez em suas vidas – se debruçarem sobre papéis ou telas, inventarem as suas imagens, moldarem as suas formas, escolherem cores, relações cromáticas, gestos expressivos. Pessoas intensamente concentradas na sua atividade, vibrantes com os resultados, conscientes de que para eles criar era essencial. E em todas estas ocasiões a minha vivência foi emocionante. Lá estavam aquelas pessoas, sentadas a uma mesa de uso coletivo, mexendo com pigmentos, pincéis, papeis, telas, colas, dando formas inusitadas aos seus sentimentos e às suas percepções.
E também assisti inúmeros artistas, maduros em sua linguagem ou iniciantes, tatearem, experimentarem, sentirem os materiais e criarem as suas formas. Artistas intensamente concentrados em sua atividade, vibrantes com os resultados, conscientes de que para eles criar era essencial. Artistas dando formas inusitadas aos seus sentimentos e às suas percepções.
E escutei e li centenas de depoimentos e grandes entrevistas de pintores, escritores, músicos, atores, cineastas, compositores, dançarinos, coreógrafos, sobre o processo de criação e o ato de criar, dar forma à suas percepções, tornar concretas a sua intuição. E também especularem sobre a natureza enigmática de suas intuições.
E o formidável desta verificação tão longa é que não vi ou percebi diferenças fundamentais no ato de criar ou na necessidade absoluta de dar forma a uma intuição sobre o mundo. Entre artistas reconhecidos como tais, alguns deles entre os maiores que a história da humanidade registrou, e pessoas com necessidade especiais, muitas delas com acentuadas dificuldades intelectuais ou físicas, a semelhança da experiência de inventar e dar forma à intuição ou percepção é grande.
Não falo em registrar a realidade, pois isto seria sem nexo, dada a complexidade da realidade e ao fato do nosso saber sobre ela ser limitado e se alterar permanentemente. E também à quase certeza de que o observador participa da realidade e, provavelmente, interfere nesta realidade. A realidade é, ao que se pode imaginar, a realidade segundo Fulano de Tal. Não registrar a realidade, portanto, mas criar um ente do espirito, formalizar a percepção, tornar real a intuição, criar uma forma que em si mesma seja o real. Não a realidade ou a totalidade da realidade, pois isto seria inimaginável, mas organizar uma verdade, tornar linguagem, articular uma forma que seja parte da realidade. O artista não cria a realidade, não registra a realidade, não interpreta a realidade, mas acrescenta ao mundo um novo ser. E quanto mais convicção ele tiver de si mesmo mais este novo ser terá identidade própria. Em tudo, o dado principal, o aspecto fundamental, é que não há opção entre ser ou não ser, pois a necessidade de criar é infinita, absoluta, visceral, determinante. Uma vez iniciado este processo ele não pode ser paralisado, interrompido, pois entre o nada e o recorte do universo o homem prefere o recorte.
Cada um de nós tem a sua própria voz e esta é igualmente a voz da humanidade. E cada um de nós é único, é múltiplo e é um universo.
Não somos idênticos uns aos outros. Ainda que eu goste de pensar que Shakespeare tem razão e que sejamos feitos da mesma matéria com que são feitos os sonhos. Seríamos todos feitos da mesma matéria. Somos este ser coletivo, de matéria onírica ou não. Mas cada um de nós é um universo. E cada um de nós é múltiplo. Somos feitos de camadas, densidades, memórias, imaginação, desejos, memórias seletivas, memórias inventadas, memórias da espécie e memórias étnicas. Às vezes, suspeitamos que a nossa vida seja o sonho de alguém. Ou o sonho da matéria. E, nós também, por nossa vez, sonhamos.
O poeta Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, ou um dos sonhos de Fernando Pessoa, nos ilumina.

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Como espécie, somos um só, mas somos tantos e somos tão vários e, em nós mesmos, somos múltiplos. Em cada um de nós talvez seja possível a arte. O que sabemos é que a arte bate onde quer. Os praticantes da arte, os novos praticantes da arte, os novos praticantes-artistas.
O século vinte e o século vinte e um (é uma simplificação cronológica), apresentam realizações e conquistas notáveis que nos encaminham a um novo conceito de real. E é a assimilação destes territórios conquistados que paulatinamente tem alterado a nossa existência cultural, social e cotidiana. O nosso conceito do que seja real se alterou definitivamente.
O reconhecimento do outro relativizou a convicção de que somos uma civilização única e superior às anteriores ou coevas. As civilizações que nos antecederam, e mesmo as coevas, mas diferentes da nossa, tem um corpo de saber, tem conquistas próprias e possuem saberes que podem contribuir para a melhoria ou a sobrevivência da nossa.  Esta consciência nos impôs responsabilidades e deveres. A alteridade aumentou a nossa noção de história e a nossa concepção da história humana. A arqueologia e a antropologia criaram a tendência dominante do nosso mundo.
Também a alteridade se estendeu até nós e o nosso autoconhecimento. Jean-Martin Charcot, Sigmund Freud e Gustav Jung, entre muitos outros, nos deixaram marcas indeléveis. A mais evidente é a nossa convicção da existência de um inconsciente individual e um inconsciente coletivo. O que significa que em nós existe um outro que não dominamos e que não obedece ao parâmetro da nossa lógica. E que, ao que consta, sabe muito mais do que o nosso consciente e se guia por leis mais complexas. É certo que ele não é cartesiano. Também a possibilidade de um inconsciente coletivo, que guarda a memória da espécie, que tem em si a memória das formas (gosto de pensar isto) nos possibilita o saber das eras. Podemos invocar este arquivo imemorial e ter acesso aos tesouros das formas, conceitos e sentimentos que são a estrutura da nossa espécie. Nem todos temos acesso a esses arquivos, mas todos poderemos ter. “Arquivos” é uma nominação imprecisa, eu sei, diante dessa magnitude, é apenas uma aproximação utilizando um termo comum à nossa época, mas ainda não sabemos como nominar quando o desenho e o contorno ainda não são determinantes.
Os artistas podem ter este acesso. Não todos, é claro. Mas aqueles que deixam fluir através de si estes ocultos acervos individual e coletivo. É claro que existem, ao menos, três maneiras de acessar esse universo oculto, mas onipresente. A primeira é por intermédio da sabedoria e do exercício pessoal. Como é, me parece, evidente que aconteceu com artistas como Paul Klee, Kasimir Malevich, Constantin Brancusi, Israel Pedrosa, Jean Arp, Jackson Pollock, Pablo Picasso, Alberto Giacometti, Alexander Calder, René Magritte, Salvador Dali, Marc Chagall, Mário Cravo Jr., Juan Miró, Eduard Munch, Robert Delaunay, para ficarmos cronologicamente nos mais próximos.
A segunda maneira é, seja por que circunstâncias forem, rebaixar o poder de controle do nosso juízo crítico e do nosso consciente que negam novas possibilidades de saber. Neste caso estes participantes-artistas tem naturalmente uma condição natural, uma vez que, genericamente, são considerados deficientes intelectuais. Eles têm menos resistência ao saber não codificado. Quem já recebeu o abraço de uma pessoa com Síndrome de Down sabe o calor, a sinceridade e o afeto que este abraço possui. Não existe a mediação do juízo crítico ao expressar o afeto. E ao fazer arte também não existe a mediação do juízo crítico.
A terceira via para acessar o inconsciente é por meio da vivência espiritual. Neste caso, inconsciente individual, inconsciente coletivo, recebem o nome de Arquivo Akashico e, ao que consta, contém também memórias e saber cósmicos. Aqui entramos numa área específica da humanidade, a da vivência mística e este assunto, ainda que correlacionado (e por isto relatado) à questão do acesso, não é objeto deste ensaio e deste livro, razão pela qual não é detalhado, mesmo que eu tenha esta tentação. Talvez em outro livro, em outro momento...     
A respeito deste acesso ao conhecimento não racional ou por via não racional, deve ser observado que em muitas civilizações o “louco” (resta saber o que era exatamente considerado louco) era um canal privilegiado da mensagem divina. Através da boca do louco Deus falava. O louco, por sua abertura para o fantástico,  portanto, tinha uma função oracular. O que não impedia oráculos famosos de serem exercidos por sacerdotisas altamente preparadas e desenvolvidas para a função, através de educação dos sentidos, vivência metafisica de experiência de morte e ressureição, alimentação especial, etc..
Não estamos equivalendo o que a antiguidade considerava “louco” e pessoas com necessidades especiais. Estamos apenas falando do acesso ao inconsciente ou, conforme a crença e os rituais de cada pessoa e civilização, à forças cósmicas e manifestações divinas. De resto, no Brasil, a obra extraordinária de Nise da Silveira ao tratar a esquizofrenia através da prática artística, eliminaria qualquer dúvida sobre a  impossível semelhança entre as duas situações. O que Nise da Silveira pretendia, em suas próprias palavras, era criar um canal de comunicação para pessoas, até então, incapazes desta relação. Apesar de combatida e negada pelos psiquiatras de sua época, a tese de Nise da Silveira se fez vitoriosa, foi uma experiência avaliada em vários lugares do mundo e, hoje, como paradigma, existe um acervo básico e consolidado que atende pelo nome de “Museu do Inconsciente” que já esteve exposto em importantes museus e instituições culturais. Experiência semelhante, ainda que com menos visibilidade, foi empreenda em São Paulo pelo psiquiatra Osório César.
O que é claro e ponto de convergência é a possibilidade de acesso ao rico universo inconsciente tendo como chave o exercício da arte. E fica clara, igualmente, a existência deste universo inconsciente, o que muitas pessoas têm relutância em aceitar. No caso, do trabalho artístico e do acesso ao inconsciente, o método utilizado com esquizofrênicos é o estímulo ao paciente para o seu mergulho individual. No caso das pessoas com deficiência intelectual é oferecido um modelo artístico, um modelo de linguagem estruturada, como estímulo e como possível releitura, segundo a idiossincrasia de cada um. Este tipo de atividade vem se somar às atividades de outros gêneros artísticos e atividades esportivas. O objetivo é sempre o do aumento da expressividade, da capacidade de expressão e de estimular o gregarismo.
O conceito de arte de nossa época, o seu contorno, é mais amplo. Atualmente se considera arte a expressão de outras civilizações que nos antecederam ou de civilizações, diferentes da nossa, mas coevas. Mesmo a arte totêmica, por muito tempo restrita à consideração sociológica da história das religiões, hoje faz parte do escaninho da arte. Também é considerada como forma artística a Arte Ingênua, produzida por artistas sem formação acadêmica, ignorando ou rejeitando regras de composição, desenho e cromatismos, e guiados pela pura sensibilidade. E a Arte Bruta, criada em boa parte por pessoas com distúrbios psicológicos. Como se pode ver, o contorno das expressões artísticas nesta pequena enumeração é vago. É da sua natureza imprecisa. Poderíamos aqui enumerar algumas dezenas de nomes e títulos de movimentos artísticos, mas acho que seria inútil, deste que o princípio tenha sido entendido.
Também o surrealismo se impôs como forma artística de alta significação, e não particularidade no leito principal da arte. O surrealismo que pretende o homem completo, isto é, realizando o seu trabalho utilizando também o fluxo inconsciente e onírico, tem a sua força principal oriunda, em minha opinião, do extraordinário esforço de sistematização da vida humana e contemporânea feito por Sigmund Freud. O surrealismo se apoia diretamente na aceitação do inconsciente.
O que percebemos nestas considerações é que a nossa época tem várias vozes diferentes e, ás vezes, divergentes, entre si. E que é o conjunto destas vozes que se organizam em uma forma convergente. Talvez o futuro tenha a visão clara desta tessitura. Vejo o trabalho artístico destes que se iniciam e que, temporariamente, chamamos de partipantes-artistas como parte desta tapeçaria cuja totalidade não se vê, mas vislumbramos.
O outro como parte de nós. O outro existente em nós. O universo que se desvenda e que, segundo alguns, pode ser determinado pelo olhar do observador. O olhar do observador faz parte do objeto contemplado. Também a arte é olhada segundo o equipamento de cada um. A arte segundo o olhar de quem vê.

O homem contém e possui muitas densidades e camadas. Em nós, neste ser que somos no tempo, vive a história da espécie e nesta história a construção do nosso psiquismo. O conhecimento desta construção ainda é incipiente, mas é uma das aventuras mais emocionantes que nos espera.
Nós somos simultâneos.
Nós estamos aqui e agora, mas estamos também lá e outrora.

(J. Klintowitz, in ensaio “A cerimônia do encontro”).

E neste conhecer, de que tanto falamos, destaquemos o coração, o entendimento pelo coração, uma maneira de tudo perceber, mas perceber em si mesmo como um livro inscrito pela mensagem cósmica, o ser como um livro escrito. O coração que entende e impede o horror, como dizia Clarice Lispector. O que aterroriza: o vazio do universo, a falta de resposta, a falta de pergunta, o tempo que nos devora. Talvez este entendimento via coração de que nos falava Lispector se chame amor.
A história dos conceitos nos séculos XX e XXI: alteridade, outras civilizações. Outras pessoas, desta vez, dentro das pessoas; inconsciente. Art Brut. Arte Ingênua. Arte primitiva. Surrealismo, o homem completo, luz e sombra, luz e escuridão, escrita automática. Dr. Sigmund Freud, Dr. Jean-Martin Charcot, Dr. Gustave Jung. O Museu do Inconsciente Nise da Silveira.. Esquizofrênicos. História das religiões e da mitologia, Mircea Eliade, Joseph Campbell, Junito de Souza Brandão.
Alguns, entre tantos outros, artistas contemporâneos que realizaram em si mesmo o ideal de universalização da forma e alteridade, o outro e eu. Henry Moore e a arte pré-colombiana. Jackson Pollock e a lição dos Xamãs indígenas americanos e a ideia do fluxo de energia. Vincent van Gogh e a autonomia da linguagem na gravura japonesa. Pablo Picasso que renovou a arte africana e a atualizou para os nossos olhos. Norberto Nicola e a arte plumária brasileira. Israel Pedrosa e a visão universal do circulo cromático e dos violáceos em lençóis estendidos ao sol. Marcel Duchamp, “Le grand Verré”, oito anos em busca das memórias ocultas. Karel Appel, e o retorno ao bárbaro humor infantil. Iberê Camargo e a recuperação do gesto libertador. Jean Arp e a arte rupestre e a esquimó. Joseph Beuys e a descoberta da sensação corporal. Ivald Granato e o corpo como instaurador da história. Alexander Calder e o sonho articulado no ar. Arthur Luiz Piza que considerou a parte como universo e o todo como cosmo. Henri Rosseau, o Douanier Rosseau (1844-1910), como símbolo, pois um artista ingênuo defendido por Pablo Picasso, Apollinaire, Georges Braque e companhia, e que abriu a alma contemporânea para a arte espontânea.
       E também Franz Kafka que tornou Piranesi verbo e nos indicou o labirinto onde vivemos. Jorge Luis Borges que com um punhado de areia alterou a composição do Saara e nos ensinou que a arte é o gesto do homem. E Jonathan Swift (1667-1745) que morreu louco e que escreveu, em 1725, “As viagens de Gulliver”, e nos tornou iguais, crianças e adultos. E “Falstaff”, criação extraordinária de Shakespeare, o falastrão de Henrique IV e Henrique V, símbolo dos homens tontos que somos, mas dignos de ocupar a boca de cena. E Roberto Louis Stevenson que, em 1883, inventou Long John Silver, cozinheiro-chefe da escuna em a “Ilha do Tesouro” o mais completo tratante sofista do mundo. Acho que filho de Falstaff que, por sua vez, é o pai do pai de Elisa Doolitle, a personagem de Pigmalião, de George Bernard Shaw que se encantou com a sua invenção do sofista e malandro.
E do amado Miguel de Cervantes que inventou D. Quixote de La Mancha, o delirante personagem intoxicado de leituras de cavalaria que, ao retornar ao bom senso, morre de tristeza. Cervantes e o louvor do delírio. E, por fim, o mestre da arte da nossa época, o português Fernando Pessoa que inventou os heterônimos, os poetas desdobrados do poeta, Pessoa que nos diz que podemos ser tudo o que inventarmos: eu sou muitos.



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JACOB KLINTOWITZ (Brasil, 1941). Crítico de artes, curador, ensaísta e narrador. Página ilustrada com obras de Ana Mendoza (Venezuela), artista convidada desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 26 | Abril de 2017
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Um comentário:

  1. Gostei muito do texto, abrangente e bom de ler. As análises e os contrapontos de sua habitual inteligência aguda e humana. Abraços. Angella Schilling

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