segunda-feira, 3 de abril de 2017

NICOLAU SAIÃO | A realidade do livro


No seu excelente ensaio de divulgação “O Homem e o Livro”, publicado pelo Prof. Bento de Jesus Caraça na saudosa “Biblioteca Cosmos”, conta-nos M. Iline que, na longa caminhada para os tempos modernos, o livro foi precedido pelo objecto simbólico e mesmo pelo próprio Homem – como aedo, como trovador, como livro vivo.
O volumezinho é extremamente curioso e merece toda a nossa boa atenção. A par de nos fornecer inúmeros dados interessantes, ameniza-se narrando-nos diversas histórias pitorescas como a do comerciante Itelius e os seus escravos-livros, e outras que não me cabe recordar aqui.
Habitantes que somos deste século tolhido e limitado por ilusões e artifícios, será talvez mais útil, por ora, tentar compreender quais os caminhos que o Homem tem defronte enquanto leitor e enquanto presença viva e raciocinante face aos homens que para ele escrevem, para ele publicam, distribuem e vendem – nem sempre correspondendo com eficácia e exemplaridade ao seu desejo de mais saber e mais esclarecimento, que o mesmo é dizer mais conhecimento e mais realidade.
Não entra no âmbito deste texto uma dissertação ampla sobre o problema dos chamados “mass-media”, os célebres meios de comunicação de massa, que vêm a ser: a rádio, a televisão e os jornais. Mas justifica-se, por razões óbvias, que mesmo ao de leve para ele chamemos a atenção do leitor, recordando que já de há muitos anos pensadores como Umberto Eco, Marshall Mac Luhan, Herbert Marcuse, Gérard Legrand, Roland Barthes e Fernando Savater, entre outros, nos andaram a alertar a consciência para o facto, perturbante, desses ”mass-media” procederem mais ou menos subtilmente a uma crescente esterilização do nosso espírito.
 Com efeito, caracteriza-se o tempo em que vivemos por uma presença obsidiante de imagens e de signos – na maior parte dos casos destituídos de valor – que arrastam verdadeiras obsessões e angústias por intermédio das quais se promove a inserção do Homem em modelos sociais uniformes e unidimensionais, visando claramente a sua inércia ante cripto-autoritarismos ainda que de fachada democrática. Assim sendo, é lícito perguntar-se: que papel pode o livro desempenhar na sociedade actual, que deve então ser o livro para o comum dos cidadãos?
A primeira potencialidade do livro é ser, duma maneira marcante e na contramão do que eles têm de imediatista e manipulatório, o anti-rádio, o anti-jornal, o anti-televisão. Será, evidentemente, outras coisas mais profundas, mas se antes de tudo não fôr isso será muito pouco.
Ficará mais explícita a anterior afirmação se nos detivermos por instantes no excerto de um artigo de análise de Claude Julien, vindo a lume no “Mundo Diplomático”, onde nos diz o conhecido publicista: “Porque recebe do mundo inteiro, a intervalos muito curtos, uma grande quantidade de notícias, o cidadão de uma sociedade industrializada pode julgar-se informado. Na realidade, é constantemente submergido por uma vaga de informações rápidas, efémeras, muitas vezes superficiais e desligadas do seu contexto histórico, cultural e económico – a ponto de os
factos, as palavras e as imagens frequentemente perderem o seu significado profundo. Limitados apenas aos meios de comunicação de massas, o Europeu e o Americano podem tomar conhecimento de um fastidioso volume de notícias discordantes sem, no entanto, adquirirem uma melhor compreensão da sociedade em que estão inseridos e da história de que são agentes”. [1]
As razões que assistem a Claude Julien são, quanto a mim, tão claras e evidentes que não necessitam de corroboração por meio de mais exemplos. Concluamos, sem nos demorarmos demasiado neste passo, que o livro – se moderadamente liberto duma soma de condicionalismos que entravam a sua difusão e a sua divulgação – é a forma mais eficiente, mais nobre e mais bela de impedir a verdadeira castração mental a que o homem do quotidiano, se mal se precata, está sujeito. O livro ampara-nos no acesso a um mundo mais real porque mais exacto. Ler um livro é sempre um acto de humana solidariedade que com frequência atinge níveis muito profundos. Se o artista, o escritor, desperta em nós sentimentos de consideração e de estima, isso deve-se ao facto de, no nosso íntimo, nós bem sabermos que o homem que escreve – e não que escrevinha – está ao nosso lado e ao lado dos que sofrem asdisfunções sociais e quotidianas e desejam mais pureza e mais verdade  prática.
  Embrenhando-se nos mundos criados pelo escritor autêntico (aquele que não escreve com intenções de crua propaganda ou de notoriedade malsã) o leitor recupera o seu estatuto de ser pensante e participante, de ser que aspira à inteira dignidade tantas vezes negada, com frieza ou cinismo, pela rotina social erigida em dogma por sectores particulares ou mesmo oficiais. É que ler livros, na verdade, ajuda-nos a ascender à comunicação com os outros e connosco, humaniza-nos verdadeiramente. É como que uma operação alquímica que no cadinho dos livros calcina e faz erguer a matéria nova e saudável, filha da luz dispersa nas frases, nas páginas, nas folhas, ajudando-nos a entender a Vida – pois que o saber de experiência feito só é valioso e autêntico se caldeado com o conhecimento intrínseco dos extensos e complicados (porque profundos) processos motores do Mundo.
 Humilde ou rico, simples ou de cuidada apresentação, vindo da prateleira elegante duma livraria moderna ou do obscuro escaparate de um qualquer alfarrabista, um livro é sempre uma presença fraternal, uma companhia inestimável na travessia das vastas florestas do hábito, dos pântanos desmesurados do dia-a-dia mecanizado.
A história do livro entrelaça-se intimamente, aliás, com a história do Homem. O livro tem sofrido a par com o Homem. A destruição de livros, que é um seguro indício da destruição de homens – atente-se nas depredações cometidas em bibliotecas durante guerras de invasão – diz-nos bem dos sentimentos e das razões bestiais dos poderosos autoritários ante a verdade potencial inerente aos livros. O califa Omar, que mandou destruir por fanatismo a Biblioteca de Alexandria com os seus milhares de livros raros, tem um émulo perfeito nesse nefando cardeal Ximenes que, aquando da conquista de Granada, condenou cinco mil livros valiosos a perecerem nas chamas. E que dizer dos autos-de-fé perpetrados publicamente pelos nazis contra livros de Heine,
Brecht, Arnim, Lichtenberg ou Stefan Zweig ou, nas caves da Lubianka para dar menos nas vistas da opinião pública internacional, pelos fascistas vermelhos contra obras de Mikail Bulgakov, Isaac Babel, Boris Pasternak ou Bruno Schulz? Ou a destruição efectivada, por agentes da Gestapo, dos manuscritos do grande poeta Saint-Pol Roux, que morreu de desgosto?
Os exemplos, infelizmente, poderiam multiplicar-se – e já não falamos das tentativas de marginalização e ocultação, levantando no mínimo dificuldades financeiras impeditivas – mesmo aqui e agora no nosso país tendencialmente democrático, em relação a autores desenquadrados ou que não se pautem pelas “obrigatoriedades” que o regime desejaria institucionalizar.
  É imenso o rol da hostilidade e até do ódio ao poder poético e salutar, portanto libertador, dos livros.
Ao encerrar esta digressão, que desejei comunicativa, resta-me pedir aos que me estiveram seguindo com menor ou maior atenção: leiam. Há tanta coisa maravilhosa para descobrir ou para saber!
Um livro pode eventualmente inquietar, mesmo magoar – porque nós somos seres humanos e, por isso, passíveis de mágoa e de inquietação. Mas repare-se que até dessa mágoa e dessa inquietação pode nascer, e geralmente nasce, beleza e conhecimento, anterrostos da possível sabedoria.
Os quais, acrescentando-se a muita outra sabedoria e beleza que constituem património comum, caberão um dia na Festa de construir um mundo outro – mais justo, mais verdadeiro e mais feliz.

NOTA
1. Intervenção do autor na sessão que lhe esteve destinada, em Tours), aquando do evento “Livros e leitores”, na qual foi um dos participantes pela banda de Portugal. Tradução para o francês de Alex Centeno.



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NICOLAU SAIÃO (Portugal, 1949). Poeta e ensaísta, tradutor e artista plástico. Página ilustrada com obras de Ana Mendoza (Venezuela), artista convidada desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 26 | Abril de 2017
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