segunda-feira, 29 de maio de 2017

RICARDO H. RODRIGUES E T.W. JONAS | João Pinheiro na Interzona


Interzona: Além dos trabalhos com HQs você contribui com ilustrações para revistas, filmes etc. Você é um ilustrador que virou autor de HQs ou o contrário, um autor de HQs que ilustra pra sobreviver? Apesar dos acontecimentos desoladores que vivenciamos nos últimos anos, o alarido estridente da repressão, do baticum de panelas, da histeria em torno da crise econômica e da corrupção, podemos dizer que vivemos um momento excepcional para as publicações no formato HQ?

JP | Acho que tá tudo junto e misturado (risos). Olha só, quando criança, eu queria ser quadrinista, na adolescência sonhei em ser pintor, daí entrei na faculdade de artes, que não concluí (deixei o curso no último semestre), e finalmente fiz curso técnico de design gráfico, o que possibilitou meus primeiros trabalhos como ilustrador. Agora me vejo mais como um criador de imagens, o que abrange todas essas áreas da comunicação visual. A diferença é que cada meio tem suas necessidades particulares e exige diferentes abordagens, mas, no final das contas, a comunicação sempre é o objetivo final.
Acho que as HQs nacionais passam por um período excepcional, em termos criativos; mas, por conta dessas tretas todas que vocês citaram, temo que veremos, possivelmente, uma estagnação do meio nos próximos anos. Oxalá eu esteja errado. Digo isso porque é obvio que a cultura em geral é uma das primeiras vítimas do novo “Brasil Fazendão” que resultou de todas essas tensões e trocas de poder recentes – na verdade a democracia foi estuprada pelos senhores do poder.

I | O Rogério de Campos, o cara por trás da Veneta (que publicou a HQ Burroughs), é um editor com uma grande experiência no universo dos quadrinhos, atuando desde a revista Animal, se não estamos enganados. Também trabalhou na Conrad e a fez ter um papel relevante na divulgação de HQs e de livros anarquistas no Brasil. A Coleção Baderna foi bastante significativa na divulgação de movimentos políticos, sociais e artísticos, e não seria exagero dizer que fez a cabeça de muito jovem que hoje ocupa as ruas e escolas exigindo melhores condições de vida. Há muitas editoras no Brasil que atualmente promovem livros ligados ao socialismo, ao anarquismo, à contracultura e a outros movimentos culturais e artísticos significativos e transformadores, mas vemos também um movimento crescente de certa literatura conservadora e de direita. Do ponto de vista de autor e educador, como você se vê e se coloca nesse acirramento político?



JP | O Rogério disse uma vez: “Qualquer imbecil de direita tem várias editoras que publicam seus livros. Tanto que as livrarias estão cheias de imbecis de direita”. Acho que é por aí, basta dar um rolê em qualquer livraria grande, é fácil comprovar essa tese. Como autor, acho interessante tentar captar a atmosfera do momento, mas procuro não ser tão óbvio, tipo, declaratório. No Burroughs, por exemplo, tem uma coisa ali de manipulação e construção da realidade através da linguagem que me interessava e serviu como ponto de partida. Em 2013, quando eclodiram as Jornadas de Junho, senti isso muito forte, um amontoado de opiniões na mídia, na web, em redes sociais – todo esse lance de slogans, propagandas e memes atravessando o nosso pensamento o tempo todo –, informação, desinformação, autopromoção... Um bombardeio que quase nos põe loucos. Durante esse processo voltei a ler a obra do Burroughs pra tentar exorcizar as vozes que me invadiam naquele momento. 
Como educador busco propor a reflexão e instigar a curiosidade e o prazer da descoberta. Agora, esse lance de “escola sem partido” é uma bobagem sem tamanho, demagogia pura, porque todos somos sujeitos políticos desde as primeiras horas do dia até quando deitamos na cama, é impossível ser neutro.

I | Você é um cara que valoriza muito os movimentos das minorias, a periferia... Além dos trabalhos sobre os beats, você lançou recentemente, em parceria com Sirlene Barbosa, uma HQ sobre a escritora brasileira Carolina de Jesus - uma mulher negra e pobre, sem escolaridade formal - e, também, Diário Vagulino Desenho das Quebradas, um livro com esboços de paisagens periféricas da metrópole paulistana. Podemos ver aí um direcionamento do seu trabalho? O seu projeto é focar os marginalizados?

JP | Sem dúvida me interessam os marginalizados, mas alguns assuntos se impõem, e é difícil definir de modo mais racional os motivos das escolhas temáticas. Você sente que tem algo ali importante pra ser dito, sabe? No caso da Carolina foi uma indignação com o fato de essa mulher tão importante permanecer quase que totalmente desconhecida pelo público. Achamos que ela é uma personagem importante da nossa história, uma pessoa que nos ajuda a entender, inclusive, o século XX no Brasil: o racismo, o domínio da cultura pela elite e, principalmente, o desenvolvimento das desigualdades no estado de São Paulo – resultante da migração em massa de outras regiões do país, que se intensificou em meados desse século –, e o consequente nascimento das favelas e a posterior expansão da cidade para as periferias. Só que isso não quer dizer que amanhã eu não venha trabalhar numa HQ de humor ou de ficção cientifica. Procuro não me fechar às possibilidades.

I | Roberto Piva e Claudio Willer fizeram parte de um grupo de poetas paulistas antenados com as vanguardas europeias e com a contracultura. Escreveram, traduziram e chegaram a se corresponder com os beats. A sua HQ Kerouac, foi prefaciada por Claudio Willer, o que o coloca em relação direta com escritores brasileiros ligados a esses movimentos. Isto nos fez lembrar um comentário de Ginsberg, segundo o qual Neal Cassady havia trepado com Gavin Arthur que "já havia trepado com Edward Carpenter, e Edward Carpenter com Walt Whitman. De certo modo, em linha de transmissão, (...) O herói heterossexual de Kerouac também trepou com alguém que, por sua vez, trepou com Whitman e recebeu a Tradição Sussurrada (com “T” e “S” maiúsculos) daquele amor". Levando em conta essa ideia de "linha de transmissão" diga-nos: como você situa o seu trabalho e a contribuição das HQs para a propagação do movimento beat?

JP | Essa definição de vocês é excelente. Vamos criando uma irmandade de autores durante a vida, né? São autores que se ligam de algum modo, e você os reconhece como irmãos de caminhada quando os encontra pela primeira vez. Minha família tem Lautreamont, William Blake, Whitman, Poe, Rimbaud, Céline, Henry Miller, Jack London, Burroughs, Kerouac, Maria Firmino dos Reis, Lima Barreto, João Antônio, Carolina de Jesus, Plínio Marcos, Piva, José Agripino, Artaud, Lucian Freud, Francis Bacon, Sacolinha, Ferréz, Eduardo Raolino, Ozualdo Candeias, Zé do Caixão, Angelí, Crumb...  E por aí vai... São os gigantes que reverencio. Gosto de estar entre eles, tô tentando fazer parte da família.

I | Quando se trata de arte, a vida pessoal de um autor pode ser tão interessante e relevante quanto sua obra. Uma singularidade em relação aos beats, mais especificamente em relação ao livro On the road, é a reviravolta que a leitura ocasionou na vida de muitos leitores. Como você conheceu o movimento beat? A leitura de On the road também lhe causou mudanças e reações inusitadas?

JP | Conheci a Geração Beat através de um artigo que o Claudio Willer publicou na revista Chiclete com Banana lá pelos idos de 1996. Eu tinha uns 15 anos. Pirei com aquilo, com a imagem daqueles caras viajando de carona de uma ponta a outra da América, procurando um sentido para suas vidas e escrevendo sobre tudo isso de modo intensamente existencial. Fiquei fascinado principalmente porque nunca tinha ouvido falar desse tipo de literatura. Mas não consegui encontrar nenhum livro beat por um bom tempo. Anotei os nomes dos livros e dos escritores que o Willer citava na matéria, e guardei. Aos 16 anos comecei a trabalhar como office boy no centro de São Paulo. Andava por todo o centro, em todos os cartórios e bancos, e logo comecei a vasculhar os sebos em busca do On the road. Depois de muito procurar, finalmente encontrei. Me custou os olhos da cara, porque, naquela época, estava fora de catálogo, mas meti um foda-se e comprei. Foi provavelmente o melhor investimento que fiz na minha vida. E, sim, teve um grande impacto sobre minha cabeça juvenil.

I | Entre seus dois quadrinhos sobre os beats (Kerouac, e Burroughs), parece ter havido um forte amadurecimento. O primeiro tem uma estrutura um tanto esquemática, apesar de as páginas com a Billie Holiday e o prólogo “A viagem continua” terem grande vitalidade. Já no segundo parece que toda a obra flui com um encadeamento e um arranjo de imagens que impressionam, a fragmentação dos desenhos nos quadros, com aproximações e afastamentos, traduz belissimamente a viagem vertiginosa do personagem, a inserção de trechos de outros autores, como o Sganzerla, atualiza a ideia do cut-up etc. Em um trecho do Crônicas, Bob Dylan diz: “Nos primeiros meses em Nova York, perdi o interesse pela visão hipster ‘louca por curtição’ que Kerouac ilustra tão bem no livro On the Road. Esse livro tinha sido uma bíblia para mim. Não era mais, porém. Eu ainda amava as frases poéticas de bop ofegantes e dinâmicas que fluíam da pena de Jack, mas agora o personagem Moriarty parecia deslocado, despropositado – parecia um personagem que inspirava idiotice. Ele segue pela vida sacolejando e rangendo com todo aquele papo furado”. Você não acha que a HQ Kerouac, reflete demasiadamente a literatura do Kerouac – um universo mais ingênuo, que nos atrai mais em uma época específica da vida?

JP | Acredito que sim. Teve muita gente que leu Kerouac já na maturidade e não curtiu, muitos até acharam bobo, como minha companheira, por exemplo. Ainda curto a prosa do Jack – tem momentos de grande intensidade e poesia –, mas hoje me empolgo mais com a obra de Burroughs.

I | Pra finalizar. Em relação à frase: “Quando você começa a pensar por imagens, sem palavras, você está bem no caminho”. Esse é o caminho a seguir no formato HQ? Pensar por imagens, e não por palavras?

JP | A frase tenta dizer o indizível, é contraditória porque imagens também são palavras num sentido mais amplo. As palavras descrevem o mundo, mas não são o mundo. O mundo real nunca está ao nosso alcance por conta dessa barreira. Uma barreira linguística com o qual temos que conviver, mas que também nos aprisiona para sempre naquela caverna, acocorados, acreditando que as sombras são a realidade. É o mito original do Burroughs – a linguagem é um vírus vindo do espaço, que nos invadiu e desde então nos comanda. Acho que compliquei mais ainda (risos), mas é isso. De modo mais direto, é um apelo do tipo: “Não tente entender tudo, porque isso nos afasta da experiência mais direta da vida”. No fim, talvez a saída ainda esteja lá, em algum lugar das nossas mentes, no subconsciente, enterrada. Morte ao intelecto.



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INTERZONA (www.interzona.com.br). Realizada em São Paulo, março de 2017. Foi uma conversa com Ricardo H. Rodrigues e T.W. Jonas, queridos amigos da Interzona, que nos autorizaram a reprodução. Página ilustrada com obras de João Pinheiro (Brasil).

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 28 | Junho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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