quinta-feira, 3 de agosto de 2017

DANIEL VERGINELLI GALANTIN | Eliane Robert Moraes: perversos, amantes e outros trágicos


A amizade, esta relação sem dependência, sem episódio e onde, no entanto, entra toda a simplicidade da vida, passa pelo reconhecimento da estrangeiridade comum que não nos permite falar de nossos amigos, mas apenas lhes falar; não nos permite fazer deles um tema de conversas (ou de artigos), mas trata-se do movimento do acordo em que, ao nos falar, mesmo na maior das familiaridades, eles guardam a distância infinita; esta separação fundamental a partir da qual aquilo que separa torna-se relação.

Maurice Blanchot

O último livro escrito por Eliane Robert Moraes, Perversos, amantes e outros trágicos, traz textos publicados em diversos meios entre os anos de 1989 e 2008, transitando entre a teoria literária, filosofia, história e etnologia. Esta transição também acompanha o próprio itinerário de Moraes, que foi professora da Faculdade de Comunicação e Filosofia da PUC-SP, atuou como professora visitante na UCLA (Califórnia), Université de Perpignan, na Universidade Nova de Lisboa, e hoje é professora de Literatura Brasileira no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas na FFLCH da USP. Certamente a transdisciplinaridade é um dos elementos fortes do livro, que engloba um leque de referências autorais mais amplo que a literatura libertina do século XVIII ou as vanguardas européias dos séculos XIX e XX, os quais marcam a produção anterior de Moraes, em que se destacam Sade: a felicidade libertina, O corpo impossível, e Lições de Sade.
É preciso ressaltar, contudo, que a amplitude de autores abordados, de Heinrich von Kleist a Georges Bataille, passando por Juana Inés de la Cruz, Henry James e, como não poderia deixar de ser, também o divino Marquês, não pode ser considerada sinal de dispersão textual. Neste livro, Georges Bataille ou é a figura central ou divide espaço com mais um autor em cinco ensaios, enquanto Maurice Blanchot, Michel Foucault e André Breton constam em dois ensaios cada; considerando-se as vanguardas literárias européias do século XX, temos ainda quatro ensaios, dois dedicados a Breton, um a Guillaume Apollinaire e um a Louis Aragon. Talvez estas sejam as principais fontes de que Moraes se apropria para desenvolver os ensaios que constam neste livro, permitindo que noções como as de perda, erro (com toda ambigüidade do termo, referindo-se tanto ao sentido do não-correto quanto ao da errância, dos passeios ao léu) e acaso possam ser conectadas através do princípio do desvio, considerado pela autora como o eixo que permitiu a reunião dos textos.
De certo modo, e seguindo as pistas fornecidas pelas idéias principais de Moraes, podemos dizer que todos os autores mencionados neste livro fazem parte das margens do ocidente. Não nos referimos tanto ao limite que define sua identidade, mas àquele em que o próprio ocidente deixa de ser o que é, tornando-se mais distante de seu centro que de seu fora. A referência ao limite faz com que não encontremos nenhum grande deslocamento no livro quando nos deparamos com um texto dedicado não a um autor específico, mas a um tipo de pensamento em que a própria idéia de autor, tão criticada por Foucault, é inexistente: referimo-nos, por exemplo, aos mitos indígenas reunidos pela antropóloga Betty Mindlin em Moqueca de maridos, abordados no ensaio “Eros canibal”. Seguindo essa mesma ideia a respeito dos limites, talvez pudéssemos dizer que em Sobre o teatro das marionetes Heinrich von Kleist estaria mais próximo do pensamento ameríndio do que de Descartes.
Certamente, não se trata de dizer que Kleist pensa como um Macurap, um Tupari ou um Jaguti, e nem que ele discorre sobre o pensamento indígena em seus escritos. Entretanto, a análise de Moraes a respeito do diálogo entre o narrador e um bailarino, tema central da obra de Kleist, conduz a uma interrogação acerca da origem do homem que traz conseqüências heterodoxas. Ao observar a perfeição dos movimentos das marionetes, o bailarino a atribui ao fato destas serem controladas por um único fio ligado a seu centro de gravidade. No entanto, a perfeição dos movimentos dos bonecos não se dá pelo fato do marioneteiro saber controlar com maestria seu objeto: “para alcançar tal perfeição rítmica, era necessário que o operador se transferisse para o interior da marionete”. Ou seja, não se trata do assujeitamento do objeto marionete pela consciência do marioneteiro que a controla, mas da entrega da marionete ao reino das forças, através da sintonia entre ela e seu suposto mestre. A graça destes movimentos é inalcançável aos humanos, uma vez que “a alma dos bailarinos se deslocava com freqüência do centro de gravidade de seus movimentos, o que resultava na 'afetação dos gestos'“. Esta relação de comunicação com o boneco traz o problema que o narrador chama de “mistério original”, o que, segundo Moraes, coloca em questão o racionalismo moderno. Vejamos.
Segundo a teoria cartesiana dos animais-máquinas, qualquer réplica pode reproduzir mecanicamente seu original, mas é incapaz de falar ou expressar sentimentos, características irredutíveis ao espírito humano. Porém, no caso de Kleist encontramos um pensamento dissonante, pois o boneco é capaz de se expressar independentemente da consciência do sujeito e, com isso, questiona-se aquilo que seria propriamente humano:

Ora, os personagens de Kleist caminham exatamente na contramão do fundador do racionalismo moderno: em vez de assegurarem a primazia do sujeito pensante sobre qualquer objeto, eles transformam a marionete no objeto a partir do qual o próprio pensamento humano é colocado à prova.

Ou seja, a autonomia da marionete coloca em jogo os limites da humanidade, o que de forma alguma conduz a uma apologia da máquina e do controle técnico. Kleist faria parte de uma vertente menor da literatura, às margens das principais idéias modernas, talvez operando mesmo uma perversão das mesmas. Se traçarmos um rápido paralelo entre o corpo da marionete e o corpo humano dócil e disciplinado, analisado por Foucault em Vigiar e Punir, teremos de reconhecer uma diferença crucial: enquanto os corpos disciplinados tornam-se dóceis através de um controle exercido continuamente sobre eles a partir de instâncias que lhes são exteriores, mas que os atravessam, o movimento perfeito da marionete se dá através de um fio que abole a fronteira entre a interioridade do controlador e a exterioridade do boneco. Deste modo, assim como em Kleist não se trata do controle do boneco pelo artista, tampouco se trataria do assujeitamento de seu corpo por um feixe disciplinar que visaria controlá-lo, como poderia dar a entender o fio de controle. Ao invés do assujeitamento disciplinar, trata-se, antes de tudo, da própria dessubjetivação do homem através do fio que coloca em relação marioneteiro e marionete. Pois enquanto as disciplinas analisadas por Foucault são condições histórico-políticas de possibilidade dos saberes que tomaram o homem como objeto de conhecimento, em Kleist, o fio que liga marioneteiro e marionete coloca em jogo os limites da própria humanidade.
O “mistério original” mencionado por Kleist faz parte desta perversão do pensamento racionalista, assim como da perversão do mito cristão da criação do homem, o qual é reconstruído a contrapelo: o homem foi criado num estado de “inocência originária” caracterizado pela não-consciência, tendo decaído após comer o fruto da árvore do conhecimento, o que também originou suas falhas. Ou seja, foi a própria capacidade humana de pensar que tornou possível suas falhas e, de acordo com Moraes, “precisamente por isso, os gestos automáticos e irrefletidos das marionetes dariam uma imagem daquilo que seria a graça natural dos nossos movimentos, não tivessem eles um dia se tornado conscientes”. Moraes não deixa de sublinhar as ressonâncias da sensibilidade romântica que se fazem presentes no texto de Kleist, ecoando Rousseau ou Schiller. No entanto, tais referências não bastam para caracterizar o desafio aberto por seu pensamento. Afinal, enquanto a figura da redenção cristã ainda remete à separação da alma com relação à matéria, Kleist coloca a condição humana numa espécie de oscilação “entre a mecânica do corpo e a espiritualidade da alma”.
Em Kleist, é impossível qualquer retorno ao estado de inocência original do humano, restando-nos apenas buscar caminhos outros para completar o círculo da viajem. Neste percurso certa nostalgia da inocência ainda perdura, mas, adverte Moraes, “só restando ao sujeito reencontrá-la como alteridade - isto é, quando ele se transfere para um objeto fora de si, quando realiza um ato de criação”. Ou seja, a alteridade está no próprio ato de criação, que neste caso se dá precisamente quando o artista se transfere para a marionete, comunicando-se com o objeto de modo a se dessubjetivar, ao mesmo tempo em que o boneco ganha a autonomia que confere graça aos movimentos observados pelo bailarino e que o faz também deixar de ser mero objeto.
Esta observação é capital para entrarmos em sintonia com o que talvez esteja guiando a escrita de Moraes: afinal, esta criação não está muito distante da fabricação, que designa um dos sentidos da palavra “poética”. Deste modo, cabe dizer que aquilo que permite a comunicação singular à qual nos referimos é o fio que simultaneamente separa e liga marioneteiro e marionete. Não casualmente, Moraes termina seu artigo com a seguinte observação acerca dos personagens: “Na ousada tentativa de desvendar os mistérios da criação, eles vislumbram o caminho que une a alma do bailarino ao corpo do boneco; e, com isso, lembram ao homem o único meio que lhe faz escapar de sua condição - por um fio”. Penso que este fio é o mesmo que permitiria unificar todos os ensaios do livro, constituindo, talvez, o lugar próprio do pensamento de Moraes, que invoca o desvio já em sua introdução. A possibilidade de desviar-se da condição humana, de fazer o humano comunicar-se com o inumano, enunciada pela figura do fio no texto de Kleist, é justamente aquilo que permitiria dizermos que o pensamento kleistiano mantém-se à distância do pensamento de Descartes, aproximando-se mais do pensamento ameríndio, no qual a divisão entre humano e inumano é muito mais transitável. [1]
A noção de comunicação que se encontra nas entrelinhas de vários dos ensaios que compõem o livro possui claros contornos bataillianos, não sendo casual o constante recurso de Moraes ao filósofo francês. Bataille esforça-se tanto para solapar a divisão sujeito-objeto do racionalismo quanto sua fusão unitária mística, [2] de modo que, para ele, “a comunicação solapa as bases tanto do objeto quanto do sujeito (…). [3] No ensaio “Um olho sem rosto”, Moraes ainda nos apresenta as gravuras criadas por Hans Bellmer para a edição de 1940 de A história do olho, obra ficcional de Georges Bataille traduzida para o português por ela própria. São desenhos de traços finos e delicados para tratar de uma violência erótica sem limites, traços que combinam com a própria forma narrativa do romance, que apresenta um linguagem extremamente realista, ascética e econômica com relação a adjetivos, contrastando assim com o fundo narrativo que se passa num mundo completamente à parte, como num conto de fadas noir. Trata-se de um mundo imaginário onde os adultos não são capazes entrar, um lugar em que reina o desejo e, desta maneira, só pode ser apresentado por uma linguagem que “recusa a lógica da contradição para dar lugar às formulações ambivalentes que são próprias das fantasias eróticas”.
Cabe ainda ressaltar o cuidado de Moraes ao lidar com fatos biográficos de Bataille, de modo a evitar duas saídas fáceis: fazer com que a obra seja expressão da vida vivida, ou fazer com que ela seja um mero conjunto lingüístico com autonomia total e desconectada da biografia. De certo modo, a citação inicial do ensaio já indica o caminho batailliano para lidar com este problema: “Escrevo para apagar meu nome”. Também poderíamos mencionar a esse respeito que Bataille vincula a própria escrita ao abatimento (mise à mort) do autor por sua obra. A escrita aqui, não é expressão de um vivido, mas exercício reflexivo de apagamento e transformação de si mesmo.
A primeira ficção publicada por Bataille é resultado de um trabalho psicanalítico pouco ortodoxo, conduzido sob a supervisão de Adrien Borel, ao qual ele se submeteu por apenas um ano. No entanto, se a narrativa tratasse de um caso pessoal, ela não teria valor literário, de modo que sua grandeza reside, para além do trabalho lingüístico, no esforço de apagamento do próprio autor. A palavra ficcional permite que aquele que escreve passe do plano pessoal para o impessoal, ou seja, trata-se da dessubjetivação do autor, de sua metamorfose em algo totalmente outro. Este seria o motivo principal do uso de pseudônimos; neste caso, Lord Auch, que significa Deus se aliviando. Ou seja, não se trata apenas de uma proteção contra prováveis processos por ultraje à moral, os quais eram corriqueiros no período dado o profundo caráter conservador de parte da sociedade francesa. Embora tal processo pudesse abalar o cargo de Bataille na Bibliothèque Nationale de France, Moraes mostra como o pseudônimo permitiu que o nome do pai doente, imobilizado e com periódicos acessos de fúria, que marcou a infância de Bataille, fosse apagado. Esse apagamento abriria, assim, a passagem do plano pessoal ao impessoal. Muito embora Moraes talvez exagere ao caracterizar este plano como “algo que excede o particular para abarcar uma circunstância comum à espécie humana”, o pseudônimo funcionou enquanto uma máscara.
Cabe lembrar ainda que a figura da máscara apresenta um sentido muito particular e bem explorado por Moraes no próprio pensamento batailliano. Enquanto objetos que apagam o rosto, as máscaras também criam algo novo, carregando consigo uma potência de caos: “Na qualidade de artifícios que se sobrepõem à face humana, com o objetivo de torná-la inumana, essas representações 'fazem de cada forma noturna um espelho ameaçador do enigma insolúvel que o ser vislumbra diante de si mesmo'“. De acordo com as palavras de Bataille, “quando aquilo que é humano é mascarado, resta presente nada mais que a animalidade e a morte”.
As cenas de imersão cósmica em História do olho caminham no mesmo sentido da desindividuação trazido pela máscara. São algumas das cenas mais interessantes e experimentais, geralmente em momentos em que a narrativa flerta com o sem-sentido. No entanto, não deveríamos trata-las como abstrações puras de uma bela alma, uma vez que se tratam de experiências intensivamente corporais onde o erotismo, levado às últimas conseqüências, carrega consigo a desintegração dos objetos e dos próprios sujeitos. Várias das gravuras de Bellmer são excelentes acompanhamentos do texto para enriquecer estes momentos, pois nelas o rosto dos personagens ou está em segundo plano, ou está completamente ausente, sendo que os traços dos corpos chegam a flertar com formas abstratas. De acordo com Moraes, nestes momentos-limite,

os indivíduos são despojados de qualquer identidade, seja social ou psicológica, em função de uma experiência puramente orgânica, animal, que supõe uma relação íntima e imediata com o mundo. Tal é a 'ausência de limites' a que se entrega o narrador da novela, evocando um estado de imanência no cosmos que, partilhado por todos os seres vivos, só pode se revelar ao homem quando ele esconde seu rosto.

Assim como os personagens, o próprio olho passa por esse processo, iniciando o livro como parte de brincadeiras eróticas - quando ainda assume a função da visão - e terminando enquanto puro “resto material (…) ostentando sua condição finita”. De modo que, segundo a autora, o livro não narra “a autobiografia de Bataille, e nem mesmo do narrador - é uma autobiografia do olho”. Novamente nos deparamos com limites que colocam em questão a relação entre humano e inumano, aquela fronteira que é mais distante do centro que do fora. Muito embora esteja tratando de uma obra formulada num contexto muito distinto daquele no qual escreveu Heinrich von Kleist, a escrita de Moraes parece nos convidar, ou nos desafiar, para uma experiência de nossos próprios limites.
Em “Varas, virgens e vanguarda”, dedicado a Guillaume Apollinaire, encontramos também uma ótima reconstrução do contexto artístico da França do início do XX. Moraes consegue recriar a tensão estabelecida pelo enfrentamento vanguardista às formas estabelecidas da arte acadêmica pautada pela representação do real. Cabe ressaltar que não se trata apenas de uma discussão estritamente estética, visto que o ataque à estética oficial por parte de artistas como Apollinaire, Picasso, Braque, dentre outros, era respondida até mesmo com a xenofobia. Deste modo, Moraes nos introduz a certas articulações entre estética e política. Ao ser acusado de roubar a Monalisa do Louvre, sendo posteriormente solto após provada sua inocência, Apollinaire, “filho ilegítimo de uma polonesa, a quem os padrões da época atribuíam reputação duvidosa, e de um italiano de origem desconhecida”, continuou alvo de críticas. De acordo com a autora, mesmo após a resolução do roubo

Apollinaire foi atacado pela intelectualidade da época, que se aproveitou da ocasião para denunciar os atos de 'barbarismo' dos métèques - 'malditos estrangeiros' - contra a cultura nacional (…) os árbitros do bom gosto francês o acusavam de atentar contra os valores da 'civilização', estendendo tal recriminação a outros estrangeiros radicados em Paris, tais como Picasso, Stravinsky e Gertrude Stein.

Tratava-se de um momento de profundo abalo dos valores tradicionais da civilização e do humanismo europeus, os quais eram defendidos violentamente pela intelectualidade conservadora contra as críticas promovidas pela arte experimental de vanguarda. A título de exemplo, quando Picasso mostrou o quadro Les demoiselles d'Avignon a Apollinaire, este teria demonstrado grande entusiasmo com o novo campo de possibilidades aberto pelo mesmo. No entanto, o mesmo trabalho sofreu severas críticas dos defensores da representação realista e antropomórfica, os mesmos que atacariam Apollinaire logo em seguida.
Neste contexto, o trabalho do poeta francês era marcado não tanto pela pura rejeição do passado, mas pelo interesse por aqueles elementos que foram propositalmente deixados de lado pelas regras do bom gosto do presente. Seu envolvimento na publicação de parte das obras do Marquês de Sade serve como exemplo. Ainda que sem preocupar-se em diferenciar Sade de um Restif de la Bretonne, Apollinaire encontrava neste tipo de literatura uma possibilidade de revigoramento do espírito moderno. A arte deveria ser um lugar não apenas de reflexão e experimentação estética, mas um meio de completa transformação nos modos de vida:

Para o poeta, a experiência cosmopolita deveria engendrar um modo de vida amorosa radicalmente diferente daquele que os padrões morais da sua época ainda acalentavam. Diferença que ele enfatizava ao contrastar as duas grandes personagens de Sade: Justine oferecia um retrato da 'mulher antiga, subjugada, miserável e menos que humana', enquanto Juliette representava a nova mulher, 'um ser do qual ainda não temos a menor idéia, que se liberta da humanidade, que terá asas e renovará o universo'.

No entanto, mesmo tendo escrito poesias e novelas como As onze mil varas, as quais escandalizaram sua época e tiveram que ser publicadas anonimamente, hoje os textos de Apollinaire constam na Bibliothèque de la Pléiade. Quanto a isso Moraes não se deixa iludir, de modo que a apologia fácil passa longe de qualquer um dos ensaios deste livro. A autora está certa de que o escândalo causado por estas obras no final do século retrasado, assim como no início do século passado, não apresenta hoje a mesma intensidade que outrora. “Passado quase um século, a Mona Lisa convive tranquilamente com as Demoiselles d'Avignon nas paredes dos museus e a obra bem comportada de Anatole France repousa nas mesmas prateleiras que os livros obscenos do autor de As onze mil varas”. Como não lembrar de um apontamento análogo feito por Michel Foucault no início de 1970? Se a literatura moderna se apresentava, entre o final do XIX e o início do XX, como um lugar de questionamento dos limites de uma cultura, talvez hoje ela não carregue a mesma possibilidade: “(…) hoje a literatura, como cena da transgressão sexual, enfraqueceu o próprio ato transgressivo. E desde que ele se desenrola sob a cena da literatura, no espaço literário, ele tornou-se de longe mais suportável”. No entanto, mesmo que os nossos limites tenham se deslocado para outro lugar, artistas como Apollinaire nos convidam a interrogar por esse novo lugar, de modo a lançar um novo desafio ao pensamento.
Numa geração brevemente posterior a Apollinaire encontramos André Breton, um dos nomes mais importantes do surrealismo. Novamente, muito embora o ensaio trate mais especificamente de Nadja, Moraes nos introduz no contexto mais amplo dessa publicação. Assim como na novela de Breton, o tema da caminhada pela metrópole, considerada um lugar de interrogações filosóficas, é uma constante em outros nomes da geração anterior, como Victor Hugo, Lautréamont, Nerval ou Baudelaire, com a famosa figura do flâneur. Sendo assim, a cidade é considerada uma fonte emissora de signos:

Ao divisar um elo secreto entre lugares e palavras, Breton vai revelando não só a natureza do passeio surreal, mas também o intento de um livro que pretende explorar os pontos de contato entre a vida e o sonho. Para tanto, ele captura a paisagem citadina com o mesmo olhar oblíquo de seus inspiradores, no empenho de decifrar os signos urbanos como mensagens secretas que lhe dizem respeito.

É durante uma perambulação por Paris que se passa o encontro de Breton com Nadja, acontecido em um bairro famoso pelas atividades femininas, desde a prostituição até a cartomancia. O autor opera alguns deslocamentos em relação à Paris real, por exemplo, grafando a rua La Fayette como Lafayette, pistas que apontam para o contato do real com o imaginário. É Nadja, por sua vez, que orienta as caminhadas de Breton, todas motivadas pela pergunta inicial do texto: “quem sou eu?”.
Vários elementos da novela permitem a associação entre Nadja e a figura da Esfinge. No entanto, vale lembrar que não se trata exatamente da mesma Esfinge do modelo grego, e muito menos daquela tal como interpretada por Hegel na modernidade - enquanto figura a ser enfrentada para que o homem alcance uma legítima consciência de si. Em linhas gerais, trata-se de uma verdadeira reinvenção das figuras da tradição, tal como também reivindicaram autores como Max Ernst e Paul Éluard: “Livre das referências tradicionais, a nova esfinge será encontrada nos locais mais prosaicos da cidade, sempre em sintonia com a dinâmica transitória da vida cosmopolita”.
A associação entre Nadja e a Esfinge contribui para que a primeira deixe de ser considerada um personagem romanesco como qualquer outro, pois ela se caracteriza principalmente por ser portadora de uma interrogação, e não de uma identidade. Desta maneira, de acordo com Moraes, “(…) Nadja não pode se confinar aos contornos de um rosto”. Pesamos que isso é parte do próprio movimento de deslocamento da subjetividade que ela traz, pois ao encontrar-se com Nadja, a pergunta mestra inicial não é respondida, mas têm seus termos mudados. Novamente, de acordo com Moraes,

(…) a aparição da personagem na vida do escritor, de certa forma motivada pela interrogação sobre si mesmo, acaba por lançá-lo na incógnita da alteridade. É ele mesmo a admiti-lo, no exato momento em que depara com a esfinge da rua Lafayette, ao substituir sua questão inicial por 'uma pergunta que resume todas as demais': 'uma pergunta' diz o autor, 'que só eu faria, sem dúvida, mas que, pelo menos uma vez, encontrou resposta à altura: quem é você?'.

A reposta de Nadja desencaminha toda promessa de unidade subjetiva: “eu sou a alma errante”. É neste sentido que o contato com Nadja propicia esta completa transformação da pergunta-guia, assim como promove um esforço de transformação da própria subjetividade do narrador: “Daí que, logo após o encontro capital, o próprio autor vá recolocar sua dúvida em outros termos, olhando para si mesmo como um estrangeiro”. Encarar a si mesmo como um outro opera toda uma reconfiguração das sensibilidades e dos saberes, de modo que podemos entender como apenas um passeio errante é capaz de propiciar tal experiência-limite. Desta maneira, o esforço de descentramento do autor nos mostra que esta flânerie, esta errância, não é definida apenas negativamente enquanto desvio do caminho correto, pois apresenta um estatuto positivo definido como movimento em direção à alteridade. Segundo Moraes,

indiferente aos problemas da identidade, a resposta da jovem esfinge lhe aponta um caminho oposto ao de Édipo, uma vez que o herói fundante de nossa cultura representa a metáfora do homem que toma consciência de si, realizando os desígnios da célebre inscrição grega 'conhece-te a ti mesmo'. Ao contrário, a irrestrita adesão de Nadja à errância supõe uma personalidade à mercê do transitório, e capaz de desdobrar-se em diversos 'outros'.

Semelhante rechaço ao princípio da identidade não se restringe ao surrealismo, apresentando-se também nos autores do XIX considerados pelo movimento enquanto seus precursores. Moraes cita Nerval, Lautréamont e Rimbaud, deste último, em particular sua célebre carta a Georges Izambard: “EU é um outro. Azar da madeira que se descobre violino, e danam-se os inconscientes que discutem sobre o que ignoram completamente!”. Nesta célebre frase, a discordância entre sujeito e verbo abre uma fissura de alteridade no próprio sujeito, acontecimento que, no caso de Breton, passa pela experiência do encontro fortuito com Nadja na metrópole. Novamente, segundo Moraes,

importa sublinhar que, ao deslocamento físico dos personagens, marcado pela desorientação e pela disponibilidade para a surpresa, corresponde um deslocamento mental de semelhante porte e intensidade. Ao trajeto errante, uma alma igualmente errante.

Desta forma, o encontro com Nadja abre a possibilidade do eu desdobrar-se em diversos outros, e, assim, traz novamente a questão dos limites sobre os quais estamos insistindo nesta resenha. Trata-se da possibilidade de lançar-se na vertical de si mesmo, ou ainda, segundo as palavras de Michel Leiris, para quem Moraes também dedica um ensaio, trata-se desses “lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo” – basta lembrarmos que a tangente é o espaço onde o limite é tocado.
Concluo esta resenha mencionando outro ensaio dedicado não a um autor específico, mas a um tema. Trata-se das várias reflexões sobre as noções de monstruosidade e prodígio, encontradas em “Anatomia do monstro”. Neste ensaio, Moraes mobiliza desde autores como Lucrécio, passando pelo renascentista Ambroise Paré, até chegar a Hegel, Bataille e Max Ernst. A partir de Lucrécio, a autora trata do problema freqüentemente reiterado, segundo o qual os monstros nascem devido a “uma perturbação da geração do homem” ou um desvio na ordem da natureza. Segundo Paré, os monstros são parte dos desígnios de uma ordem natural, normalmente caracterizados pela falta manifesta por algum tipo de mutilação. No entanto, como poderíamos esperar de um pensamento renascentista, estes desígnios naturais não podem ser completamente compreendidos pela razão humana, de modo que mesmo os monstros e prodígios estariam integrados à natureza: “Inacessíveis à compreensão humana, esses mecanismos secretos da natureza visariam, em última instância, à manutenção da harmonia universal”. A própria figura feminina é vista por Paré como grau primeiro de imperfeição ou monstruosidade, de modo a retomar as teses de Aristóteles, para quem a mulher seria um homem mutilado.
No entanto, Moraes aproveita-se destas idéias para destacar a subversão das mesmas através de sua recepção contemporânea em Bataille e Ernst. Uma das partes mais interessantes do ensaio está na contraposição entre, de um lado, o pensamento de Hegel (mais especificamente o da Estética) e, de outro, o de Bataille e outros surrealistas. Esta contraposição diz respeito à figura da Esfinge e da dupla animalidade que ela representa enquanto monstro feminino. Segundo a leitura hegeliana, ao responder a interrogação da Esfinge, Édipo constitui-se enquanto homem da consciência de si através do conhecimento de si, [4] eliminando de si mesmo toda a animalidade representada por este monstro:

a consciência de si resulta de um processo de depuração das formas que parte da negação da animalidade. Não se trata, pois, de um homem que alarga suas fronteiras compartilhando a mesma natureza dos animais, mas o contrário: Édipo funda um domínio próprio e exclusivo no qual 'o espírito recebe uma existência sensível e natural que lhe é adequada'.

Pelo lado dos surrealistas, Édipo é o precursor do despotismo racional masculino, donde a reabilitação da Esfinge, considerada pelo movimento enquanto símbolo do caos. Se em Hegel a vitória sobre a Esfinge marca a mudança do pensamento simbólico para o conceitual, os surrealistas visam uma atualização do simbólico para, ao invés de responderem ao enigma, relançarem o próprio estado de interrogação.
Ao final, Moraes menciona algo que jaz no subterrâneo de Édipo e que Hegel omite. O próprio nome da humanidade depurada da animalidade já invoca a monstruosidade, pois significa “pés inchados”. Neste sentido, a partir de Bataille, a monstruosidade é tida não como alteridade absoluta da humanidade, mas enquanto sua ameaça interna. Uma ameaça que não deve ser depurada de forma alguma, mas que, na realidade, torna visível a impossibilidade de qualquer um de nós pertencermos ao campo abstrato da humanidade. Pois o monstro invoca precisamente toda singularidade que resiste à totalização, e mesmo Édipo é singularizado por seus pés, assim como pelos olhos enucleados: “Em resumo: não há homem concreto que responda de forma absoluta ao ideal abstrato e genérico de 'homem'”.
Desta maneira, com sua reflexão sobre os monstros, Moraes destaca a potência das diferenças que tornam todos os seres únicos e singulares. Segundo ela, trata-se de uma “possibilidade rara no mundo contemporâneo, onde se investe cada vez mais nas 'particularidades coletivas' - como raça, etnia, gênero - e se reserva pouca atenção ao que é efetivamente singular e irredutível ao todo”.
Uma vez mais se coloca a questão do limite que comunica o humano e o inumano; neste caso, o homem e a monstruosidade inerente ao próprio humano, a qual é considerada positivamente enquanto potência de singularização e inoperância, de modo que haveria, inclusive, todo um aspecto político deste pensamento ainda a ser explorado. [5] Encerro esta resenha com as palavras da própria autora, que retomam o mote do ‘desvio’:

Mulheres, mutilados ou monstros, as figuras da incompletude que povoam nossos universos concretos e imaginários vêm atestar que cada um de nós é, sem exceção, um 'desvio' em relação ao suposto homem genérico e universal - e que, nessa qualidade, cabe a cada qual a aventura sensível de uma existência própria. Se dermos ouvidos às interrogações colocadas pela esfinge num mundo ainda dominado pelas respostas de Édipo, talvez seja possível redefinir a idéia de humano para então nos reencontrarmos - sendo monstros.


NOTAS
1. Sobre isto conferir o trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do qual destaco, a título de exemplo, A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos.
2. Sobre esta questão recomendo o capítulo “La comunidad de la muerte” de Categorías de lo impolítico e o livro de Franco Rella e Susanna Matti, Georges Bataille, filósofo.
3. A tradução das citações de Bataille e de Foucault é de minha responsabilidade.
4. Através desse ensaio, também poderíamos especular se a ênfase de Foucault no tema do cuidado de si em detrimento do conhecimento de si, especialmente em A hermenêutica do sujeito e A coragem da verdade – neste último caso recolocando a questão da animalidade na filosofia e no pensamento, o qual já fora levantado em História da loucura – também não seria fundamental para compreender seu olhar para antiguidade. Seu destaque para figuras da antiguidade que foram deixadas de lado justamente por toda forma de filosofia da consciência nada mais seria, talvez, que desdobramentos tardios de um pensamento crítico não fundacional.
5. Pensamos que a discussão entre Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot em torno ao tema da comunidade, e mais recentemente os trabalhos de Roberto Esposito seriam interlocutores profícuos deste eixo do livro de Moraes. Sobre isso ver também o artigo Pensée de la communauté et action politique: vers le concept de communautés plurielles e, de Peter Pál Pelbart Qu’est-ce qui parle à travers nous?


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DANIEL VERGINELLI GALANTIN (Brasil, 1986). Graduado em História pela UFPR. Mestre em Filosofia pela UFPR com dissertação intitulada “Verdade e subjetividade no pensamento de Michel Foucault: da analítica do poder à genealogia da ética”. Doutor em Filosofia na mesma instituição com projeto intitulado “Experiência e política no pensamento de Michel Foucault”. Estágio sanduíche realizado na Université de Paris Est-Créteil. Orientação do mestrado e doutorado sob a responsabilidade do prof. Dr. André de Macedo Duarte. Coorientação de estágio no exterior por Frédéric Gros. Página ilustrada com obras de Felícia Leirner (Brasil), artista convidada desta edição.

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ÍNDICE # 100

EDITORIAL | 100 números e a dinâmica imóvel do cotidiano

AGACÍ DIMITRUCA | Tiempos griego-españoles

ALFONSO PEÑA | Conversa con Claudio Willer

ANDREA OBERHUBER | O livro surrealista como espaço transfronteiriço: Lise Deharme e Gisèle Prassinos

ANTONIO CABALLERO | Harold Alvarado Tenorio y un libro a cuchilladas

DANIEL VERGINELLI GALANTIN | Eliane Robert Moraes: perversos, amantes e outros trágicos

ELVA PENICHE MONTFORT | Fotografía y surrealismo: fetiches de Kati Horna

ESTELLE IRIZARRY | Eugene Granell: correspondencias entre creación pictórica y literaria

ESTER FRIDMAN | A linguagem simbólica no Zaratustra de Nietzsche

FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 1

FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 2

FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 3

HAROLD ALVARADO TENORIO | 100 años de poesía en Colombia

ISABEL BARRAGÁN DE TURNER | La isla mágica de Rogelio Sinán

JOSÉ ÁNGEL LEYVA | Víctor Gaviria: El poeta y el cine

LUIS FERNANDO CUARTAS | La ilusión siniestra de los cuerpos y los engaños de la metamorfosis

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Herberto Helder, sigilosamente Herberto

NICOLAU SAIÃO | Recordando uma comunicação de Mário Cesariny

RICARDO ECHÁVARRI | El poeta Arthur Cravan em México

SUSANA WALD | En el espejo retrovisor

ULISES VARSOVIA Esencia y excedencia de la poesía contemporánea

ARTISTA CONVIDADA | FELÍCIA LEIRNER | GISELDA LEIRNER | Felícia Leirner, minha mãe


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Agulha Revista de Cultura
Número 100 | Julho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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