segunda-feira, 14 de agosto de 2017

JACOB KLINTOWITZ | Henrique Léo Fuhro: o biógrafo da solidão


Eu não diria que Fuhro e eu fomos companheiros na utopia. Nunca fomos tão solenes. Éramos amigos e, durante décadas, vejo agora, nos organizávamos em três rituais de convívio. O primeiro, era a conversava telefônica que se prolongava nas madrugadas. Ríamos muito. Talvez por falta de juízo. E discutíamos literatura, a nossa literatura, arte e comportamentos. O segundo ritual acontecia em eventuais viagens minhas a Porto Alegre. Esquecidos de tudo pela proximidade física e pela empatia lembrávamo-nos da nossa juventude gaúcha e de uma Porto Alegre expressionista colhida na nossa subjetividade.
O terceiro ritual tinha um caráter hierático e sagrado. No pequeno ateliê do Fuhro eu contemplava o seu trabalho. Um a um, com lentidão, de maneira demorada, ambos silentes, gravuras, desenhos, pinturas, eram mostrados e, às vezes, retornavam. Eu rompia o silêncio e falava sobre a nossa época, os rios subterrâneos da cultura e relacionava o seu trabalho com vertentes universais. Mais do que escolher uma corrente artística, tão voláteis, eu preferia identificar um sentimento que o unia às grandes personalidades. Para mim, Henrique Léo Fuhro era, e é, o artista que percebeu e registrou a perda da individualidade substituída pela função, como se pode encontrar na sua infindável série de figuras mascaradas.
E no movimento, no gesto de seus personagens, nas ações repetitivas, sempre a solidão, o homem abandonado de tudo, imune ao amor humano e ao amor divino. No começo, na sua bela série de bicicletas, tudo era perpassado em doce melancolia. Mais tarde, nada era tão explícito, mas entranhado nos gestos mecanizados e nos rostos funcionais sentíamos o ar desértico e a implacável prisão à que a humanidade se condenou. Armadilha e sem esperança.
A obra de Fuhro é construída numa técnica primorosa, severa, econômica. A complexa visão do artista foi sustentada por meios adequados criados por ela mesma. Nos últimos anos o motivo dos instrumentos musicais tornou-se constante. Um novo personagem do artista. E uma metáfora de oculta doçura: é possível criar uma música para a vida, quem sabe um solo improvisado de jazz, música que ele tanto amou. O artista nos deixou fragmentos do nosso tempo. Improvisos fulgurantes de um solo que só ele podia executar.
2010.
A densidade da imagem.
Eu sou daqueles que retornam. Existem livros que eu li tantas vezes que perdi a conta. Em Fernando Pessoa eu naveguei tanto que ele se tornou para mim o nome de um oceano. De Jorge Luis Borges certamente eu sou um de seus melhores amigos, pois li inúmeras vezes o que ele pensou, incluindo ai a absoluta maioria de suas entrevistas, que sou seu intimo. Foi um escritor que o Augusto Meyer me indicou – “tem um escritor para você, J.L. Borges” - quando eu era muito jovem e até hoje fico espantado como Meyer me conhecia tão bem. Os jovens pensam que são muito complexos e enigmáticos, mas o Meyer foi um sábio que cruzou na minha vida...
Neste mês de maio retornei duplamente, a Porto Alegre e à obra de Henrique Léo Fuhro. Tratava-se de uma exposição feita a partir da Coleção Dalacorte, um recorte deste acervo e, no caso, uma mostra cujo interesse era o próprio artista Henrique Léo Fuhro e uma amostragem diversificada de sua obra (Curadoria de Renato Rosa, Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, Porto Alegre). A exposição se estruturou em núcleos temáticos e cronológicos, mas sem a obrigação de traçar uma linha do tempo ou acompanhar o artista em seu percurso. Trilha e não evolução! Em tantas obras ficava evidente a defesa intrínseca e intransigente da cultura mais avançada da nossa época. Em Fuhro as questões do tempo e do espaço são evidenciadas com maestria; ora é um continuun espaço-tempo einsteiniano; ora é uma simultaneidade quântica. Ou, então, as virtualidades da cibernética, a emissão de imagens, a multiplicação de visualidades, a repetição incessante.
Em certo momento, Henrique Léo Fuhro foi muito premiado e esteve em importantes exposições. Era visto como um artista pop, com certa particularidade, certo viés, um olhar individual na maré de tantos iguais.  É possível qualifica-lo assim, já que o grande costuma conter a parte. Mas este todo, a obra deste artista, escapa de todas as maneiras desta redução. Onde nele estará o amor aos objetos de consumo? Onde a louvação do inerte? Na sua obra estará a fascinação pelo produto industrial produzido em massa?









É de uma essencialidade extraordinária a obra de Fuhro. Comove nesta obra as engrenagens estáticas, as máquinas-não-máquinas, organismos metafísicos a pairar fora do tempo e do espaço, eternos e protótipos. E as figuras repetidas, multiplicadas sabiamente num espaço dominado, podem também ser entendidas como estruturas metafísicas, como representações simbólicas do homem. Mais até do que isto, pois se entendidas como estruturas metafísicas, seriam imagens protótipos geradoras da resultante fisionomia do homem.
Mas é possível, igualmente, ver nestes “jogos de guerra”, um radical entendimento de Tanatos, o desejo de morte dos homens. E a longa série de instrumentos musicais, sublime criação humana que transforma o ar em música, pode nos parecer uma lírica reflexão sobre a arte e a transcendência. A arte pode nos levar para o além do contingente. Em Fuhro e na densidade de suas imagens é claro o convite para abandonarmos o prosaico e dialogarmos com o infinito.
2017.
Este meu retorno é uma tripla reverência. Ao Borges que não revisava exatamente os seus ensaios, mas acrescentava uma posterior visão novamente datada. Ao Robert Louis Stevenson que no “O médico e o monstro” retorna circularmente e renova o ponto de vista segundo a manifestação dos personagens. Acho que esta foi a inspiração das reavaliações de Borges, assíduo leitor que foi de Stevenson. E ao Fuhro, nesta versão de Rosa e Dalacorte, que possibilitou este retorno em 2017.
Pensei que seria oportuno um recorte, um pequeno trecho, de um poema do mestre Prévert. Ele nada tem a ver com o meu texto, salvo que tem tudo a ver, pois também ele é dos que retornam e este seu poema é sobre uma pergunta incessante. Uma pergunta que retorna sempre. E, de mais a mais, eu sempre gosto de estar em boa companhia, dai Stevenson, Borges, Prévert, Fuhro.

…Sempre a mesma
uma frase
repetida...
sem parar,
sem resposta...
o homem a olha nos olhos que se desviam
faz gestos com os braços
como um afogado
e a frase volta
na rua do Sena na esquina com uma outra rua
a mulher continua
sem se cansar…

Toujours la même
une phrase
repetée
sans arrêt
sans réponse...
l'homme la regarde ses yeux tournent
il fait des gestes avec les bras
comme un noyé
et la phrase revient
rue de Seine au coin d'une autre rue
la femme continue
sans se lasser…

[Jacques Prévert, Rue de Seine]


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor de Agulha Revista de Cultura
Página ilustrada com obras de Henrique Léo Fuhro
Foto de JK © Pedro Sgarbi
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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