quinta-feira, 3 de agosto de 2017

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Herberto Helder, sigilosamente Herberto


Creio que, com Fernando Pessoa, Herberto Helder (1930-2015) partilha a mais expressiva poesia criada no Portugal do século XX. Se Pessoa dialoga (desassossegadamente?) com o nascente mercado cultural, em Herberto, a presença mais substanciosa desse poder é algo com que ele conta no âmbito das próprias leis de produção do poema. Neste, o desmanche do real também aciona o desarme de tal investida através da extinção da figura autoral e da montagem de um sistema poético-crítico (autobibliográfico) que visa manter à distância qualquer tentativa de capitalização artística. Feita para poucos, “contra todos”, na solidão “monstruosa”, a obra de HH deixa transparecer na sua trajetória (através das vicissitudes e percalços) uma exemplar aventura literária (heróico-cínica e patética) numa época em que os discursos (ainda que singulares e idiossincráticos) se massificam: a intimidade informática e a apropriação mediática têm acabado por banalizar o estranho e o raro (antigos empecilhos de leitura), agora surrupiados e rebaixados a bens de troca.
O poema é, para Herberto, um “utensílio” sem fim útil; é objeto de “manejo”, aparelho de conversão do real a cataclismos permanentes e insondáveis, de onde renasce constantemente outro. E o poeta, movido pela paixão do perigo e pela prática assídua de testar as demarcações da linguagem e a jurisdição do sentido, radicaliza (assim) o lírico implodindo-o em grandes abalos semântico-rítmicos. Esse é o exercício da “inocência”, desse “estado clandestino na ditadura do mundo”, embora se saiba que as “coisas ludibriam-nos” e que “ludibriámo-nos nas coisas”. Mas é por aí que o poeta bebe nas “noites ocultas” e penetra no “recôndito dos tempos”, [1] possíveis vias de recondução ao mito e ao primitivo Orpheu: maneira de alcançar (por outro viés) o limiar da utopia?

A bicicleta pela lua dentro – mãe, mãe – / ouvi dizer toda a neve. / As árvores crescem nos satélites. / Que hei-de fazer senão sonhar / ao contrário quando novembro empunha – / mãe, mãe – as telhas dos seus frutos? / As nuvens, aviões, mercúrio. / Novembro – mãe – com as suas praças / descascadas. [2]

De propósito dirigida ao erro, esta obra acerta construindo-se por um regime de suspensão (de que Cobra, em 1977, já dera claros sinais, visto que grande porção de seus exemplares fora corrigida (diversamente e à mão) pelo próprio autor); regime ditado pelo selo do precário e da errância impresso aos originais, num desafio à manipulação marqueteira. Mas é, sobretudo, a partir de 2001 que esse pendor para a reescrita, para o reajuste, para a auto-correção fica sublinhado enquanto princípio evidente e regedor. Poesia Toda (de 1996), acolhendo as futuras publicações, passa a ser depurada em nova edição, numa obra que HH (paulatinamente) vai decantando em quintessência: primeiro como Ou o Poema Contínuo: Súmula (de 2001), depois como O Poema Contínuo (de 2004), depois como A Faca não Corta o Fogo – Súmula & Inédita (de 2006), depois como Ofício Cantante (de 2009) e, por fim, como Poemas Completos (de 2014) – dúbio título, aliás, visto que não acolhe o póstumo Poemas Canhotos (2015) ou o quer de fora. A obra helderiana, poema contínuo e móvel, revisitado e reatualizado com persistência, se oferece (então) como a prova material e inequívoca do lugar privilegiado onde se morre e se nasce ritualisticamente na linguagem.


No entanto, na medida em que a glória (essa “danação”!) esquadrinha a obra e o autor ausente, criando-lhes uma mitologia e estimulando a vendagem dos volumes inéditos que (desde 2008) vinham sendo publicados (A Faca Não Corta O Fogo, Servidões, A Morte Sem Mestre e Poemas Canhotos, praticamente esgotados antes mesmo dos lançamentos) – o poeta parece buscar nestes uma saída que recuse o prestígio e o marketing, revertendo (a seu favor) o impasse causado (por essas mesmas razões) à sua própria escrita. Os poemas (entretanto alçados à publicação por uma macro-editora portuguesa) trabalham agora a desmitificação do poeta, o empobrecimento da poesia (daí, a dicção “facilitada” que por vezes praticam), a precariedade da vida e dos esforços, sempre baldados que, afinal, desembocam (na prática) nas “servidões” a que o próprio Herberto se sabia entregue: a gravação do cd com suas récitas poéticas como “oferta” ao leitor e, por último, a sessão fotográfica de despedida. A míngua também é (para o caso) lírica, e HH ingressa numa era escatológica onde, tanto anuncia o fim dos tempos, quanto procede a uma auto-execração amarga:

e eu, que em tantos anos não consegui inventar um resquício metafísico,/ponho todo o empenho no trânsito das minhas cinzas:/oh, retretes terrestres com destino final nas grandes águas marítimas:/glória atlântica,/ índica megalomania das tripas!”

A transmutação recíproca do amador na coisa amada (emblemática camoniana do tratamento poético helderiano e legenda de sua obra) passa a ostentar agora a distância intransponível entre ambos: “a coisa amada nas montanhas/amador ao rés das águas”, tal como o atestam as derradeiras obras, aliás, já sem “simbolismo nenhum”. Vivendo de uma “morte módica” até o dia 23 de abril de 2015, quando de fato falece, Herberto Helder parece se ressentir de não ter-se suicidado “com o gás dos últimos dias” – e tece, contra si mesmo, a sua “Elegia de um Burro”. [3] O póstumo Poemas Canhotos exibe um baixo e jocoso e compassivo tom que homenageia as “imperfeições” (às quais não faltam sequer a redondilha e a rima em “ão”), numa irônica liturgia pública em que HH se imola a si mesmo – malgrado o fato de uma de suas metas (como tantas outras) ter sido fartamente alcançada:

até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza. [4]


NOTAS
1. Luzes da Galiza #516. Sada, Coruña, Inverno/Primavera 1987.
2. Ofício Cantante. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.
3. Respectivamente Poemas Canhotos (Lisboa: Porto Editora, 2015) e A Morte Sem Mestre (Porto: Porto Editora, 2014).
4. A Faca Não Corta O Fogo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008.


***

MARIA LÚCIA DAL FARRA (Brasil, 1944). Poeta e ensaísta Autora de A Alquimia da Linguagem. Leitura da Cosmogonia Poética de Herberto Helder. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1986. Página ilustrada com obras de Felícia Leirner (Brasil), artista convidada desta edição.

***

ÍNDICE # 100

EDITORIAL | 100 números e a dinâmica imóvel do cotidiano

AGACÍ DIMITRUCA | Tiempos griego-españoles

ALFONSO PEÑA | Conversa con Claudio Willer

ANDREA OBERHUBER | O livro surrealista como espaço transfronteiriço: Lise Deharme e Gisèle Prassinos

ANTONIO CABALLERO | Harold Alvarado Tenorio y un libro a cuchilladas

DANIEL VERGINELLI GALANTIN | Eliane Robert Moraes: perversos, amantes e outros trágicos

ELVA PENICHE MONTFORT | Fotografía y surrealismo: fetiches de Kati Horna

ESTELLE IRIZARRY | Eugene Granell: correspondencias entre creación pictórica y literaria

ESTER FRIDMAN | A linguagem simbólica no Zaratustra de Nietzsche

FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 1

FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 2

FLORIANO MARTINS | Enquete sobre Erotismo e Sexualidade – Parte 3

HAROLD ALVARADO TENORIO | 100 años de poesía en Colombia

ISABEL BARRAGÁN DE TURNER | La isla mágica de Rogelio Sinán

JOSÉ ÁNGEL LEYVA | Víctor Gaviria: El poeta y el cine

LUIS FERNANDO CUARTAS | La ilusión siniestra de los cuerpos y los engaños de la metamorfosis

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Herberto Helder, sigilosamente Herberto

NICOLAU SAIÃO | Recordando uma comunicação de Mário Cesariny

RICARDO ECHÁVARRI | El poeta Arthur Cravan em México

SUSANA WALD | En el espejo retrovisor

ULISES VARSOVIA Esencia y excedencia de la poesía contemporánea

ARTISTA CONVIDADA | FELÍCIA LEIRNER | GISELDA LEIRNER | Felícia Leirner, minha mãe


***

Agulha Revista de Cultura
Número 100 | Julho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80






Nenhum comentário:

Postar um comentário