quarta-feira, 20 de setembro de 2017

NEIVA DUTRA | Hermeto Pascoal: o grande bruxo dos sons


Falar sobre Hermeto Pascoal não é uma tarefa fácil. Um músico “diferente”, que costuma tocar uma quantidade enorme de instrumentos, dentre os quais chaleiras, tubos, sons de animais, instrumentos de sopro, vozes e guitarras é, na verdade, mais um bruxo do que um músico.
Referência da música brasileira para todo o mundo, arriscando a ir além do samba e outros ritmos para tornar-se um ícone da música mundial, alcançou a qualidade de uma música universal, que reúne todos os estilos, envolve todas as manifestações.
Curiosamente, o único país onde houve tentativas de elitizar a música de Hermeto Pascoal foi no Brasil...
Aclamado em todo o mundo, essencialmente brasileiro, Hermeto Pascoal nasceu em 22 de junho de 1936, em Lagoa da Canoa, Arapiraca, Alagoas. Sua vasta produção musical apresenta, desde sempre, duas premissas principais: a pesquisa e a inovação.
Explora novos sons, novas harmonias, estilos e correntes, não havendo estilo musical, do jazz à música brasileira, com o qual não esteja familiarizado.
Seu interesse e criatividade são estimulados por todas as coisas. Explora ao máximo os mais diversos instrumentos para produzir sons únicos, criando traçando sempre novos caminhos na música, porque descobre a música que reside em todas as coisas.
Desde a expressão máxima que pode ser alcançada por um instrumento até a harmonia do canto dos pássaros, não existem limites para o que a sua obra é capaz de produzir.
Inúmeras são as referências já feitas a ele e sua obra, como um dos maiores, mais virtuosos, talentosos e criativos multi-instrumentistas e compositores da história da música latino-americana.
Desde a infância tocava por longas horas, de maneira autodidata, porque não podia sair ao sol em virtude do albinismo, e sua curiosidade o levou a conhecer uma infinidade de instrumentos e, inclusive, a fabricar alguns.
Aos oito anos já tocava acordeom e começou a tocar tamborim e flauta. Com o irmão mais velho, começou a tocar todos esses instrumentos nas festas locais.
No início da década de cinquenta sua família mudou-se para Recife e, aos quatorze anos, passou a atuar como músico profissional, tocando acordeom e flauta nas rádios locais. Junto aos irmãos, também albinos, começou a tocar piano, formando seu primeiro trio. Durante a adolescência e a juventude, ganhava a vida tocando em clubes e rádios.
Em 1958 mudou-se para o Rio de Janeiro e, em 1961, para São Paulo, em busca de oportunidades. Durante este tempo converteu-se em exímio pianista e acordeonista, somado a todos os outros instrumentos que já dominava.
Na segunda metade dos anos sessenta, contribuiu com diversos álbuns clássicos da bossa nova, dentre os quais se destacam Edu Lobo, Elis Regina e César Camargo Mariano. Também vinculou-se a Sivuca.
Em 1964 formou o Sambrasa Trio, com Airto Moreira e o baixista Humberto Clayber, dedicado a tocar jazz ao estilo americano. Em 1966, em pleno auge dos programas de televisão, Airto Moreira, que tocava em um grupo chamado Trio Novo, com Heraldo do Monte e Theo de Barros, convidou Hermeto a juntar-se ao grupo, com o qual foi conhecido internacionalmente: o Quarteto Novo, um dos mais importantes grupos de música instrumental da história do Brasil.
O Quarteto Novo contava com uma técnica magnífica e uma harmonia refinada e foi um dos pontos de fusão do jazz com os ritmos brasileiros.
Em seguida, Hermeto Pascoal fez parte do grupo Brazilian Octopus, onde tocava flauta. Em 1968, escreveu seu primeiro arranjo musical, para a música Choro do Amor Vivido, de Eduardo Gudin, que estreou no 4º Festival da Música Popular Brasileira da TV Record.
Com a experiência adquirida nos anos sessenta, em 1979 se trasladou para os Estados Unidos, a convite de Airto Moreira, para trabalhar com Miles Davis, primeiramente fazendo alguns arranjos e, em seguida, colaborando na gravação do disco Live evil, no qual há duas composições originais de Hermeto Pascoal.
Considerado por Miles Davis “o músico mais impressionante do mundo”, gravou muitos temas que Miles queria incorporar ao disco, gravando-os em seu primeiro disco, intitulado Hermeto e reeditado em CD com o título Brazilian Adventure.
Em 1973 voltou ao Brasil e gravou A música livre de Hermeto Pascoal, retornando em 1976 aos Estados Unidos.
No retorno, gravou Missa dos Escravos, onde se destaca a utilização de grunhidos de animais, um precedente em sua constante experimentação. Seu próximo disco foi Zabumbê-bum-á, lançado em 1978.
Com um extenso repertório de temas originais, foi convidado a participar dos mais importantes festivais do mundo, com um dos músicos mais criativos e talentosos do momento.
Em 1978, participou do Festival Internacional do Jazz de São Paulo e, no ano seguinte, do Festival de Jazz de Montreaux, onde gravou seu primeiro disco ao vivo, o que significou a consagração definitiva de Hermeto como uma estrela do jazz de vanguarda.
Também em 1979 participou do Festival de Jazz de Toquio – Live under the sky -, com enorme êxito. Em 1980 editou o álbum Cérebro magnético, um dos mais aclamados pela crítica especializada e o levou a uma extensa turnê por grande parte da Europa.
O trabalho seguinte foi Hermeto Pascoal & Grupo, de 1982, dando continuidade a sua obra única, cada vez mais alcançando novas dimensões.
Em 1984 lançou Lagoa da Canoa, município de Arapiraca, um passo fundamental na exploração musical, incorporando o que ele chama “o som da aura”, que se refere à musicalização dos sons e verbalizações cotidianas da vida na cidade. O disco é uma homenagem à sua terra natal.







 Os próximos discos foram Brasil Universo e Só não toca quem não quer, lançados em 1986 e 1987, respectivamente. Representam o desenvolvimento da versatilidade de Hermeto Pascoal como compositor e a continuidade de sua persistente exploração de elementos experimentais.
Em 1988 lançou Por diferentes caminhos e, no início da década de setenta, já era considerado uma lenda viva, pela genialidade e originalidade. Em 1992 gravou Festa dos deuses, iniciando uma turnê pela Europa que incluiu shows na Alemanha, na Suíça, na Dinamarca, na Inglaterra e em Portugal.
Entre 23 de junho de 1996 e 23 de junho de 1997, realizou um ambicioso empreendimento criativo: compor uma música por dia, durante um ano. Escreveu Calendário do som, que contém 366 composições musicais, uma para cada dia do ano, nos mais diversos gêneros. Sua ideia era dedicar uma música para cada pessoa, no dia de seu aniversário.
Esse legado foi publicado em 1999 e muitos músicos interpretaram seus temas, especialmente a Itiberê Orquestra Família, liderada por Itiberê Zwarg, baixista da banda de Hermeto por mais de trinta anos, que gravou um disco em 2005 com vinte e sete desses arranjos. Também a Banda Hermética, da Argentina, arranjou vários temas do livro, lançados em disco no ano de 2007.
Ainda em 1999 lançou Eu e Eles, no qual toca todos os instrumentos. Em 2003, com Mundo verde esperança, reuniu antigos temas a novas composições, com alta tecnologia de som.
Em 2006, junto com a esposa, a cantora Aline Morena, lançou Chimarrão com rapadura, explorando as raízes da música brasileira, o jazz e a experimentação. Bodas de Latão, de 2010, também junto com Aline Morena, deu continuidade estilística ao disco anterior.
No ano de 2009 realizou uma turnê por diversas cidades da América do Sul, incluindo São Paulo, Recife, Brasília, Goiânia, Santiago do Chile e Buenos Aires.
Inesgotável, Hermeto Pascoal tem gravados mais de três mil músicas e outras mil escritas, ainda não gravadas. Suas composições foram interpretadas pela Orquestra Sinfônica do Brooklin, pela Filarmônica de Berlim, pela Orquestra Sinfônica de São Paulo e diversas outras.
Como um dos músicos brasileiros mais influentes na segunda metade do século XX, tocou com os maiores nomes da música brasileira e internacional. Seu virtuosismo impressionante em cada um dos instrumentos que toca, somados a todos os outros instrumentos que cria com praticamente qualquer objeto ou som disponível, renova-se a cada ano.
O contato com a música de Hermeto Pascoal sempre é uma surpresa. Cada um de seus “experimentos” vai além, comprova uma genialidade que vê no cotidiano um aborrecimento e sempre se atreve a realizar novas e ousadas experiências nas quais, quando considera limitados os recursos de um instrumento, busca os sons da natureza, de seu corpo, de qualquer coisa que esteja à mão.
Afiançando a genialidade de Hermeto Pascoal, o documentário de Marilia Alvim registra o seu processo criativo durante a gravação da trilha sonora de Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife, de Mário Carneiro.

ACAMPAMENTO MUSICAL


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NEIVA DUTRA. Jornalista. Dirige Di anima verbum, onde este texto foi originalmente publicado, 06/22/2015.

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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado | Farnese de Andrade (Brasil, 1926-1996)
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Jovino Santos Neto
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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