segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

CLAUDIO WILLER [sobre] Floriano Martins



1. O LEITO 23 | No final de 2008, Floriano Martins viajou à Austrália. Excepcionalmente, não para encontros de poesia e certames afins, dentre tantos de que participou ou que organizou, porém para visitar a filha, lá residente. Acometeu-o, como sequela da viagem, uma embolia pulmonar que o obrigou a hospitalizar-se. Desse período internado, obviamente com a vida em risco, pois embolias pulmonares matam, resultou um conjunto de poemas. Compõe um livro intitulado Blacktown Hospital Bed 23, inédito até sua inclusão em A vida inesperada,[1] extensa reunião de sua poesia.
Aliás, não propriamente reunião: incluiu livros já publicados, porém, alguns, modificando-os. E com adição de outros inéditos. Portanto, sua produção até o presente é obra em movimento, labiríntica, desafiando o princípio lógico da identidade e não-contradição não apenas no plano do texto, da “escritura” propriamente dita, mas no conjunto, na organização editorial. Quando for preparada uma edição completa de sua obra, crítica, com todas as notas e variantes, seu organizador certamente fará o mesmo julgamento de Claude Pichois, o experiente estudioso de Baudelaire, que preparou também sua edição crítica para a Bibliothèque de la Pleiade. Ao terminar, para a mesma coleção, a edição das Oeuvres Complètes de Gérard de Nerval, outro que se reescrevia, além de desprezar a ideia de autoria, alternando e confundindo textos seus e alheios, declarou: “Foi um inferno”.
É claro que o biografismo tem limites. E esse conjunto de poemas, Blacktown Hospital Bed 23, interessa, não pela excepcionalidade da circunstância de sua criação, porém pela continuidade e consistência com relação ao todo constituído por sua produção. Enorme produção, diria, de poesia em primeira instância, e também de variadas prosas – no contexto de criações que inutilizam a distinção tradicional de poesia e prosa –, ensaios, entrevistas, dramaturgia, artes visuais e colaborações com músicos e videomakers, somando-se à atuação como editor de obras impressas e no meio digital, das entrevistas e às inumeráveis traduções.
Nessa experiência-limite no leito 23 do hospital de Sidney, o poeta permanece fiel a si mesmo. Outros se converteriam, ou ofereceriam apenas um lamento. Floriano, não – reitera-se. Poderá morrer, sabe que está em um lugar onde “A cama desliza por uma savana de cadáveres” enquanto sente “O hospital com seus corredores prolongados dentro de mim. / O peito queimando suas últimas árvores”. Sua consciência é alterada por “minha dor apaixonada pela morfina”.
Mas a relação entre a linguagem e o corpo é reafirmada:

Rios de fogo por dentro do corpo.
Escritura de sangue escavando a memória.
Eu fui buscar o abismo esquecido em teu ventre.
Mundo em que tudo se dissipa e nenhum equilíbrio.
Pernas como archotes iluminando os vãos do desejo.
Eu queimo por ti e tu me açoitas com um papiro de urgências.
A hora aterrorizante das injeções.
Língua incendiada por palavras inaceitáveis.
Deus que me reduz a uma torrente de dores.
Eu me perco sempre onde quer que te busque.
Vasculho em meu sexo um conforto impreciso.
A noite se dilui como uma sopa de gemidos.
Alguém me tire daqui.
Eu não quero eu não posso morrer antes de mim.

Importa observar a perfeita continuidade de passagens como essas com relação ao conjunto da sua obra. Pode perder as forças, estar em um lugar inteiramente indesejável – mas continua o mesmo poeta. É capaz de paradoxos como estes: “morrer antes de mim” e “eu me perco onde quer que me busques”; de ver abismos e de identificar corpos e abismos, assim como em toda a sua obra; de criar imagens poéticas como o “papiro de urgências” ao defrontar-se com este “Mundo em que tudo se dissipa”.
Assim, o hospital acaba sendo apresentado como microcosmo de um universo que se incendeia, conforme já indicado por títulos como Alma em chamas e Fogo nas cartas. Nele, Eros e Tanatos se confrontam e confundem em uma relação de constante tensão. As duas entidades ou forças motrizes estão lá; aparecem para velar o enfermo; postam-se à sua cabeceira. Sente que vai morrer, mas reafirma o amor e a pulsão erótica:

A noite se estreita ao percorrer minha alma.
Nos olhos dela a ferida inflamada,
a chaga das horas com que me decifras.
Umas vozes dentro, outras bem fora, ausentes inomináveis
Os mortos dizendo fogo, a dor coberta de cinzas.
Ventríloquo enfermo que não reconhece a si mesmo,
eu bebo em teu sangue a fábula da morfina.
Esta noite foi composta no pudor das tuas coxas,
para que insistas estou louco jamais voltarei aqui.
Quem dirá em mim, como um retrato resumido,
o quanto te amei enquanto te repetias?
Tua voz acumulando virtudes.
Eu me declaro um homem acabado, sem que me digas quem fui.
Não é possível, eu sei, e, no entanto, me tens por um fio.
Recorda-me de uma vez só para que eu não sofra tanto.

A quem se dirige o poeta? À “ferida inflamada”, à “chaga das horas”? Ou à amada? A uma companheira que o consola com o “pudor das tuas coxas”, a quem declara “o quanto te amei enquanto te repetias?”. Uma interlocutora ou musa real ou imaginária, materializada pelo delírio? Ou à própria morte, ao mesmo tempo ameaçadora e sedutora? Poesia é múltipla, polissêmica, todos sabemos disso. E a imagem feminina assim evocada pode dar conta de todas as possibilidades, Afrodite e Hécate ao mesmo tempo – lembrando, a propósito, a ambivalência dessas criaturas míticas, o modo como divindades da Grécia clássica e arcaica são doadoras da vida e causadoras da morte, a exemplo de Dionísio, regenerador e psicopompo, e Artemis, deusa da natureza fértil e matadora.
Merece atenção o verso final, o “Recorda-me de uma vez só para que eu não sofra tanto”. A memória pode ser ao mesmo tempo um esquecimento, um apagar-se do presente, e um renascimento; uma partida e uma chegada. Em um livro anterior, Estudos de pele, já a invocara: “Dá-me de beber na cuia da tua memória”.
Seria essa memória a anamnese platônica? Nessa cosmovisão, lembrar-se é libertar-se; conhecer o que precede a vida, e o que a sucederá.
Esse tema – do par memória-esquecimento como libertação – está em outros de seus poemas. Por exemplo, quando declara, em um livro precedente, no qual o título expõe uma poética, Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus e Lozna:

Há que esquecer tudo sem tornar-se louco. Há um ponto extremo em nossos atos, um horror insondável de adentrar o território sombrio da vontade criminosa. É uma expressão fugidia de nossa vaidade. Tudo se dá em seu ponto extremo, em seu ponto de transfusão.

Na tradição, o ponto extremo é sublime; corresponde à superação de contradições ou antinomias. Aquele mesmo ponto vislumbrado por André Breton no Segundo manifesto do Surrealismo, quando, depois de denunciar “as velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda agitação insólita por parte do homem”, faz esta afirmação:

Tudo indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios.[2]

Para Floriano, o ponto é alcançado através de uma anamnese, porém ao contrário; ou dialetizado, através de um confronto de esquecimento e memória, onde um, o esquecimento, é condição para o outro, a recuperação do conhecimento. E para defrontar-se com o “horror insondável”. Enxerga-se, nessa passagem, o leitor não apenas de Breton, mas de Georges Bataille – esse seu oposto complementar.

2. CIDADES, RUÍNAS, LABIRINTOS | Cabe confrontar os poemas escritos “in extremis” naquele Blacktown Hospital Bed 23 – chamá-los de agônicos seria um pleonasmo – com outro conjunto de textos. Esses, de exaltação amorosa, que compõem o livro Estudos de pele.
Desde já, um contraste evidente: a localização de Blacktown Hospital Bed 23 é fixa e bem definida; aquela de Estudos de pele é múltipla. Trata-se de um duplo livro de viagens, ou um livro de viagens em dois planos. Um, por lugares deste planeta; outro, pelo corpo. Por uma espantosa diversidade de localidades, diria, como atestam poemas intitulados “Uma noite em Huelva”, “Uma noite em Salvador”, “Uma noite em Santo Domingo”, “Uma noite em Sidney”, “Uma noite em Tenerife”, “Uma noite em Tunja”, “Uma noite em Londrina”, “Uma noite em Cincinnati”, “Uma noite em Fortaleza”; e, como se fosse para culminar, “Uma noite no abismo”, “Uma noite na metade do mundo”. O conjunto de topônimos em títulos de poemas significa, portanto, o mundo todo.
Não obstante haver alguma referência, indicação do lugar onde os poemas foram escritos, as cidades físicas, geograficamente existentes, também são cidades-corpo; ou, antes, captações dos momentos em que o corpo pode ser uma cidade.
Por exemplo, ao situar-se em Salvador:

Encontramos ali a ruína de um império que ainda não havia existido
Pouco se distinguia, por traços na pedra, dos inúmeros que o antecederam, porém este, de alguma maneira, nos pareceu o centro de tudo quanto o tempo suspeitava de nós.
O aposento sagrado da vertigem, a máscara perdida do fogo,
o filho alheio ao olhar voluptuoso do pai.
O teu corpo deslizava nos sulcos propostos pela argila.

É comum falar-se em cidades-leito; mas nem sempre nesse sentido, como cenários de intensos encontros – com pessoas existentes, com memórias, com ambas? – a exemplo de Santo Domingo:

A noite estava acesa em nossos corpos e o frio com seu
violino convincente
me punha a pedir que pusesses em meu peito o
que houvesse de melhor no século
que acabara de nascer em tuas mãos. […]

Tal associação de encontro amoroso e cidade já havia sido enunciada no precedente Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus e Lozna. Diz: “O mundo sem a presença da mulher é a conhecida parábola de uma cidade em sua plena destruição. Os espelhos da frivolidade são a virtude de tal cidade.” A recíproca: encontros amorosos constroem cidades. Ou, antes, erigem labirintos.
Aliás, aquele livro de 1998 já apresenta algo que atravessa toda a sua criação poética. É a capacidade de, em meio a uma escrita desenfreada, por vezes torrencial, oferecer paradoxos bem sintéticos: “Os deuses encomendaram estrelas ao declínio de um corpo.”
Também, chama a atenção em Estudos de pele, além dos binômios corpo-cidade ou encontro amoroso e cidade, a qualidade das metáforas ou imagens poéticas, uma constante em sua obra: “Escrevi o teu nome na folha extraviada de um sonho.”[3] – pela delicadeza, a frase situa o poeta na linhagem dos bons interlocutores de um Paul Éluard. Os símiles: “Teu corpo chegou aqui como uma chuva” Os paralelismos: “A noite escoa suas sílabas pelas escadarias do teu corpo”. Os oximoros, como este, especialmente sintético: “Os panos nus”.
Há – e essa característica é partilhada por outras de suas obras – trechos de poemas que poderiam ser de uma narrativa ou que sugerem um relato: “Ao encerrar a conta imaginei que o gerente me diria que o quarto 703 há anos está lacrado, quem sabe por conta de algum crime ali ocorrido.” E que também poderiam ser – talvez alguns o sejam – transcrições de sonhos: “À noite ela o visita com seus corpos saindo do espelho”.
A propósito, cabe assinalar uma recíproca: além da criação propriamente dramatúrgica, Floriano é autor de um livro que se apresenta ou é apresentado como novela, narrativa em prosa, Sobras de Deus.[4] Memorialística, ou apresentando-se como tal. Mas da qual podem ser recortados trechos que caberiam perfeitamente em suas obras propriamente poéticas:

As vozes confundem-se todas, tormentosas.
Sonhos e pesadelos comparecem mesclados.
O que escutamos sob as raízes extraviadas
pode vir de qualquer um dos seres, terríveis todos.

Além das menções ao corpo e sua complexa relação com a linguagem, ao mesmo tempo de antagonismo e de uma complementaridade que busca ser continuidade, há outros temas ou categorias constantes em sua obra: ruínas e labirintos. São símbolos equivalentes. E Floriano sempre soube disso, ou sempre levou em conta essa equivalência. Já em Alma em chamas, o livro de 1998 (portanto, escrito antes de Estudos de pele), proclamava, colocando na mesma sequência esses símbolos:

Os labirintos são um tributo à ressurreição. Um sábio sussurra: a realidade é uma erudição. Fui um mago impotente diante do fogo. Meu corpo passando através do anel. A plástica do abismo provocando risos. Diante de ti, rompe o dique meu torvelinho secreto. Fui um mago, um falcão, um andarilho. O movimento agora é nossa ruína. Permaneçamos mortos.

“Delírio”? O poeta tomou algo que lhe desencadeou um fluxo verbal? Não, se examinarmos o trecho – e os tópicos do labirinto e das ruínas – valendo-nos de uma mediação crítica de qualidade. Por exemplo, aquela oferecida por Gustav R. Hocke em seu relevante Maneirismo: o mundo como labirinto: [5]

A lenda de Dédalo e do labirinto começa a espalhar-se a partir dos cultos religiosos nas grutas desde a era da pedra. “Grotesco”, etimologicamente, vem de gruta.  Dele já falamos quando tratamos dos meandros labirínticos do Castelo de Santo Angelo. Daí surgiu o “estilo ornamental” e este preparou a arte “abstrata” do nosso tempo, espiritualmente bastante pobre. […] O que representa o labirinto nas civilizações antigas? Uma metáfora “unificadora” para tudo aquilo que o mundo apresenta de previsível e imprevisível. Os meandros levam a um ponto central. Só eles levam à perfeição. Os fundamentos de algumas pirâmides egípcias possuem formas labirínticas. Descobriu-se, há pouco tempo, que os fundamentos da Acrópole de Atenas e do túmulo de Augusto em Roma são verdadeiros labirintos. No palco do antigo Teatro de Atenas descobriu-se um mosaico que representa um labirinto.

Alguns ensinamentos ou categorias a reter das observações de Hocke. Um deles, uma espécie de dialética: labirintos e pontos centrais, quer sejam sublimes, absolutos ou desesperadoramente terríveis, são interdependentes. Não pode haver um centro sem um labirinto – e reciprocamente. Outro, que a desordem aparente de criações como esta oferecida através da obra de Floriano, são réplicas ou simulacros do cosmos, da verdadeira ordem ou desordem das coisas. E que os autores da família a que pertence – não só aqueles especificamente associados ao surrealismo, porém os integrantes de uma linhagem que vem desde a Antiguidade e que já protagonizaram confrontos entre os “aticistas” adeptos do classicismo e da clareza, e aqueles “asiaticistas” apreciadores do disfarce, da obscuridade, vistos como semeadores da desordem – são demiurgos: criam mundos, movidos por um ímpeto totalizante.
As 580 páginas de A vida inesperada, entre outras de suas publicações, são, portanto, a condição ou caminho para que haja uma síntese; para que seja atingida a unidade, ou, ao menos, alguma verdade.


3. AS PALAVRAS E TODAS AS COISAS | Importa, para a apreensão do alcance da poesia de Floriano, avançar no exame da polaridade representada por esses dois livros aqui comentados em maior detalhe, Blacktown Hospital Bed 23 e Estudos de pele: Eros e Tanatos. Está presente ao longo de toda a sua obra. E desde o início, com A outra ponta do homem, de 1998, no qual é apresentado um confronto, implausível à primeira vista, entre o protagonista da peça De repente, no último verão, de Tennessee Williams e o episódio de Paolo e Francesca da Rimini, imortalizado na Divina Comedia de Dante Alighieri. Coloca frente à frente um sedutor perverso, Sebastian Venable, que acaba esquartejado e devorado por garotos selvagens em uma praia (em uma inflação de metáforas, pois os filhotes de tartarugas nas Ilhas Galápagos são devorados por aves de rapina e Sebastian pode ser associado ao mártir flechado, o santo católico adotado como patrono por homossexuais), e uma exaltação do amor sublime, com um trecho metalinguístico, sobre a leitura da saga de outro par de amantes infiéis, Lancelot e Guinevere – Galeotto fu ‘l libro e chi lo scrisse[6] – que já ocupou bastante os comentaristas, por confundir autor e obra.
Floriano proclama:

A morte não é ninguém.
A morte é uma ciência, uma poética, uma religião.
Ninguém morre.

Antecipa, entre outros, este trecho de Duas mentiras, livro de 2006, em que o enlace ou confronto de vida e morte culmina com uma reafirmação da vida:

Os mortos se escondem por toda parte em nós.
Cobrejam quando o assunto é terreno e lavram
suas asas quando o vento lhes é benfazejo.
Afinal, já estão mortos e de nada podem valer.
Que ajam assim os vivos já é outra doutrina,
tornada a imaginação um distúrbio e a crença
uma encenação desprovida de toda originalidade.
Numa noite assim teu corpo desce sobre o meu
e a minha nudez é tanta que a tens com tudo,
e é tão bom que me penetres, que tuas árvores
sejam pássaros e teus casebres nuvens, e a flor
de teu sexo seja afável no meu e os mortos
não caibam em cena sequer na memória, pois
eu verdadeiramente te amo e te quero bem vivo.

Mas os versos tão intensamente líricos, declarando que o amor transcende a morte, tornam-se paradoxais por serem precedidos por este trecho, em tom falsamente confessional, levando a relembrar que o título da obra é Duas mentiras (duas? infindáveis, diria): “Não posso contar a ninguém que te matei, nem o que fiz de teu corpo”.
Vê-se novamente o recurso frequente na obra de Floriano: no poema, trechos que parecem recortados de uma narrativa ficcional, porém deixando o leitor em suspenso, pois não é exposta a trama, menos ainda um desfecho. Sugere que o conjunto – extenso conjunto, reitero – de seus poemas é composto por trechos de uma narrativa cósmica, absoluta, abrangendo todas as possibilidades dos acontecimentos, da linguagem e das relações entre ambos, palavras e coisas. Uma visão que lembra Jorge Luis Borges, dando mais sentido à atenção que dedicou a esse extraordinário autor (através, inclusive, de uma coletânea de entrevistas).
Para avançar na interpretação de passagens como essas, tão ambivalentes, nas quais amor e morte parecem confundir-se, em uma síntese impossível, cabe recorrer a um dos grandes pensadores do século XX, Norman O. Brown, o autor de Life Against Death – The Psychoanalitical Meaning of History.[7]
Um enunciado capital de Brown:

Se a morte é uma parte da vida, se há um instinto de morte assim como um instinto de vida (ou sexual), o homem está em fuga de sua própria morte assim como ele está em fuga de sua própria sexualidade. Se a morte é uma parte da vida, o homem reprime sua própria morte assim como ele reprime sua própria vida.

Relacionar-se com Eros é então, conforme Brown, defrontar-se igualmente com Tanatos:

A própria fórmula de Freud – “A finalidade de toda vida é a morte” – sugere que em nível biológico vida e morte não estão em conflito, porém são, de algum modo, o mesmo. Isso equivale a dizer que existe alguma espécie de unidade dialética, como Heráclito disse que havia: “É a mesma coisa em nós que está viva e morta, desperta e adormecida, jovem e velha: por uma inversão, o primeiro é o último e o último é, por sua vez, o primeiro.” Assim chegamos à ideia de que vida e morte estão em alguma espécie de unidade ao nível orgânico; que ao nível humano estão separadas em opostos conflitantes; e que ao nível humano a extroversão do instinto de morte é o modo de resolver um conflito que não existe no nível orgânico. Então, a neurose permanece, como deveria ser, um privilégio humano; vida-e-morte não adoecem a natureza.

Daí esta recomendação do poeta, já em Alma em chamas:

Escolhe para morrer uma camisa limpa.
Anotações de um incerto desprezo pela espécie.
Quem o acordará para a morte devida?


4. O MUNDO ÀS AVESSAS | A civilização, argumenta Brown em Life against Death, com seus monumentos, das pirâmides aos arranha-céus, sugere que a atividade “econômica” no mundo é, na verdade, uma fuga da morte.
A poesia de Floriano expõe uma espécie de avesso dessas civilizações que deixaram monumentos, pirâmides, arranha-céus. Daí as paisagens predominantes, nos trechos que poderiam ser tomados como fragmentos de narrativas, feitas de ruínas, associadas a abismos e labirintos. Um mundo, como em Teatro impossível, onde “A Biblioteca está em chamas”, pois “Eles se foram, além do nível do fogo. O que resta ao final é o indizível”.
No mesmo livro, enuncia, em tom veemente:

Eles se foram. Aqui apenas os escombros de suas obras. Pessoas passam por elas e não se perturbam. Lembram as palavras de Blake sobre a tarefa de abrir os mundos eternos. Diante de mim este mundo em chamas.

“Eles”, os que se foram, deixando apenas ruínas, quem seriam? Que mundo é esse, de escombros e incêndios remanescentes? Aquele dessacralizado, abandonado pelos antigos deuses, conforme lamentara Hölderlin, e por isso registrado apenas nos “Microfilmes das visões dos antigos sábios”?
A resposta a esse estado de coisas, à dessacralização, desencantamento ou esvaziamento do mundo, seria ela a “literatura absoluta” de que fala Roberto Calasso em A literatura e os deuses[8], através da qual as divindades banidas retornam, voltam a manifestar-se?
Nela, na literatura absoluta, diz Calasso, “nos interstícios daquele teatro, já se abrem, diante dos olhos de todos, as vastas cavernas onde ressoam, como sempre, os nomes dos deuses.”
A observar, no trecho de Calasso, as categorias que também aparecem, de modo reiterado, na obra de Floriano: teatro, cavernas, deuses. Calasso as projeta igualmente, em modernos, como o Mallarmé de seus textos mais criptográficos, como o soneto com rimas em yx e uor e as anotações sobre o Livro definitivo que corresponderia ao universo, quanto em monumentais criações arcaicas, como aquelas das mitologias da Índia, com suas proliferações de enredos e divindades geradoras e destruidoras.
Observe-se ainda que, em Calasso, “teatro” é uma categoria mais geral, abrangente, incluindo a poesia – a mesma percepção de Floriano, ao intitular um de seus livros de Teatro impossível. E ao criar poemas dramáticos, nos quais manifestam-se vozes de personagens, como os misteriosos protagonistas de Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus e Lozna.
Sem dúvida, pertencem a essa categoria, da “literatura absoluta”, os hipérbatos, metáforas ou imagens em série, sempre constituídas por deslocamentos, a exemplo desta, de Teatro impossível:

A noite desfigurando-se enquanto, em silêncio, Gabriela descascava seus olhos famintos e mascava  triângulos velozes que se despediam de todos, uma alegoria de nervos fora do lugar, tudo em semelhança com resplendores afogados  para quem não conhecesse o idioma dos sonhos.

É apresentado, de modo especialmente original (mas ao mesmo tempo permitindo comparar a passagens do Peixe Solúvel de Breton), um mundo invertido, onde é trocada a relação do que seria sujeito ou objeto: “Um espelho caminha por entre as ruas, atormentado por imagens que insistem em acusá-lo de demasiada passividade.”
E que:

Já não olha para parte alguma. Reflete um vazio ainda mais carente de sentido. Diante de tudo, qual a extensão da nossa reação elementar? E já de tal maneira decaído no abalo de sombras decompostas, o espelho se retrai e toda forma se cala. A plateia vocifera, desambientada. Qualquer que seja a maneira com que o espelho prove sua humanidade, jamais será aceito se recusar espelhá-la. A ilusão não teria outra dieta mais favorável à sua gula.

A série toda de poemas que compõem o Teatro impossível é feita dessas inversões da relação sujeito-objeto; e do que seria a relação lógica, ou instrumental, utilitária, entre as coisas; e dessas com os seres humanos:

Ao afastar a cômoda uns dias retidos caíram por trás como fulgores que fossem reencontrados. Lâmpadas disformes soletravam bosques por todas as ranhuras de seus corpos desconhecidos. Ramagens de objetos acariciados pelo esquecimento. […] A mobília não festeja as chamas na casa como se um novo quadrante fosse instaurado em sua visão de mundo. Não há magia sem a consciência de seus ingredientes? Quanto custa sonhar contigo?

Faz parte da inversão de relações a confusão ou troca de lugar “natural” entre as partes e o todo, como esta metonímia: “As vozes iam chegando para o ensaio”. Evidentemente, esse procedimento não é exclusivo deste livro, e adiante, em Sonho de uma última paixão, o leitor irá encontrar – entre tantas outras citações possíveis – “Cogumelos caminham nus pela casa”.
É nesse contexto – da troca ou inversão de um lugar “natural” ou lógico das coisas – que deve ser examinado seu simultâneo apreço e subversão da noção de autoria. Evidencia-se em todas as ocasiões – inúmeras – em que atuou como tradutor e como organizador de antologias. Como editor e divulgador dos outros, inclusive em uma coleção importante de contemporâneos portugueses[9] e na enormidade das colaborações que publicou, por anos a fio, desde 1999, na Agulha Revista de Cultura, nas séries Banda Hispânica e Banda Lusófona no meio digital, na preparação de edições e coleções para editores independentes como a Nephelibata e a Sol Negro de seu parceiro ativo Márcio Simões, culminando na editora que criou, ARC Edições.
E como entrevistador – uma de suas modalidades prediletas: conheci-o, pessoalmente, como seu entrevistado, para uma série sobre contemporâneos que preparava já no início da década de 1980. Sem dúvida, a culminância dessa atuação está no recente Um novo continente – Poesia e surrealismo na América,[10] o mais completo levantamento e a mais minuciosa interlocução com surrealistas e afins deste continente de que dispomos – ou de que se dispõe, em escala mundial.
E, principalmente, pela quantidade de obras em parceria, com destaque para os belos livros em companhia de Viviane de Santana Paulo, Abismanto[11] e Em silêncio,[12] nos quais dificilmente se percebe onde termina um e começa outro dos coautores, assim como em Ciclo Cyclame[13] com Zuca Sardan e Overnight Medley,[14] com Manuel Iris. Soma-se um livro como Sonho de uma última paixão, de 2013, que integra A vida inesperada, assim apresentado: “Este poema é um diálogo direto e apaixonado com a poesia de Julio Herrera y Reissig, Marosa di Giorgio, Armanda Berenguer e Luis Bravo”.
A destacar, ainda, nesse contexto, uma espécie de meta-antologia, o valioso Memória de Borges,[15] em dois volumes: coletânea de entrevistas feitas por uma diversidade de  outros autores. Obra referencial, é uma multiplicação de diálogos.
Perfaz, assim, uma conexão da parceria com a intertextualidade, apagando seu limite: de um modo ou de outro, sempre mostrando que a criação original é, em primeira instância, leitura; e, consequentemente, diálogo, exteriorizado de diferentes modos. Algo que é igualmente reafirmado em suas epígrafes e na riqueza de alusões e citações dentro de seus próprios poemas.
Embora tenhamos tantos bons exemplos precedentes de obras em parceria, como o irônico Álbum zútico de Rimbaud e Verlaine, a plenitude dessas criações coletivas realiza-se, inequivocamente, no âmbito surrealista, bastando lembrar a quantidade de obras escritas em parceria por Breton, Soupault, Char, Éluard e outros grandes nomes desse movimento. E, em seus ensaios sobre surrealismo, Floriano sempre deu destaque ao caráter coletivo desse movimento, ao entender a criação como algo que ultrapassa o âmbito individual: “O surrealismo introduziu, no âmbito da poesia moderna, a ideia da poesia como um bem comum.”[16]


5. OS OUTROS | “O Eu é um outro” – isso, o enunciado famoso de Rimbaud, já foi não apenas citado, porém repetido até a saciedade. Mas quem é o “outro”? Em Floriano, uma entidade plural e coletiva, como se vê. São “outros”. E o conjunto ou totalidade de outros está aí para dar lugar ao que é efetivamente real, ou constitutivo do real: a linguagem, o símbolo. Floriano, aquele que almeja a desaparecer por trás dos símbolos, ou a confundir-se com eles.
É sob esse aspecto que deve ser interpretada sua dupla atuação no campo das artes visuais: como criador e como parceiro e interlocutor de outros criadores.
Aliás, uma atuação que tem como figura exemplar um artista bem traduzido e divulgado por Floriano, o dadaísta e surrealista Hans Arp, simultaneamente poeta e criador visual. Ganhou uma edição sobremodo recomendável em que é posto em companhia de Vicente Huidobro,[17] outro autor torrencial e o formulador do “criacionismo”, conforme o qual o poeta é equiparado a um demiurgo, “pequeno deus”, criador de mundos. A propósito, um estudo comparativo mais atento apontaria afinidades entre criações de Floriano e algumas das vertiginosas prosas poéticas de Huidobro, notável não apenas como autor do extraordinário Altazor.
Como se sabe, a criação propriamente pessoal de Floriano nesse campo, das artes visuais, é constituída predominantemente por colagens. Aliás, semelhante escolha possibilita um paralelo com suas preferências musicais. E não só pelo jazz, arte da recriação das possibilidades expressivas de instrumentos e da voz: na época em que passamos a colaborar mais ativamente, externava seu entusiasmo por Hermeto Pascoal, um notável excêntrico musical, que chamou a atenção pela capacidade de transformar coisas em instrumentos, em um procedimento algo paralelo à “assemblage”, reunião de objetos, do surrealismo. 
Essa modalidade, a colagem, já aparece entre cubistas, especialmente em Braque, mas como um componente do modo cubista de representar. Mas ganha autonomia com o surrealismo. É uma arte da transformação do já existente, de uma figura ou representação precedente; da incorporação de outra coisa; sobreposição de autorias. De um outro, pelo artista, de um modo exacerbado pelo Max Ernst de Une semaine de bonté.
Adquirem relevo, nesse contexto, do diálogo com as artes visuais e da atuação nesse campo, suas recentes obras em parceria com o artista plástico Valdir Rocha ou inspiradas especificamente em obras suas– Lembranças de homens que não existiam, de 2013, O sol e as sombras, de 2014[18] e Reflexões sobre a ironia de 2014-2015 – adicionando-se ao que já escreveu sobre Valdir como crítico ou estudioso de artes visuais.[19] Pelo seguinte: procede-se a um duplo ataque à representação. Valdir é exímio na criação de ambiguidades, de sugestões de outras coisas, através da transformação de uma representação em algo ambivalente, por isso enigmático. Típico de seu procedimento é a série em que vai operando sobre uma imagem conhecidíssima, uma das fotografias de Marilyn Monroe, convertendo-a, não propriamente em abstração, porém em figura de múltiplas possibilidades, em Sós.
Em Lembranças de homens que não existiam, um enunciado sintético da tensão entre subjetividade e objetividade: “Os olhares foram passando, como ângulos desencontrados […] O instante nunca soube como multiplicar-se. Os olhares, sim.” Esse é, justamente, o sentido ou um dos sentidos da contribuição de Valdir: o aparentemente uno, no mundo supostamente objetivo, ocupado por coisas, é múltiplo, plural, ao ser olhado – evidentemente, ao ser visto por quem sabe enxergar.
E o olhar revela este breviário de aparentes impossibilidades, que se apoia em uma sucessão de anáforas – a repetição do “Este”, procedimento típico da poesia mais oral ou até litúrgica – sustentando imagens poéticas:

Este é o seio da jornada dos castigos descarnados.
Esta é a rosa do infortúnio e sua estrada extinta.
Este é o deserto de círculos incendiários.
Esta é a nuvem que se esconde em um armário impossível.

Desnecessário, talvez, deter-se sobre o sentido da nuvem, convertida em símbolo exemplar do encontro de subjetividade e objetividade por – entre outros – Leonardo da Vinci, Baudelaire e Breton; ou, na terminologia que seria mais familiar a Leonardo, do encontro da ideia, no sentido platônico, e da coisa sensível (conforme bem comentado por Gustav R. Hocke, na obra já citada). Enfim, é a nuvem como pretexto para a projeção e consequente superação, à qual convidam, em registros distintos, verbal e visual, nesses três livros, Floriano e Valdir.
Resulta em um pequeno tratado ou aula de pensamento analógico – na modalidade abissal, dos possuídos pelo “demônio da analogia” sobre o qual escreveu Mallarmé – em O sol e as sombras, de 2014.


6. A SOMA DE TODOS OS DESLOCAMENTOS | Poucos contemporâneos – dentre os integrantes de enormes famílias que incluem descendentes de autores tão díspares como Lautréamont, o Joyce de Finnegan’s Wake e Jorge Luis Borges – mobilizaram recursos da linguagem até esse extremo para expressar sua desconfiança ou descrença na linguagem como representação: “É fácil levar um texto a recorrer a seu equipamento de incêndio. […] Os meus sentidos são tão confiáveis quanto os teus.”
Há uma frase de Floriano que tem o valor de um axioma: “Tudo no mundo parece ter uma aversão natural à representação como fato real”. A dúvida ou confusão propositada quanto à relação entre palavras e coisas é acompanhada por aquela sobre sujeito e objeto: “As cenas observam os espectadores”. A consequência – ou aplicação do postulado – consiste em coisas terem vida própria, como se vê em capítulos desse livro, Teatro impossível – e esse título poderia aplicar-se ao conjunto da obra de Floriano –, intitulados “A banheira”, “As cortinas”, “O espelho”.
O poeta não se limita a adotar ou simular a perspectiva ou uma suposta perspectiva da realidade tal como vista desde as coisas. Também a clássica separação dos sexos é posta em cheque. Por vezes, escreve como se fosse uma mulher, um “eu” feminino: “Um bulício de ansiedade, teu pênis passa sobre mim e abro as salas para a descida variada da ilusão”. Recíproca daqueles livros em que, a cada poema, corresponde um nome de mulher.
O procedimento é exacerbado em A efígie suspeita, livro de 2009/2010 – porém, aparentemente, inédito até sair em A vida inesperada. Se a obra toda de Floriano pode, sem dúvida, ser qualificada como original, então esse livro é originalíssimo.
É um dos conjuntos de poemas que parecem previamente pensados, obedecendo a um plano – assim mostrando, mais uma vez, contrariando o que professam os cartesianos da poesia, que o fluxo imagético e o plano ou definição prévia do formato de um livro não conflitam. Nela, os poemas ou prosas poéticas têm títulos que são nomes de mulheres: “Ligia”, “Branca”, “Sandra”, “Berenice”, “Regina”, “Diana”, “Susana” e outras.
Mas quem se expressa, quem fala através desses poemas? Ouve-se a voz do autor ou aquela de Ligia, Branca, Sandra, Berenice, Regina etc.? Há uma indeterminação. Nas belas passagens como esta a seguir, na qual a dicção algo clássica – em um ritmo compassado, com um verso final em que som e sentido, imagem e aliteração se harmonizam – é suporte da imagética surrealista, não se distingue se “Henriqueta” é o tema, objeto ou a enunciadora, a “persona” que fala:

Escuto teus passos inacessíveis em mim,
testemunho de ânsias e afagos fluentes,
formas espantosas que abrigam teu rosto.
Rastejas como uma evidência de pálpebras,
simulas um duplo e sua sombra refletida.
Estás diante de mim e jogas com teu olhar:
pequenas pedras pousadas no leito do rio,
peixe vibrante que também é o caule sagrado
da selva de encaixes que vislumbras em mim.
Água e fogo reescrevendo teu nome, o guia
de fontes insuspeitas por todo meu ventre.
Caminhamos como um feitiço em cujos lábios
a febre despe seus fungos, alternando
as rochas: onde fixo teu gozo, fitas meu riso.

Quem escuta esses passos? Quem rasteja “com uma evidência de pálpebras”? Quem tem seu nome escrito em “água e fogo”? Quem enuncia o poema, Henriqueta ou Floriano? Tanto faz.
Há, pode-se dizer, uma transcendência da palavra neste “displicente alfabeto de algas” – displicente coisa nenhuma, porém extremamente rigoroso – através do qual se opera a transformação do “O Eu é um outro” em “O Eu é todas as outras.” E essa metamorfose traz de volta, em outra vestimenta, as tópicas, temas e imagens características de Floriano, como os incêndios, ruínas e labirintos: “Teu incêndio forma uma cadeia de labirintos, / despojos aflitos com seus rios queimados”. E, mais adiante, em Sonho de uma última paixão, reafirmando a identificação de cidades e corpos,

Nossa instabilidade é uma cidade em ruínas
Perdemos a pesca dos valores, a magia dos corpos compartilhando a visão de um mesmo tempo […]
[…]
A cidade não segue mais seus habitantes, a cidade se perde sem saber o que fazer com seus degraus, nem mesmo o vento sabe por qual rua entrar.
A cidade se descolore.
A cidade somos nós.
E já não alcançamos as rachaduras sem cálculo do tempo.

No precedente Joias do abismo, há um trecho que se encerra com uma frase que poderia ser epígrafe ou chave desse procedimento:

Corremos para lá, juntos. Quando chegamos já não havia um único som e toda a cozinha estava tomada por uma intrigante ordem. O que teria ocorrido ali? Quantos somos, afinal, sem que o percebamos?

A observar que a pergunta é procedente, tanto sob um ponto de vista psicológico e filosófico, quanto estritamente literário. A indagação sobre quem somos nasce com a consciência e a linguagem – ou vice-versa, com a linguagem, constitutiva da consciência. A criação dos mitos é a tentativa de responder a ela. Contudo, o que Floriano empreende não corresponde a oferecer respostas, porém a exacerbar a pergunta, assim tornando-a refratária à quantidade de respostas oferecidas desde os primórdios do racionalismo grego, dos primeiros embates entre o mythos e o logos.
Em Joias do abismo, uma dupla mistificação, ou exposição de que não sabemos quantos somos, ou que somos tão infinitos quanto as possibilidades oferecidas pela palavra, pela criação poética. Os poemas aparentam ser trechos de uma narrativa. Mas o foco oscila. Às vezes, é na terceira pessoa: “Eduardo voltou a fitar o vazio, acariciando um mamilo quase de todo despregado daquele corpo imóvel.”
O mesmo procedimento é levado adiante em outras de suas obras. E não só naquelas nas quais a “persona” ou enunciador também é ou se faz passar por uma mulher. Mas, também, quando inverte a relação entre as partes e o todo.
É de especial originalidade o conjunto intitulado Antes que a árvore se feche, recente, de 2010-2011, e inédito, ao que parece, até a publicação de A vida inesperada. Procede à consagração da metonímia. Os poemas não são apenas dedicados a mulheres, porém a partes do corpo ou atributos de mulheres. Alguns chegam a ser óbvios, ou de uma conexão evidente: “Voz de Alberta Hunter”, a pioneira e longeva compositora e cantora de blues, devidamente homenageada: “Quantas noites se passam ao ouvir tua voz dentro de mim?” Mas escreve, não propriamente sobre sua contribuição poético-musical (que me faz evocar um belo depoimento de Allen Ginsberg, sobre a qualidade poética daqueles primeiros blueseiros, a começar por Ma Rainey), porém registrando as reverberações dessas criações em sua sensibilidade:

Quanto silêncio imaginando decifrar o que talvez nem tenhas dito?
Um caminho de trevas, esqueletos de ausência, inventário de enigmas.
Tanto planejei que não voltarias a me castigar que não apago teus passos circundando minha loucura.
Não quero que saias nunca daqui.

Seguem-se “Lábios de Alejandra Pizarnik” – a extraordinária poeta argentina, autora de textos de uma delicadeza única, sim, mas por qual razão, ou por qual fetichismo, os “lábios”, e não o conjunto da pessoa e de sua obra? –, “Pulsos de Anja Lechner” – a bela violoncelista alemã –, “Pernas de Anne Darwin” – quem? a “viúva da canoa?” –, “Músculos de Annie Leibovitz” – a notável fotógrafa, mas por qual razão os músculos e não o olhar, a não ser por aquela lógica secreta que preside as metáforas? –, “Espinhaço de Bjork” – mas novamente apresenta-se a pergunta, qual a razão de deter-se no “espinhaço” e não na voz da cantora e compositora islandesa? –, “Calcanhares de Bonnie Parker” – consagrando a temida assaltante, e com uma frase que pode valer para o conjunto: “Buscamos o requinte, e não a coerência. / O que fazemos não é para ser compreendido jamais.”
Vêm ainda, em um conjunto de notável heterogeneidade, talvez celebrando a multiplicidade das mulheres e da condição feminina, “Mãos de Clarice Lispector”, “Memória de Consuelo Benevides” – a mãe do poeta –, “Joelhos de Dora Ferreira da Silva” – obrigando a repetir a pergunta em tom mais aflitivo ainda, pois, afinal, conheci bem a extraordinária poeta, tradutora e pensadora, e a última coisa que me chamaria a atenção nela seriam seus joelhos – mas o que importa é Dora ser evocada em um tom passional e elevado, ao mesmo tempo fixando bem sua contribuição cultural:

O mito se vê bem daqui. é tarde da noite e ele acende a lanterna esquecida.
Em tuas pernas chorei pelos fragmentos do sol que se perderam.
A elas agradeço que nada permaneça.
[…]
Era para estar ali um dia, entre todas as coisas perdidas.
Não estive.
Perdi a conta do mito.

Ainda recordo teu rosto, mas não sei quem sou quando ela transcreve as letras do sol em suas pernas.

Seguindo a mesma lógica, ou inversão completa da lógica, ainda se deterá nas “Ancas de Emily Brontë”, nos “Braços de Janis Joplin”, no “Umbigo de Lee Miller” – a fotógrafa e modelo –, nos “Ombros de Madeline Millán”, nas “Veias de Mattie Ross” – a mocinha personagem de Bravura Indômita… –, na “Bunda de Nina Simone” – Floriano sofreu um banimento do Facebook por exibir a conhecida foto da notável cantora, exibindo, não a bunda, mas o púbis – e, ainda, no “Ventre de Ruth Underwood” – que se apresentou com um músico referencial para Floriano, Frank Zappa –, nos “Seios de Sara Saudkova” – a fotógrafa –, nos “Ossos de Susana Wald” – companheira e parceira de Ludwig Zeller, o surrealista chileno – e finalmente nas “Coxas de Zofia Beszcynska” – poeta polonesa, autora de livros infantis.
O que dizer desta série de deslocamentos? Em primeiro lugar, que se constituem em uma celebração da diversidade. Permitem vislumbrar um mundo infinito, feito de partes distintas de mulheres diferentes. São – evidentemente – mais um ataque frontal à ideia da literatura como mimese, da linguagem como representação, ao evitar aquilo que seria esperado ou previsível em homenagens: o retrato do rosto, do corpo inteiro, as informações sobre a obra ou atuação pública. Quem procurá-las, à mimese e à representação, irá perder-se em um labirinto – para invocar um termo ou categoria preferencial para o próprio Floriano.
Esse erudito extraordinário, Ernst Robert Curtius, que dá a impressão de ter lido tudo, tem um capítulo de seu Literatura europeia e Idade Média latina sobre “Metáforas de partes do corpo”.[20] Observa, a propósito do “paladar do espírito” de Alain, precedido pelos “olhos da alma” de Platão, que “a faculdade física é trasladada para a parte espiritual do conhecimento”. Mas, adotada essa interpretação, tomando os poemas e os temas de Antes que a árvore se feche como metáforas, teríamos um conjunto sobremodo estranho de exemplos dessa figura. O nexo lógico, evidente nos inumeráveis exemplos clássicos, é destruído – salvo em um ou outro dos casos, já que Clarice Lispector escrevia com as mãos. Contudo, não há como captar qual poderia ser a relação de uma obra como O morro dos ventos uivantes com os quadris da sua autora, Emily Brontë.
Nesse painel disjunto, a metonímia, troca de lugar da parte e do todo – encontra seu ponto de chegada ou sua culminância. Mais ainda, se pensarmos Antes que a árvore se feche como algo combinatório, em que as partes poderiam ser intercambiáveis.
Principalmente, ocorre-me a categoria “desejo metonímico”. Trazer a psicanálise para o campo deste ensaio, em especial a colossal contribuição de Lacan, poderia levá-lo a um beco sem saída; ou a fazer que se perca de vista a especificidade da contribuição do autor de A vida inesperada. Afinal, todos nós estamos irremediavelmente separados, em vida, da unidade, do todo a que aspiramos, restando-nos as partes, os objetos parciais, os fetiches. E já projetei categorias psicanalíticas, inclusive essa do desejo metonímico, e associado a ela, a de “gozo primitivo”, em Lautréamont – e, por mais que se possa identificar um Floriano leitor de Lautréamont, ou observar paralelismos, a começar pelo modo como a narrativa em prosa é subordinada à poesia, ou a uma lógica própria da poesia, e principalmente evocando o lema de Poesias, “A poesia deve ser feita por todos, não por um”, que Floriano realiza de modo tão exemplar – também se perderia alguma particularidade de vista.
“Cartografia do desejo”: este termo, já o vi ser aplicado, e bem aplicado, à contribuição do beatnik Jack Kerouac.[21] Não obstante, pode ser dito que as criações de Floriano, em conjunto, e uma obra como Antes que a árvore se feche, em especial, com sua superabundância do deslocamento e da metonímia, se constituem em uma cartografia do desejo de uma especificidade e originalidade ímpares. Ou, em outros termos, mais diretos: ninguém fez uma coisa dessas, antes.
Não obstante, esse vocábulo, desejo, merece ser grifado. E acompanhado pela citação desta passagem de O Arco e a Lira de Octavio Paz:

O reino da poesia é o do “Oxalá”. O poeta é “varão de desejos”. Com efeito, a poesia é desejo. Mas esse desejo não se articula no possível, nem no verossímil. A poesia não é o “impossível verossímil”, desejo de impossíveis: a poesia é fome de realidade. O desejo aspira sempre a suprimir as distâncias, conforme vemos no discurso por excelência – o impulso amoroso. A imagem é a ponte que liga o desejo entre o homem e a realidade.[22]

Em resumo, a boa poesia é expressão do desejo sempre maior que seu objeto, por isso irrealizável. Daí só poder ser expressa através de enormidades, dessas violências contra a linguagem, contra a lógica e contra a ordem natural das coisas, antevistas e propostas por Baudelaire, plenamente manifestadas por Lautréamont, e levadas a extremos em textos como estes de Floriano.
Leituras projetivas, em que alguma obra mais recente enriquece a interpretação de outras precedentes – a exemplo do que Jorge Luis Borges expôs em Kafka e seus precursores: aí está um procedimento, tomando Antes que a árvore se feche como ponto de partida, que ampliaria a compreensão e multiplicaria as interpretações.


7. CALEIDOSCÓPIOS | Cabe, ainda, proceder a mais algumas observações sobre obras que realizam ou parecem realizar um plano. Isso, a definição prévia da estrutura de uma obra, já foi utilizado como argumento, por uma crítica mais idiossincrática, quando não ignara, como argumento para dissociar autores do surrealismo; para argumentar que não, não são surrealistas.
Argumento falso, evidentemente, desde que se conheça surrealismo – afinal, a obra inaugural, Les Champs Magnétiques, foi planejada antes de ser executada, e algo como L’immaculée conception, de Breton e Éluard, decorre de um plano, de uma escolha de temas, que precedeu seus autores se entregarem ao delírio.
Situar Floriano como surrealista é inevitável – mas fazendo que essa qualificação seja sempre acompanhada por observações sobre o mau uso desse termo, “surrealismo”, em nosso ambiente cultural; o mais frequentemente, para desistir da interpretação, para descartar o autor examinado como ininteligível. Evidentemente, o caso extremo de mau uso, inclusive por gente qualificada, é a expressão “Brasil, país surrealista”. Antes o fosse, pois estaríamos, então, vivendo a utopia, e não, como no presente, uma distopia. Desordem generalizada é uma coisa, “desregramento”, aquele dos sentidos, caminho para a vidência como proclamou Rimbaud, é outro. Falta de escrúpulos de dirigentes e administradores, de um lado, e estar além do bem e do mal são, igualmente, condições sem qualquer afinidade possível.
“Hermético” – como os veteranos adeptos do realismo socialista gostavam de nos alcunhar assim – é outra qualificação demasiado fácil; a não ser que se mostre a afinidade com os ensinamentos do Corpus Hermeticum e de todos os criadores que os adotaram, inclusive ao pensamento analógico. 
Todas essas inversões e ataques à representação e à lógica também podem ser interpretados, filosófica e teologicamente, como rebelião diante do desaparecimento dos deuses, como o faz Calasso, e como nostalgia do mundo mítico. É possível, contudo, avançar por esse percurso ou adicionar-lhe uma interpretação política, recorrendo aos historiadores; novamente, a esse notável pensador das artes e da literatura, em especial do maneirismo, Gustav R. Hocke.
 Através de seu enfoque, pode-se caracterizar Floriano, não propriamente como um preciosista, concettista ou eufuista, mas como um metaforista, porém da espécie selvagem.
Passemos a palavra a Hocke:

Por meio de uma breve referência às formas pré-lógicas de existência da humanidade, a elementaridade mítica do metaforismo torna-se evidente. Encontramo-nos aqui em tempos nos quais linguagem, imagem e gesto diferenciavam-se pouco entre si. A linguagem imagética (do modo como ela sempre consistiu) remete, pois, a impulsos, a estruturas pulsionais originais. Pode-se determinar se a abundância imagética, ou, então, a escassez de imagens acha-se mais próxima da origem, do absoluto? O fato é que as metáforas correspondem a uma “necessidade de abstração.” Prova disso é que, em situações de “crise”, cada forma de medo do mundo engendra um excesso, uma inflação de metáforas.[23]

Em outras passagens de seu livro, Hocke mostra o confronto entre os “aticistas”, os clássicos e neo-clássicos, adeptos da concisão e da clareza no expressar-se, associada à elegância do estilo, e os “asiaticistas”, cultores da obscuridade, praticantes da destruição ou multiplicação do sentido.
Há observações de Hocke que devem ser retidas. Uma, essa já citada, sobre “situações de crise”, pela atualidade ou contemporaneidade – por mais que sempre seja possível identificar crises, e por mais que essas estejam, etimologicamente, associadas à criação, passamos por um momento especialmente merecedor dessa qualificação.
Outra, correlata:

O absolutismo político censura o maneirismo “engenhoso” e “agudo”. Como sabemos, Cícero falava em nome da ordenação latina, quando ele criticava o asiaticismo maneirista. O moderno é sempre “agudo”. Em todos os estados nacionais  da Europa, impelidos à representação fechada, ele foi sentido como algo ávido de novidade, reluzente, perigoso. […] No despertar do século XVI, a cultura palaciana ainda se aprazia  com suas produções, conquanto que se tratasse apenas de um “jogo”, mas, já no período elizabetano, as determinações da censura se tornaram mais e mais severas.[24]

Hocke procede, portanto, à politização desse expressar-se à primeira vista obscuro, hermético, abstruso, enigmático de poetas e outros artistas, quer os chamemos de maneiristas, perspectivistas, concettistas, ou, mais contemporaneamente, surrealistas, e todos os demais que aparentam abandonar a função comunicativa da linguagem ao privilegiarem aquela expressiva. Manifesta-se como insubmissão contra a ordem estabelecida e seu correlato artístico, a criação ordenada, “clara”, supostamente lógica, bem comunicativa, bem referencial.
 Casos exemplares, examinados nesta obra de Hocke e na que a precede, também sobre maneirismo: os “asiaticistas” de Alexandria, incluindo-se, é claro, os criadores e cultores do Corpus Hermeticum, em confronto com a República e o subsequente Império Romano que se afirmava; artistas de um Renascimento tardio, Michelangelo e Leonardo inclusive, indignados, ao final de suas vidas e sua criação, com o regramento que lhes era imposto pela Contra Reforma; “loucos” daquele período, como Torquato Tasso e, especialmente, Giordano Bruno com sua estética dos “furores”; todos os gênios da virada do século XVI para o XVII, Shakespeare inclusive, antecipando o horror que se avizinhava, consubstanciado em confrontos político-religiosos, desde a Noite de São Bartolomeu até a sanguinolenta Guerra dos Trinta Anos; aqueles que, antes da catástrofe, reuniram-se na corte de Rodolfo II em Praga: não apenas artistas, porém inventores e pesquisadores de um conhecimento total, a exemplo de John Dee e Athanasius Kircher; os românticos, desde William Blake, sucedido pelos “Poetas do Lago” e de Novalis e seus companheiros do grupo de Jena, sentindo-se imprensados entre o colapso de absolutismos monarquistas e a afirmação do absolutismo napoleônico; a ambiciosa tentativa de uma expressão total de Victor Hugo, a aniquilação de Gérard de Nerval e a afirmação do paradoxo de Baudelaire, em confronto com um regime ditatorial, aquele de Napoleão III; “poètes maudits”, “decadentistas”, rebelando-se contra a afirmação da burguesia; vanguardistas, também repudiando burgueses e antecipando novas catástrofes (lembrando que as primeiras manifestações declaradamente vanguardistas são de 1907, por artistas que já sentiam no ar o que sobreviria em 1914); surrealistas, mostrando o quanto era ilusória a ordem que parecia prevalecer entre 1918 e 1939.[25]
Todos, a justo título, podem ser incluídos no que Octavio Paz denominou de “tradição da ruptura”; ou no “Clube do fogo do inferno: Alquimistas Xamãs Beatniks” imaginado por Roberto Piva em Ciclones[26].
Momentos especialmente representativos, penso, desses embates entre cultores da ordem e da aparente desordem no campo da criação artística em geral e da poesia em especial, em uma sinistra década de 1930: a perseguição nazista aos representantes de uma “arte degenerada” e o modo como foi desbaratado um riquíssimo experimentalismo russo ou soviético em favor de um “realismo socialista”. Nos dois casos, cabe ainda lembrar, com os opressores afirmando como valor um rigoroso neo-classicismo e um perfeito figurativismo. Situações extremas, portanto, de um confronto entre o que Hocke denominou de “asiaticistas” e “aticistas”; ou, se quiserem, de artistas pomposamente oficiais e genuinamente marginais.
A ligação de Floriano com o surrealismo é inequívoca e importante. Tomando o enorme conjunto de suas traduções, inclusive das antologias que preparou, das entrevistas e artigos, do sistemático trabalho editorial, em favor especialmente de autores do continente americano e de língua espanhola, pode-se designá-lo como o mais ativo estudioso e divulgador de autores surrealistas, afins ao surrealismo ou de algum modo mais legíveis sob uma ótica surrealista. E, correlatamente, como o autor brasileiro mais frequentemente convidado para participações em mostras e coletâneas em outros países.
Mas, justamente por isso, volto a insistir, impõem-se alguns cuidados ao se situar ou classificá-lo como surrealista. São duas qualificações que têm servido como rótulo fácil, utilizado, não para interpretar um autor, mas para descartá-lo; ou para garantir a tranquilidade daqueles que se contentam com classificações e localizações em alguma série histórica: “surrealista” e “hermético”. Pior ainda, quando seguidas por este epíteto: “delirante”. Trinômio – este composto por “surrealista”, “hermético”, “delirante” – que serve para demarcar aquilo de que os supostos bem-pensantes sempre manterão distância.
Em um ambiente cultural – especialmente aquele acadêmico – que parece privilegiar a clareza ou a imediata inteligibilidade, tais categorias têm servido para circunscrever, mais que para avançar em sua interpretação.
Se for para situar Floriano, em primeiro lugar deve ser levada em conta a especificidade de sua criação. E algo à primeira vista paradoxal: seu caráter ao mesmo tempo personalíssimo – tornando qualquer uma de suas criações imediatamente identificável para o leitor mais sensível ou atento – e coletivo, ou trans-individual. Essa importância atribuída à superação dos limites do “eu” – em um contraste meramente aparente com o caráter pessoal da sua obra – o leva a valorizar, em primeira instância, o caráter coletivo do surrealismo, como já insistia, desde 2001[27] – e antes.
O intento literário e artístico de Floriano talvez possa ser entendido de modo melhor perfilando-o entre os contendores da literalidade; do domínio da “letra”, da doxa, da verdade circunstancial tomada por verdade definitiva, tal como antagonizada, de modo veemente, por Norman Brown, em Love’s Body,[28] essa obra na qual procura dar sequência ao profetismo de William Blake, autor também matricial para Floriano:

A letra morta. A metáfora morta. Apenas metáforas mortas que são tomadas literalmente, que nos possuem (a magia negra). Linguagem é sempre um velho testamento a ser tornado novo; regras, a serem quebradas; metáfora morta, a ser tornada viva; sentido literal, a ser tornado simbólico; velhice da letra a ser tornada nova pelo espírito.

Entre tantas conclamações de Floriano contra a doxa e a literalidade, talvez esta, de Lembrança de homens que não existiam, seja uma das mais expressivas, ou das mais enfáticas:

Talvez os guias estejam mais perdidos do que nós.
Talvez seja a hora de livrar-se deles.
Talvez tenhamos que rebentar todo o trajeto e rascunhar um mapa menos acidentado.

Um mapa sem milagres ou outras metáforas.
Um mapa com as linhas indefinidas de nossa alma.
Todos os dias, todas as sombras, todas as descobertas.
Um mapa refeito na medida em que a memória se recupera de cada pilhagem.


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CLAUDIO WILLER (Brasil). Poeta e ensaísta. Página ilustrada com obras de Vicente do Rego Monteiro (Brasil), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 106 | Janeiro de 2018
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[1] ARC Edições, Fortaleza, 2015.
[2] BRETON, André. Manifestos do surrealismo, Rio de Janeiro: Nau, 2001.
[3] P. 270.
[4] Florianópolis: Nephelibata, 2008.
[5] São Paulo: Perspectiva, 1974.
[6] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia – Inferno, São Paulo: editora 34. P. 54.
[7] Wesleyan University Press, 1959.
[8] CALASSO, Roberto. A literatura e os deuses. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[9] Coleção Ponte Velha, Editora Escrituras, São Paulo.
[10] Fortaleza: ARC Edições, 2016.
[11] Natal: Sol Negro Edições, 2012.
[12] Fortaleza: ARC Edições, 2014.
[13] Fortaleza: ARC edições, 2016.
[14] Fortaleza: ARC Edições, 2014.
[15] Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2014.
[16] Un nuevo continente – Antología del Surrealismo en la Poesía de Nuestra América. Caracas: Monte Ávila, 2008.
[17] ARP, Hans e HUIDOBRO, Vicente. III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes: tradução, nota preliminar e ilustrações de Floriano Martins. Natal: Sol Negro Edições/Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2012.
[18] Ambos pela ARC Edições.
[19] O mais recente, o livro Valdir Rocha e a persistência do mistério. ARC edições, 2017.
[20] São Paulo: Hucitec/Edusp, 1996.
[21] Por Penny Vlagopoulos, em um dos prefácios para a edição de On the Road – o manuscrito original. Porto Alegre: L&PM, 2008.
[22] Na edição da CosacNaify, de 2012.
[23] HOCKE, Gustav R., Maneirismo na literatura. São Paulo: Perspectiva, 2011.
[24] Idem.
[25] A observar que nenhum dos artistas e movimentos por mim mencionados deixa de ser citado nos dois livros de Hocke aqui citados.
[26] PIVA, Roberto. Estranhos sinais de Saturno, volume 3 de Obras reunidas, São Paulo: editora Globo, 2008.
[27] Na primeira versão de O começo da busca, pela Editora Escrituras.
[28] Berkeley: University of California Press, 1966.

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