segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

LÊDO IVO [sobre] Ivan Junqueira



A primeira impressão que se colhe na abordagem da obra poética de Ivan Junqueira, desde a sua estreia até agora, é a da presença de uma inconfundível voz pessoal, o sentimento que tem o leitor de estar visitando um domínio regido pela arte de fazer versos e poemas, e de saber fazê-los com admirável destreza.
Haverá de surpreender a muitos leitores que o Modernismo brasileiro, após tanta estridência e tentativas estimuladas pela busca do chamado verso livre, e ostensiva negação ou mesmo ridicularização do nosso passado poético – especialmente do Parnasianismo, que foi um período basilar de nossa cultura –, não tenha deixado nenhuma marca visível nesse poeta de alta e nobre qualificação. Mesmo a Geração de 45 e suas suburbanas subsidiárias tipográficas se mostram ausentes de seu labor poético. Somos obrigados a reconhecer que sua obra teria existido sem a estética deflagrada pela borbulhenta Semana de Arte Moderna.
A antimodernidade de Ivan Junqueira é a sua modernidade: é o outro lado de uma contemporaneidade atemporal que fecha os olhos à vertigem da escalada tecnológica e se empenha em buscar uma linha de permanência no turbilhão do dia. O ontem faz parte do hoje. É ao mesmo tempo memória e olvido, ausência e incitação à presença, legado e vivência.
Nesse ostensivo distanciamento, sobressai a característica dominante de sua poesia: o sentimento da intemporalidade, a sua imersão num tempo absoluto, que não fixa nem o dia nem a hora, e se encaminha para uma finitude total, sem qualquer radioso dia seguinte. A essa noção de um tempo não fixado, não ancorado na vida cotidiana, acrescenta-se o seu desapreço topográfico e geográfico. Os imperativos de uma noção consuetudinária da nacionalidade e da regionalidade inexistem na sua poesia. Em vão se buscará nela um indício da paisagem brasileira, captada em seus pitorescos mais sedutores ou em suas cores mais crepitantes, ou o burburinho e estridência de nossas grandes cidades. Suas paisagens são espirituais. Não as banha nenhuma luz tropical.
Ele pertence à linhagem dos poetas que situam na língua a sua verdadeira pátria: uma venerável pátria filológica que lhe permite a expressão poética e se completa com o seu amor a Portugal.
Não é sem razão que o carioca Ivan Junqueira celebrou o amor e a morte de Inês de Castro, num compromisso sentimental que, conduzindo-o às suas raízes linguísticas e psicológicas, o leva a percorrer a trilha nostálgica de João do Rio, Afrânio Peixoto, Cecília Meireles, Ribeiro Couto e outros escritores brasileiros marcados pela nostalgia da cognominada “Pátria-Mãe”. Nessa boa e até ilustre companhia, realiza Ivan Junqueira um caminho inverso ao percorrido pelos românticos Gonçalves Dias e Castro Alves, Casimiro de Abreu e Fagundes Varela e pelos modernistas Mário de Andrade, Raul Bopp e Cassiano Ricardo, pelos parnasianos Olavo Bilac e Alberto de Oliveira, que cantaram as nossas matas e os nossos mares, em cuja poesia formiguejam mitos e temas gulosa e escancaradamente nacionais. E até a alusitanizada e iberizada Cecília Meireles glosou, num poema dramático, a Inconfidência Mineira.
Esse amor de Ivan Junqueira não se limita ao acervo lírico lusitano. Estende-se a outras paragens: às ruas e ladeiras ilustres de Lisboa, às igrejas e conventos, às praças e palácios, que fazem dele um flâneur da melhor cepa baudelairiana; convívios literários convertidos em amizades duradouras; e até às comezainas e bebezainas memoráveis, guardadas amorosamente nas adegas de tascas vetustas, memoráveis, como certos vinhos verdes ou maduros, o grandioso cabrito assado do Solar dos Presuntos, a panelada de frutos do mar do Solar do Duque ou o bacalhau maravilhoso e o portentoso polvo ao forno da Casa do Além-Tejo. Não só de banquetes espirituais e livrescos vivem os poetas; como todos os homens, têm sempre fome e sede. A melancolia do taciturno Ivan Junqueira, embora considerável, não o faz desviar-se da boa casa de pasto nem de um cardápio insigne. Sua aparência ascética é um ledo engano; ele sabe farejar numa cidade desconhecida os lugares onde há boa carne e bom peixe regados a vinhos capitosos.
O culto à língua, ao seu poder de nomeação e ainda de tradução de magia e encantamento, não se circunscreve, em Ivan Junqueira, somente ao uso do idioma poético. Vibra também em sua densa e rica e altaneira prosa ensaística, na qual a reflexão crítica é sempre iluminada pela sua própria experiência criadora. Uma prosa cujos grandes modelos ocidentais são a prosa de Leopardi, Baudelaire e Valéry.
Ele, Ivan Junqueira, engasta-se na família seleta dos grandes poetas que são também grandes prosadores; dos poetas para os quais o uso inventivo da língua é uma operação total, que cobre prosa e verso e desvenda o território desafiador em que prosa e verso se enlaçam num grande casamento de amor – ao contrário de grandes poetas que só são grandes no verso, ou na mesmice de um verso repetitivo e até contagioso, de uma forma tornada fôrma pelo seu uso abusivo, e definham e se encolhem e se apequenam em prosas mancas e irrisórias.
Assim, a arte poética de Ivan Junqueira nos remete a outros territórios: o do Simbolismo e o do lavor parnasiano, nas molduras não apenas brasileiras, mas ocidentais, pois uma fina e paciente formação intelectual lhe assegurou as galas e graças de uma irrefutável ocidentalidade. Num poema como o “Poética”, só comparável ao “Profissão de fé”, de Olavo Bilac, o poeta fala belamente de sua arte de fazer poemas: uma arte vigilante, baseada em cálculos e estratégias, conduzida por um ritmo que excele ao mesmo tempo pela musicalidade e obstinada abrangência de significado:

A arte é pura matemática
como de Bach uma tocata
ou de Cézanne a pincelada
exasperada mas exata.
Mas o próprio poeta adianta que:
E mais que isso: uma abstrata
cosmologia de fantasmas
que de ti, lentos se desgarram
em busca de uma forma clara.

Escuridão e exasperação, geometria e cosmologia, clareza e obscuridade, o visível e o fantomático se fundem nessa poesia noturna, soturna e taciturna em que a voz anunciada, e que se quer lúcida e senhora de si mesma, provém das profundezas do espírito, dessa escura noite da alma, sem a qual o poeta não tem acesso ao dia, configurado em expressão poética.
Como todos os grandes poetas, Ivan Junqueira se distingue pela virtuosidade métrica e rimática, e capacidade de cinzelar o poema, tornando-o um artefato verbal. A mestria versificatória o leva a apoiar-se apenas numa unidade fonética. São numerosos, nesse poeta mais das rimas toantes do que das rimas consonantes, os poemas em que um a, um i ou um u, no fim de cada verso, asseguram a este e ao poema a sua magia e musicalidade, produzindo ludicamente o enfeitiçamento verbal, que é um dos resultados da expressão poética e uma das razões da poesia.
Embora se proclame herdeiro de uma tradição poética iniciada com Luís de Camões e Sá de Miranda, e continuada em Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Dante Milano, Ivan Junqueira sabe que não existe no passado apenas uma única tradição. Elas são várias e ele, desde a sua aparição em 1964, soube beber gulosamente nessas inesgotáveis fontes criadoras. Ele sabe que a poesia brasileira votada à durabilidade e à permanência, como toda poesia ocidental, começa em Homero e Virgílio, Dante e Shakespeare, Camões e Quevedo, prolonga-se em Goethe e Leopardi, Baudelaire e Mallarmé, Rimbaud e Walt Whitman, e vive nos poetas do nosso tempo. Ele sabe, finalmente, que a grande tradição poética não é uma servidão ou engessamento, nem uma condenação ao epigonismo, mas a base das transgressões e das rupturas, o make it new pregado por Ezra Pound.
A condição de tradutor de Baudelaire, T. S. Eliot e Dylan Thomas lhe abriu um universo que não se esgota no mudo diálogo interlinguístico, mas o conduziu a distinções imprescindíveis e especialmente a confluências, transfluências e contágios que, enriquecendo-o pessoalmente, tornando mais densa a sua bagagem espiritual, enriquecem, através de sua obra, a própria poesia brasileira.
T. S. Eliot ensinou a Ivan Junqueira que poesia é a soma do talento individual com a tradição; e ainda lhe transmitiu o sentimento do tempo, desse tempo tríbio, que remonta ao Santo Agostinho do Confissões, que deve estar na mesa de cabeceira de todos os bons poetas.
Leio, em sua notável tradução, os versos de T. S. Eliot:

O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.

A poesia de Ivan Junqueira, juncada de eruditas referências culturais e filosóficas, históricas e mitológicas, obedece a uma cronologia em que o tempo respira intemporalidade, e o fluir de hoje é o fluir de ontem e será o de amanhã.
É ele um dos poetas em língua portuguesa mais obcecados pela ideia da morte. E decerto pertence à mesma família espiritual de Augusto dos Anjos. A preocupação com a morte, a fugacidade da vida, as crepitações macabras, a vanidade de tudo, a desilusão e o desamparo permeiam-lhe a poesia. Constituem a base de seu pessimismo inextirpável, ocorrente mesmo quando festeja o amor e o corpo feminino. Não esqueçamos que ele, em 1964, aos 30 anos de idade, no verdor e vigor de uma juventude viçosa, estreou com um livro emblematicamente intitulado Os mortos, a que se seguiu A rainha arcaica, em que celebra a defunta Inês de Castro. Estuante de vida, ele já pensava na morte. E, estudante de medicina, não completou o curso que o aparelharia para melhor combatê-la.
No poema “O outro lado”, admirável e fúnebre melodia que é uma melopeia, o poeta interroga o além-túmulo. E a si mesmo ou a um outro pergunta:

Diz-me: o que haverá do outro lado?
A eternidade? Deus? O Hades?
Uma luz cega e intolerável?
A salvação? Ou não há nada?

A esse poeta reflexivo e intemporal que é Ivan Junqueira, a esse poeta temporal porque sujeito à morte que é Ivan Junqueira, a esse poeta de uma poesia solene e descotidianizada, sem friso da origem geográfica, fechada à alegria e alçada a vertiginosas paragens metafísicas, a esse matemático da noite obscura da alma, pondero: a sua pergunta é sem resposta.
Os poetas são filólogos disfarçados, que passam a vida inteira concentrados na operação linguística que é a poesia. E são também teólogos que não ousam dizer o seu nome e passam a vida inteira interrogando a existência ou inexistência de Deus.
Embora sejamos seres interrogantes, autores de uma pergunta irrespondível, devemos contentar-nos com o que há neste lado: o lado da vida, no qual se situa a poesia de Ivan Junqueira, com selo de sua durabilidade e a garantia antecipada de sua inserção numa tradição poética que ele engrandece com a sua obra e exemplo.


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LÊDO IVO (Brasil). Poeta e ensaísta. Página ilustrada com obras de Vicente do Rego Monteiro (Brasil), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 106 | Janeiro de 2018
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