segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

LEONTINO FILHO [sobre] Foed Castro Chamma



Eu quero chegar antes
Para sinalizar o estar de cada coisa
Filtrar seus graus

Adriana Calcanhoto

O INVENTÁRIO SUSPENSO | Um dos debates mais instigantes e mais complexos dentro do universo das ciências sociais e humanas diz respeito ao mapeamento conceitual da história do sujeito como figura discursiva. Debate que se estende pelas mais variadas redes do conhecimento humano, no instante mesmo em que busca apreender os mecanismos de construção dos processos de identidade desse sujeito. Dentro de uma perspectiva de múltiplos olhares, o discurso alicerçado na captação de uma realidade mais palpável do sujeito, passa, impreterivelmente, pelo resgate das principais abordagens teóricas referentes à discussão do nascimento e da morte do chamado sujeito cartesiano, o sujeito empírico, que ao pensar faz com que o mundo exista a sua volta, o sujeito que constrói toda a existência através de práticas interiores que, a partir de um pensamento individual, ilumina o mundo. Tal sujeito, com sua índole de totalidade, de exatidão, de pleno poder, de absoluta verdade e de exasperada unidade sempre esteve em perigo, sempre esteve sob fogo cruzado e sob a mira de novas e pertinentes leituras. Com a idade moderna, os suspiros das verdades e das identidades do sujeito totalizador e uno receberam ferozes investidas. Na contemporaneidade, a ameaça se concretiza como forma de fuzilamento do sujeito que ao pensar ilumina e é iluminado pela vida. Recebe, pois, de muitos pensadores, o tiro de misericórdia, mesmo assim, ainda resiste.

Essa discussão vai desaguar em outras tantas vertentes, tais como a análise dos signos constitutivos da linguagem, a subjetividade do próprio sujeito, a concepção de uma filosofia da linguagem que depura os conceitos de autor e sujeito e, em uma instância mais particular e que nos interessa mais amiúde, diz respeito à questão da autoria. Adotando-se uma postura de análise que privilegia o discurso como gerador de sentidos, uma análise centrada num referencial teórico que assume as lacunas como espaço ‘ideal’ para investigação dinâmica da identidade em permanente conflito com a alteridade, onde o sujeito é em si mesmo o Outro do discurso, a Voz que se repete e se multiplica nos desvãos de um tempo plural, uma análise que rejeita o monolítico discurso do sujeito centralizador. Busca-se assumir o complexo risco de vê no outro o elemento estruturador de sentidos que postula um número indeterminado de leituras. Para tanto, a Análise do Discurso serve-se das estratégias dialógicas e polifônicas para assumir a responsabilidade de captar, entender e interpretar as mais heterogêneas concepções de sujeito e autor, teorizando, desse modo, a respeito da heterogeneidade discursiva. Surge daí, a necessária análise das principais categorias de sujeito e de autor estudadas por muitos pensadores. 
Pretendemos, neste ensaio, discutir as relações históricas definidas dentro de uma rede textual que captura, de maneira um tanto quanto polêmica, a pertinência de certos pressupostos teóricos que colocam no centro de todos os debates, a morte do autor. Teoria esta que guarda um parentesco implícito com o nascimento e o declínio desse sujeito indivisível, monolítico, uno e totalizador, e porque não dizer, aurático e epifânico em permanente confronto com a ‘efêmera’ identidade de uma voz que só se reconhece nos intervalos e fragmentos de um discurso em construção. Essa voz autoral, escamoteada, velada e rasurada, permite-nos adentrar os escaninhos dos sentidos. Um sentido todo ele recoberto por uma lógica que se distancia, cada vez mais, da pura racionalidade, estabelecendo mecanismos de abordagem textual que possibilitam, até certo ponto, recuperar nesgas de epifanias do dizer. E cada dizer traz embutido em si, outros dizeres. A própria epifania deve ser observada na sua amplitude histórico-social e em seu processo de subjetividade.
Ao tentar mapear parte do percurso teórico desse emaranhado de vozes constitutivas do eu que formam o Outro, ou dito de modo diferente, do eu que se dissolve na sua ‘inteireza’ como cápsulas de sentido no Outro, permite-nos afirmar que o descentramento do sujeito realiza, de maneira enfática, uma nova proposta de análise baseada na leitura de dupla mão. Uma típica leitura que deve levar em consideração, não apenas o texto como produto acabado, pronto e sujeito à interpretação apenas do material visível, mas sim, o próprio processo de produção do texto – suas vinculações estéticas, seu estado de recepção, suas reações com outros discursos, sua significância simbólica e imaginária. Enfim, sua inserção histórica. Afinal de contas, não há sujeito sem história, autor sem contexto.
Partindo do princípio de que o texto literário, como discurso da representação, produz inúmeros efeitos de real, dada a sua polissêmica qualidade de distender os sentidos do dito, elegemos o discurso poético como manifestação das diferenças e semelhanças presentes na realidade social de uma determinada época. Realidade que surge, no mais das vezes, com os elementos específicos de uma expressão do real esgarçado, tal qual o autor diante do espelho: o reverso da diferença na outra face do semelhante. O texto poético veicula o espanto diante da imagem reversa, pois a poesia, em seu registro simbólico, especifica as margens de uma linguagem que capta os instantes gestuais da múltipla voz que se faz presente nas coisas. Sendo assim, o objetivo deste trabalho é a análise de algumas marcas de heterogeneidade presentes no poema A coisa em si de Foed Castro Chamma. Dividimos em dois momentos, o nosso texto: no primeiro, traçamos um quadro sintético do descentramento do sujeito e suas consequências para a leitura da chamada autoria e num segundo momento, o norte é dado pelo poema, acima mencionado.

AS IDENTIDADES DO SUJEITO: O SENTIDO HISTÓRICO | O percurso histórico que identifica o nascimento e a morte do sujeito moderno numa relação social impulsionada por forças motoras que produzem outros devires, está intimamente entrelaçado pelo profundo questionamento autoral. Para esclarecer, um pouco, o caminho desse processo de transformação subjetiva do real deflagrado em constantes mutações teóricas, recorremos a dois autores, o primeiro deles Stuart Hall, com a sua obra A identidade cultural na pós-modernidade (2000), mas especificamente no seu segundo capítulo. Outra abordagem refere-se ao teórico Antoine Compagnon, com o seu Demônio da teoria (1999), notadamente, na seção destinada ao autor (capítulo 2). Vale ressaltar que outras ancoragens são acentuadas, visto que a amplitude do tema requer um recorte mais preciso para se alcançar o objetivo traçado.

O DESCENTRAMENTO DO SUJEITO | De acordo com Stuart Hall, a extrema dificuldade de se mapear a história do sujeito moderno, passa pelas constantes mutações do próprio sujeito humano. Por isso mesmo, a figura discursiva impressa nas concepções mutantes do sujeito produz uma comunicação heterogênea entre os autores que participam da encenação escritural. A modernidade foi totalmente moldada em termos de construção social por meio de todas as transformações sofridas pela idéia de sujeito e pelas práticas discursivas oriundas da interpretação da realidade. Partindo do Iluminismo, cuja idéia do sujeito estava centrada na imagem do homem racional, científico e libertado de todos os dogmas da intolerância, René Descartes (1696-1650), influenciado pela nova visão de mundo proposto pela ciência do século XVII, colocou o sujeito individual no centro da mente, com toda a sua capacidade para pensar e raciocinar. A palavra de ordem de Descartes era o “Cogito, ergo sum” – o pensar como pressuposto para a existência, ou o mundo nascido a partir do pensamento. Com essa noção racional e lógica do sujeito – pensante e consciente –, plenamente situado no centro do próprio conhecimento, surgiu o que chamamos sujeito cartesiano. Nas palavras de Raymond Williams, citado por Hall, verificamos que:

a história moderna do sujeito individual reúne dois significados distintos: por um lado o sujeito é ‘indivisível’ – uma entidade que é unificada no seu próprio interior e não pode ser dividida além disso; por outro lado, é também uma entidade que é singular, distintiva, única.

Para esse tipo de concepção foram fundamentais muitos movimentos e revoluções ocorridos ao longo do tempo, tais como a Reforma e o Protestantismo, o Humanismo Renascentista e o Iluminismo – com a sua idéia de sujeito racional e científico, já referido anteriormente. Posteriormente, o próprio sujeito humano biologizado (a biologia darwiniana) e o surgimento das novas ciências sociais, com uma concepção mais social do sujeito, que fez nascer o chamado sujeito sociológico na modernidade tardia. Partindo daí, Hall começa a assinalar os cinco principais eixos de descentramento do sujeito, que, a partir de agora, passamos a sintetizar de maneira panorâmica:

1º. Descentramento: Louis Althusser lendo Marx

De acordo com Althusser, as relações sociais com os seus modos de produção, exploração da força de trabalho e os circuitos do capital ocupam o centro do sistema teórico de Marx tomando o lugar de uma ‘vaga’ noção abstrata do homem-individual, que até então ocupava o centro das discussões. Com isso a filosofia moderna tem as suas duas principais posições-chave deslocadas por Marx, são elas: a) que existe uma essência universal do homem e b) que tal essência é característica de ‘cada indivíduo singular’ ou seja, o seu sujeito real. Para Althusser, Marx expulsou as categorias filosóficas do sujeito do empirismo, ou de uma suposta essência ideal. A leitura althusseriana de Marx foi duramente criticada e rejeitada por muitos, pelo seu forte ‘anti-humanismo teórico’. Ressalte-se, todavia, que a noção de essência universal do Homem, que de um modo ou de outro está alojada em cada sujeito individual a partir daí, ficou totalmente abalada.

2º. Descentramento: Freud e Lacan

A descoberta do inconsciente por Freud é um marco de incalculáveis proporções na construção do pensamento moderno:

A teoria de Freud de que nossas identidades, nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formadas com base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente, que funciona de acordo com uma ‘lógica’ muito diferente daquela da Razão, arrasa o conceito do sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada – o ‘penso, logo existo’ do sujeito de Descartes.

A subjetividade, seguindo o raciocínio freudiano, é produto de processos psíquicos inconscientes. O sujeito está sempre partido ou dividido, a vivência de uma identidade, supostamente reunida e ‘resolvida’ ou mesmo unificada, resulta da fantasia de si mesmo como uma pessoa. A identidade tem sua origem na contradição. O pensamento psicanalítico baseia-se, dito grosso modo, nesse jogo de contrários: unidade fragmentária do indivíduo no meio social. A ilusão da identidade unificada foi amplamente estudada por Lacan no que ele denominou ‘fase do espelho’: que estuda a relação da criança com os sistemas simbólicos fora dela mesma.
A formação do eu no olhar do Outro traça o fronteiriço universo da identidade fraturada e desvela a inocência perdida de uma identidade estável, coesa e fixa que é ‘expulsa’ do suposto paraíso da Razão. O sujeito racional e a identidade como um retrato pronto e acabado, não são aceitos dentro de um pensamento que trilha os ensinamentos deixados por Freud e Lacan, já que ambos mostraram que a identidade, ou melhor, a identificação é um processo em andamento. O imaginário passa a ocupar um lugar de destaque nos estudos relativos à formação do sujeito.

3º. Descentramento: Saussure e Derrida

“Saussure argumentava que nós não somos, em nenhum sentido, os ‘autores’ das afirmações que fazemos ou dos significados que expressamos na língua.”. Para ele, a língua é um sistema social, ela preexiste a nós, a despeito de muitos pensarem que a língua é um sistema individual. Por isso, dizer-se, que o significado das palavras não é estável e se estabelece pelas relações de similaridade e diferença que as palavras possuem umas com as outras dentro da norma da língua. Eu só sei quem eu sou em relação com o outro, eis a corrente que se verifica entre identidade e língua. Derrida, influenciado por Saussure, afirma que há uma instabilidade do significado, que a todo instante busca uma identidade (o fechamento) que está constantemente sendo perturbado pela diferença. O significado está sempre fugindo de nós, bolha de sabão que foge por entre os nossos dedos e espoca em outras direções.

4º. Descentramento: Michel Foucault

Com a obra do filósofo e historiador Michel Foucault ocorre o descentramento principal da identidade e do sujeito. Com uma série de importantes estudos (O nascimento da clínica, Vigiar e punir, Arqueologia do saber, entre outros) Foucault elaborou uma típica ‘genealogia do sujeito moderno’, dando destaque a um novo tipo de poder, denominado por ele de ‘poder disciplinar’. Poder que estaria preocupado em primeiro lugar com a regulação – é governo da espécie humana ou de populações inteiras (vigiar e punir constituem a regra a ser seguida) e em outro momento, a vigilância do indivíduo e do corpo – os locais passam a ser gerenciados, policiados, disciplinados a partir das novas instituições que ‘comandam’ as populações modernas – hospitais, clínicas, quartéis, oficinas, escolas, prisões... todos esses, espaços que tentam a todo custo domesticar os indivíduos, formatando-os dentro de uma docilidade artificializada pelo poder disciplinar. O objetivo capital nesse tipo de relacionamento social é manter as vidas, as atividades, o trabalho, as infelicidades, os prazeres do indivíduo, sua saúde física e moral, suas práticas sexuais e sua vida familiar sob estrito controle e disciplina pelas velhas e novas instituições que exercem o seu poder disciplinar através da vigilância e da punição.  Hall acentua, por sua vez que:

embora o poder disciplinar de Foucault seja o produto das novas instituições coletivas e de grande escala da modernidade tardia, suas técnicas envolvem uma ampliação do poder e do saber que individualiza ainda mais o sujeito e envolve mais intensamente seu corpo.

A individualidade que se resgata no campo do poder é a própria individualidade objetivada na escrita. Ou a individualização do sujeito individual exasperada pelo excesso da coletiva e organizada natureza das instituições.

5º. Descentramento: O impacto do Feminismo

Como último descentramento, Hall avalia, rapidamente, o feminismo tanto como uma crítica teórica quanto como um movimento social. Aponta o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociológico oriundo das práticas do discurso do feminismo, tais como: a) a clássica distinção entre o privado e o público, o dentro e o fora, no feminismo, o ‘pessoal é político’, b) a contestação política, tematizada pela sexualidade, o trabalho doméstico, a divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças, entre outras discussões, c) a politização da subjetividade, da identidade e o processo de identificação, d) a inclusão da formação das identidades sexuais e de gênero e, e) a questão da diferença sexual, substituindo a noção de que homens e mulheres eram parte da mesma identidade.
Do que foi até aqui, exposto, podemos verificar que o sujeito do iluminismo, visto como uma unidade fixa e estável, passa por uma série de descentramentos, que nos permitem abordar as identidades abertas, contraditórias, inacabadas e fragmentadas do sujeito contemporâneo, ou se assim se desejar, do sujeito pós-moderno. Dentro de tal perspectiva, passamos a observar alguns desdobramentos da categoria desse sujeito na movediça identificação da autoria.

A QUANTAS MORTES O AUTOR RESISTE? | Na esteira do descentramento do sujeito, localizamos a questão da autoria, como um ponto de fracionamento teórico, de ruptura ideológica e de ousado posicionamento histórico. Tudo isso, ocasionado pela conjugação de fatores externos e internos da obra que, a partir de um dado instante, passaram a ser observados em sua concretude. É importante ressaltar: o trabalho de ‘revisão’ das questões de interpretação e análise do discurso, na busca de intercambiar abordagens mais consistentes e próximas da realidade, com o intuito de discutir e mesmo questionar verdades preestabelecidas, passa por uma série de conflitos, afinal de contas, quando se trata de debater posturas teóricas que rejeitam verdades cristalizadas, nada é pacífico. E isso é muito salutar, pois entendemos que é no caldeirão de idéias ‘antagônicas’ que surgem os caminhos ‘apropriados’ para se discutir a obra, no nosso caso o trabalho literário, mais detalhadamente, o texto poético. Texto esse que se veste, quase sempre, com uma roupagem caleidoscópica, onde o colorido do autor é tão luminoso, que mesmo por detrás das sombras aparentes de uma suposta verdade, seu reflexo reúne múltiplas linhas interpretativas.
Na poesia, o alter ego do autor é sempre outra máscara, saber qual máscara autoral é real, esse é o insondável mistério do texto poético: fingir e mentir para alcançar a verdade, dizer o verdadeiro por meio de mentiras escriturais e fingimentos no papel. Nessa trilha, a autoria filtra a imaginação baseada em inúmeros fatos reais. E é na realidade, que a aparição dum ‘eu múltiplo’ (um eu que é a um só tempo, autor e leitor/ enunciado e enunciação) estabelece as conexões necessárias para o nascimento do debate.
Dois textos capitais para o entendimento da questão da autoria na modernidade foram escritos e publicados no final da década de 60. O primeiro deles, escrito por Roland Barhes, que em 1968 publicou o seu polêmico texto, com um bombástico título: “La Mort de L’Auteur” (A Morte do Autor) e o outro, não menos célebre, foi a conferência proferida em 1969 por Michel Foucault, intitulada de “Qu’Est-ce qu’um Auteur?” (O que é um Autor?). Não é novidade alguma afirmar que nos estudos literários o lugar do autor é ‘o ponto mais controvertido’ (Compagnon, 1999), é aquele que provoca os mais agitados debates, as mais veementes e penosas discussões. Porém, é interessante observar que cada corrente interpretativa, no que se refere à autoria, sempre privilegiou uma determinada postura tentando apagar de vez, ou aniquilar totalmente com a outra. Raramente, a convivência entre as principais correntes interpretativas aconteceu fora da arena de lutas, quando muito, elas se toleram, olham de soslaio uma para outra e seguem seu caminho. Senão vejamos.
Na retrospectiva histórica feita por Antoine Compagnon, em seu livro O demônio da teoria, ele registra e comenta as duas principais correntes interpretativas, aquelas que se anulam, se contrapõem ou mesmo se conservam. A primeira delas, diz que se deve procurar no texto o que o autor quis dizer, em outros termos, a explicação literária como procura da intenção do autor – a intenção do autor é que determina ou descreve a significação da obra. No outro lado da ponte ou na margem esquerda do rio, posiciona-se a corrente que ressalta a primazia da obra, afirmando que no texto está o que ele diz independentemente das intenções do autor – a interpretação literária, como produto da descrição das significações da obra. Uma terceira via de acesso aponta para o leitor como principal mecanismo para a significação da obra. Percebe-se com esse breve intróito, que o alvo das duas teses é sempre a questão da intencionalidade, um ponto que provoca extremas controvérsias, mesmo porque, tentar captar a intenção de alguém, do autor, às vezes, parece ser como um oásis no deserto, nada mais do que uma miragem. É preciso entender o deserto como ele é, não tentar escapulir das suas quentes e movediças areias por meio de recônditas ilusões.
A tese intencionalista preceitua que “a intenção do autor é o critério pedagógico ou acadêmico tradicional para estabelecer-se o sentido literário.” (Compagnon, 1999). É exatamente contra essa teoria que Barthes e Foucault produziram os textos já mencionados. Para Barthes, a explicação da obra não deve ser procurada ao lado de quem a produziu, o entendimento do texto não deve ser pautado na compreensão das eventuais confidências de um autor. Quem busca ‘analisar’ um texto tentando captar intenções, está, na realidade, procurando decifrar confissões.  Por isso, Barthes propõe como princípio explicativo da literatura, uma investida mais consistente na própria linguagem que articula, de maneira impessoal e por vezes anônima, o sentido para a escrita. Entra em cena, a escritura como tecido de significações que obedecem a uma determinada lógica e desempenha o papel de desvelamento de sentido para o texto. O autor cede o seu lugar à escritura, ao texto, ou ao ‘escriptor’, que é uma espécie de ‘ser de papel’, diferente do sujeito empírico e psicológico, é o sujeito ‘que não preexiste à sua enunciação mas se produz com ela, aqui e agora.’ (Compagnon, 1999).
Já Foucault, define a ‘função autor’ a partir de um posicionamento histórico e ideológico, para ele é a própria construção histórica e ideológica que caracteriza a ‘função do autor‘. Com isso, Foucault afasta o componente intencionalista e biografista de suas análises. Advém com essa postura teórica uma inquietação maior com alguns aspectos da análise, que podem ser resumidas do seguinte modo: 1) a preocupação com a polissemia do texto; 2) a promoção do leitor como mais um elemento de sentido e significação do texto e 3) uma liberdade maior de comentário, desconhecida até então. 
Constata-se que as teorias de Barthes e Foucault se insurgem exatamente contra as análises que elegem a parte biográfica e/ou meramente sociológica como veículos de leitura explicativa do texto literário. Pensando assim, a proposta de ambos nos encaminha para o universo do texto em sua compleição escritural e resguarda uma lógica de sentido própria desse ‘tecido de citações’ que vem a ser o texto – com as suas ressonâncias de sentido plenas de vigor e historicidade. A morte do autor e a sua definição passam por um círculo, ou se assim preferirmos, por um feixe de interpretações em que, se não aniquila de vez com a crítica impressionista – calcada em aspectos puramente pitorescos de uma obra, tais como, biografia e intenção autoral – ‘rouba’ de uma vez por todas, a ‘pureza angelical’ daqueles que procuram entender o texto, a partir de suas intenções (dele e do autor focalizado). Contra tal postura, o autorcídio foi praticado. 
Podemos então dizer que o exercício efetivo da alteridade exterioriza um processo criativo marcado pela singularidade do ‘indivíduo’, no exato momento em que ele produz seus devires e deixa-se contagiar por outros tipos de discursos deflagrados pela consecução de uma comunicação heterogênea. Utilizamos o termo ‘indivíduo’ caracterizado pelo sujeito da enunciação (aquele que fala) e o sujeito do enunciado (o sujeito gramatical). Reforçando ainda mais essa idéia, recolocamos em cena a função-autor preceituada por Foucault. De fato, a rigor, a figura discursiva do autor assume a força do discurso através de uma atmosfera textual e do clima do processo criativo que ganha mobilidade dentro da construção dos enunciados – na própria dispersão do discurso, está o acontecimento que marca a inserção do autor como princípio de agregação do texto. A partir desse instante, diz-se que: “O autor é então considerado como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como fulcro de sua coerência” (Orlandi, 1999).
Subjacentes às mortes e sobrevidas do autor é pertinente atentar, ainda, para o sentido lógico da linguagem inscrito na pele das palavras que revelam e escondem as identidades ou a identificação do autor num texto poético. Por isso nada mais oportuno do que materializar o percurso da linguagem na trilha de Gilles Deleuze, que com o seu A lógica do sentido (1988) agrupa uma série de discussões que reforçam a necessidade de um olhar diferente e novo para a linguagem, por consequência direta para o produtor de signos – no caso o autor ou o ‘sujeito de papel’.  Dentro do vasto universo deleuziano, entrecruzamos oito itens que propiciam uma entrada transversa no texto, são como portais para a análise do discurso poético, ou uma instalação de sentidos para a poesia. Eis, pois, parte de uma lógica que empresta sentido à linguagem:

. a linguagem é uma errância fantasmática, puro mergulho no devir com a sua identidade caótica que reverte os acontecimentos, depurando as significações das coisas;
. a linguagem identifica as infinitas aventuras do corpo e manifesta as relações aparentes da fala, numa dimensão que sufraga os desdobramentos da própria escrita na essência absurda e estéril do espírito;
. a linguagem insiste em exprimir o ser do não ser, as suas proposições entram no estranho corpo do exprimível, dando vazão às infinitas dualidades do extra-ser: a palavra como dimensão do inacabado e descoberta dos primeiros efeitos do vazio;
. a linguagem processa os jogos ideais, entranhando-se no paradoxo das palavras singulares, essa é a sua lógica, sua dimensão não comunicativa que perpassa (por sobre) a caótica narrativa; seu papel estruturante atinge o ápice quando consegue captar a palavra paixão, oriunda do descentramento do ‘eu’;
. se há uma ‘lógica do sentido’, tal lógica singulariza o verbo fantasmático do ‘eu-devir’ – diferentes nós do pensamento: linguagem mista, simulacro da paixão, errância do corpo-poético, intenção e intensidade do saber dizer;
. a ‘lógica do sentido’é o devir da poesia – é a natureza não totalizante do puro discurso;
. a ‘lógica do sentido’ surpreende pela exuberância intrigante da criação de novos conceitos: a imanência do conceito como um jogo de circularidades (ou espiral sem fim) que retoma o mundo nas suas mãos: o mundo é o seu corpo-linguagem, como a poesia é o seu infinito devir;
. a ‘lógica do sentido’ parte do totalizável e simula ofícios da linguagem como repetição e criação, o corpo-devir des-congela o tempo e instaura o ‘reino’ errante da poesia.

O autor é um corpo de linguagem, um ser de palavras, um ser que faz de sua incompletude uma viagem errante ao universo de sentidos, uma poesia suspensa no real que se tece cotidianamente. É um ser híbrido: texto definido por contextos de múltiplas leituras, palimpsesto constantemente rasurado por pequeninas escritas. Uma vida efetivada pela representação da escritura, o tecido que se tece infinitamente sob os estilhaços da verdade. E a verdade é um texto que não morre uma só vez, já que possui inúmeras vidas, como o autor que resiste bravamente às investidas de tantas e tantas mortes anunciadas. Segundo Autran Dourado:

Um autor só é um autor no momento exato em que escreve. Depois passa a ser um leitor a mais de sua própria obra. Não sei se um leitor privilegiado, leitor gerente de si mesmo. Porque não devemos nunca nos esquecer, no mundo moderno e consumista, dos direitos autorais. Se, após a escrita, um autor diz alguma coisa sobre o que escreveu, nada mais está fazendo do que um novo escrever.

Entre a lei e a escrita, o labirinto se faz, dobra a curva do indivíduo e instala personas ou máscaras de significação que superpostas emprestam uma nova feitura ao ‘sujeito de papel’. Cada autor com a sua lógica, com a sua dispersão e procurando resistir in aeternum às mortes acumuladas em vida.

O POEMA: A SUBSTÂNCIA DA COISA E SEUS EFEITOS | O discurso poético, quase sempre, traduz-se através da tênue linha tracejada entre a ficção e a autobiografia, entre a imaginação e a realidade. Nesse universo, a presença do sujeito-autoral, entendido como aquele que se desvela com palavras e texto, ou se preferirmos, um sujeito moldado na linguagem, revela a complexa dispersão de sentimentos e imagens que afloram de sua múltipla persona. A poesia, como exercício criativo de uma identidade, produz o efeito de alteridade no momento de sua própria enunciação. O poeta é esse ser híbrido em permanente conflito com os seus recônditos desejos, com as suas utópicas viagens e com os seus projetos de unidade de ser e não ser. Enfim, o indivíduo fantasmático que disseca os elementos componenciais de sua existência na própria ossatura social em que está inserido. Para tentar entender um pouco como se processa a autoria no texto poético, escolhemos o poema A coisa em si, abaixo reproduzido:

A COISA EM SI

A linguagem que ensaio comunica
o pensamento às formas recolhidas
e mudas, cujo espírito reside
encoberto na rígida aparência
da pedra:
às vezes líquida aparência
d’água.

Ensaio uma linguagem
que somente os espelhos poderão
apreender: pois que a eles é dado repetir
multiplicar os que falando os assediam.
A eles me rendo com toda a leveza
com que, multiplicado, me incorporo
ao milagre de aceitar-me sério ou rindo,
sem mais sentir-me o outro
no interior – o outro – o que admiro:
belo e fugaz – o outro –
senhor tão pouco de sua presença
pelo que se ausenta atrás da própria face
– sem atribulações.

Aos espelhos me rendo neste ensaio.

No mais quem dirá que serei leve
para me incorporar às coisas definidas,
para me repetir nos meus desejos,
dissociar-me, integrar-me como alento
intangível além da superfície
dos espelhos?

A coisa em si
o tempo
a duração
existe onde?
Em nós ou além do círculo
que nos circunda?

Seremos como o Deus
que estando em todos
é íntegro e disperso
é móvel e é imóvel
uno e divisível?



A coisa em si
o tempo
a sucessão
do ser para o não ser
da vida para a morte
da morte para o enigma
da reencarnação:

Eis o círculo –
e dentro o enorme enigma
a um tempo breve e eterno.

A linguagem que ensaio comunica
o sopro alentador.
Os límpidos cristais se livrarão
de sua beleza silenciosa e fria.
Tocados da linguagem cantarão
dissolvidos e vivos, livres
como águas azuis acomodadas
em seu curso de plena liberdade.


A representação da identidade no texto passa a ser o caminho mais curto e mais complexo para instaurar a flexibilização e a ambiguidade do sujeito como mera configuração do eu autoral. Em outras palavras, o poeta circula no meio da caótica sensação de possuir uma identidade íntegra e que pode ser requerida a qualquer momento, pois está à disposição do seu livre arbítrio. Na verdade, nesse entrelaçamento de fios, ele dimensiona sua posição, como sujeito, nas máscaras escriturais que nada mais são do que portas de entrada para a construção de sua história.
Na encruzilhada de personas poéticas instaladas na especularidade de um sujeito que se mira em sombra e luz, em concretude e abstração, em rastros e apagamentos do eu, entendemos A coisa em si de Foed Castro Chamma[1]. Num primeiro momento, percebemos o estilo alquímico que se constitui como uma work in progress, estilo que vai se desdobrando enquanto busca dessa identidade. Provavelmente no fluxo de sua consciência, o autor caminha em direção à personagem que traz embutida em si mesmo, em forma de coisa ou em forma do humano. Numa segunda leitura, a tragicidade especular é vista ao mesmo tempo como calmaria e tempestade – a fugaz apreensão de um dizer que se esvai tão repentinamente.  Tentando aproximar o concreto do metafísico e o cotidiano do eterno, pensamos que existe uma harmonia das coisas revelada pela existência de um eu em constante vertigem, em permanente desequilíbrio.

A URDIDURA TÁCTIL DO ESPELHO | Em certo sentido, o poema de Foed Castro Chamma busca penetrar a essência íntima das coisas, perspectivando a ação de um sujeito plenamente integrado e mesmo confundido com os objetos descritos. As palavras sensibilizam não apenas pela sua carga metafórica, mas, principalmente, pelos espaços lacunares que permitem a experiência crítica da não-identidade. Uma não-identidade que forçosamente, nos remete a questões existenciais, tais como o estar no mundo, o ser no mundo, a natureza humana das coisas e a realidade do tempo.
Esse poema é uma espécie de ‘atestado autoral’, onde o sujeito lúcido e lúdico joga as contas de vidro de sua pessoa no espaço da linguagem. A linguagem modaliza a sua introspectiva viagem ao reino do desconhecido mundo da aparência. A exterioridade do mundo serve como âncora para refinar as suas sensações e para pluralizar o seu universo pessoal. Com isso, aguça-se a percepção de que a natureza problematizada de cada coisa guarda em idêntica quantidade, um número de imagens subjetivadas de modo diferente por um mesmo olhar. Um olhar que, de viés, constrói simultaneamente a imagem do mundo real e a imagem do mundo idealizado – realidade e ilusão recapturadas na presença ambígua do texto.
A seção inicial do poema revela o impacto da linguagem como representação do real na exata proporção das aparências fugidias e, por vezes, etéreas do pensamento. A linguagem é sempre um balão de ensaio, algo que muda de acordo com o espírito que paira no tempo. O homem percorre o conhecimento munido de sensações que tenta controlar, daí dizer-se que a linguagem não tem nada de apaziguadora, pelo contrário, ela instiga o ser pensante a melhor manejar as suas contradições. Inserido nessa forma de pensar e sentir o mundo, o eu do autor – o cristal de palavras –, questiona a própria aparência, ora rígida ora líquida do verbo: a dureza da pedra em contraste com a cristalinidade da água. Importa ao poeta, exercitar o pensamento como forma de resgatar a imagem perdida nos mínimos fragmentos do eu, ele próprio duro e cristalino como o aparecimento da linguagem.
Na estrofe seguinte, ergue-se o edifício in-acabado da linguagem. Esfacelado, o sujeito depura sua imagem num continuum que provoca rupturas as mais contundentes: incorporar trajetos, assediar sentidos, aceitar vontades, admirar desejos, multiplicar realidades, render-se à leveza paradoxal do espelho e apreender a dureza da imagem especular. O espelho verbaliza os fantasmas do canto e mimetiza a consciência poética que transparece no Outro que é a um só tempo ensinamento, comoção e deleite. O autor ‘sai’ do seu papel de produtor de imagens e passa a ser o Outro que vai ler e entender o seu próprio texto. O reflexo do espelho pode ser admitido como a tentativa de sair do centro da coisa – a escritura – para ingressar na outra margem do papel – a leitura: o produtor passa a ser o leitor, a autoridade textual sai de cena e assume o estatuto pleno de leitor.
O mito do sujeito uno e indivisível fica totalmente abalado quando o poeta assume: “Aos espelhos me rendo neste ensaio”, incorporando às coisas, sua identidade rasurada e organicamente processada na linguagem, com isso ele objetiva atingir um índice de identificação que é dado somente como reflexo numa superfície de vidro. O espelho projeta a sua personalidade multifacetada e circunscreve a persona poética nas palavras que perduram no espaço-tempo do próprio percurso imagético da coisa que é em si e per si.  A imagem da autoria refletida pelo espelho, no poema de Foed Castro Chamma, encarna os múltiplos enigmas que porventura venham a existir numa ‘identidade integral’, já inteiramente desprovida de sentido quando o gerenciador de mitos despe-se dessa autoridade despótica de manejar as palavras e a linguagem como absoluto senhor do seu discurso. O poeta assume a sua precariedade ao nomear a silenciosa beleza do círculo que envolve todos os passos do humano incrustados na coisa.
A urdidura do espelho instala-se no questionamento crucial do autor quando ele destaca o caráter de integridade e dispersão, de mobilidade e imobilidade e de unidade e divisibilidade do eu que jamais deixará de refletir-se nas faces e fases da tessitura mutável da matéria. A forma circular do eu, metaforizada pelo espelho, encontra-se plenamente realizada no Outro, é a materialização de sua angústia, é a sua própria condição ontológica no mundo, definida, em síntese pela projeção consciente e/ou inconsciente de um duplo – interposto entre o mesmo e o Outro – uma máscara táctil que nasce do espelho que devora e se deixa devorar, esse é o seu princípio de individuação, o que move A coisa em si, o que abisma o poeta e singulariza cada novo exercício de leitura.

A CONSANGUINIDADE DE VOZES | Pensar a existência do autor nesse universo emaranhado de vozes, nessa contínua troca de papéis, nessa redistribuição de tarefas e nessa associação de perspectivas talhadas pela exterioridade do mundo assimilado pela interioridade de um sujeito plural, requer uma escuta dupla das palavras e uma minuciosa averiguação do deslocamento de sentido ocasionado pela pulverização do sujeito na teia textual. O autor, entendido como “aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real“ (Foucault, 1999: 28), aquele que estabelece o princípio de agrupamento do discurso e faz circular no texto a teatralidade dos gestos da sua própria realidade. É o que podemos denominar de fingimento da otredad – escrevemos para nos enxergar do outro lado da ponte. A alteridade vem a ser o desejo de ser Outro sendo o mesmo ou desconhecer o conhecido que reside em nós, na sábia lição de Ocatvio Paz. É nessa hora “que o poeta se torna aquele que não pode subtrair-se a nada, não se desvia de nada, é entregue, sem abrigo, à estranheza e à natureza desmedida do ser” (Blanchot, 1987).

A identidade do poeta, exemplificada em A coisa em si são suas máscaras; são todas as criaturas que o rodeiam; são suas catedrais interiores erguidas sobre areia movediça; é seu fingimento atormentado; é seu palácio de sombras, preenchido por pequeninas contas que reluzem na escuridão; é o seu ‘eu’ esvaziado de sua essência: a multiplicação anônima de rostos em sua face; é o vazio povoado por tudo que não é seu; é uma espécie de vôo rasante executado por quem não ‘possui’ asas, só a líquida aparência do espaço. A identidade do poeta é, em suma, o fantasma inquieto em busca de um pouso que ele jamais encontrará, pois o que importa para ele é a ‘demência’ errante do caminho especular.
Todo exercício discursivo “faz parte da própria ficção autoral” (Buescu, 1998) e estabelece um jogo de estreito parentesco com as personas envolvidas. O nome próprio, o anônimo, o pseudônimo e o jogo heteronímico funcionam como estatuto consciente de um suporte biográfico que está em processo de rasura, ou seja, o que se pretende afirmar na cadeia do nome próprio, não é a inexistência do autor empírico, até porque a figura que assina a obra define-se, basicamente, como estratégia de lei dentro da sociedade. Por isso, a entidade autoral subscreve os mecanismos da fala ‘neutra’, indistinta, ociosa e errante que inspiram uma verdade multiplicada no fundo aparente das coisas. Em nenhum momento a memória do poeta deixa-se flagrar apenas pelo espaço interior no exterior do real. Além disso, a máscara autoral rende-se à linguagem que, originária da própria face, penetra a essência íntima das coisas.
No livro segundo: O ser e o real de Filosofia da Arte (2000), Foed Castro Chamma reflete poética e filosoficamente sobre as questões de identidade e recria no exercício da linguagem tudo aquilo que está em sua trajetória poética. Diz ele, a certa altura da obra: “Como Identidade o sujeito submete-se à ambiguidade da diferença, instaurando-se pois na representação, paralelo ao continuum, o reconhecimento do duplo, o qual se delineia na imaginação” (2000). Tal afirmação pode ser associada com justeza ao poema A coisa em si, ainda mais quando o filósofo, analisando a consanguinidade das sombras com a identidade, conjuga o drama metafísico da existência à dissolução do imaginário mediado pela realidade cuja síntese funde tempo e espaço, ocultando a transitória máscara do espelhamento do Outro. Identidade e semelhança configuram a própria captura do duplo, eis o ‘ensaio da linguagem’ – a coisa em si e per si – incorporado pelo sujeito da representação que foi “relegado à fantasmática condição de Presença perdida na dualidade do Mesmo” (2000). O Outro, como representação especular, abre-se para o real objetivado no ser da linguagem. Tal é a sua estratégia composicional, derivada da articulação de vozes que sobrevoam sua obra. Já que o caminho transmutado do poeta, na coisa, é a perspectivização histórica ou seu esforço de afirmar-se no Outro, é ‘sempre’ na linguagem que o Outro se define como unidade:

Procuro uma unidade para dar-me
inteiro mas disperso-me nas fímbrias
do voo. A rosa foge, mais se alarga
à medida que a busco. Onde finda
meu tema? Onde me findo, se me alargo
para alcançar-me inteiro neste poema?

No final das contas, voltamos ao célebre, válido e sábio postulado do poeta francês Arthur Rimbaud, que com a máxima economia de meios decretou: “je est un autre”. A minha Identidade definida de fora, pela linguagem – minha e marcadamente pela dos outros. O eu nas fímbrias do vôo do sujeito instalado nas coisas. A autoria como metáfora literária, como metonímia da viagem especular e narrativa fundamental de uma questão proposta: a ontologia da diferença grudada no espelho é ou não a imanência do Outro na dimensão sombria do mesmo? As coisas cintilam e quem sabe este já não seja um caminho para gerar outros percursos discursivos.


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LEONTINO FILHO (Brasil). Poeta e ensaísta. Página ilustrada com obras de Vicente do Rego Monteiro (Brasil), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 106 | Janeiro de 2018
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[1] Poeta, ensaísta e tradutor Foed Castro Chamma nasceu em Irati/PR em 1927 e faleceu no Rio de Janeiro/RJ em 2010. Publicou os livros de poemas: Melodias do Estio (1953), Iniciação ao Sonho (1955), O Poder da Palavra (1959), Labirinto (1965), Ir a ti (1967), O Andarilho e a Aurora (1971, que é a reunião dos três últimos livros), Pedra da Transmutação (1984), Sons de Ferraria (1989) e Antologia Poética (2001). Traduziu, entre outros, Mickiewicz/Poemas (1998), Epigramas Latinos Paráfrases (1998) e Bucólica/Virgilio (2000). Como ensaísta, destacam-se: Navio Fantasma (1998), Filosofia da Arte (2000) e Ferraduras do Raio (2002).

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