segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

MARIA LÚCIA DAL FARRA [sobre] Gilka Machado



I. | Em 1915, era publicado no Rio de Janeiro o livro de poemas de uma jovem chamada Gilka Machado, então com 22 anos de idade. O volume tinha como título Cristais Partidos, nome ruidoso, verdadeira metáfora plástica e sonora antecipadora do reboliço que a sua obra causaria na literatura brasileira canônica. A identificação do volume registrava, assim, não só o burburinho em torno desse lançamento, mas preconizava a quebra de interditos na sua poética e um simbólico rompimento com o destino rotineiro da mulher-poetisa nacional. Tratava-se agora da sua estreia mas, tempos antes, quando contava 14 anos, Gilka obtivera (precocemente e de uma só vez) os três primeiros lugares num concurso de poesia do jornal A Imprensa, dirigido por José do Patrocínio Filho. Valera-se ela de pseudônimos que lhe garantiram a inscrição simultânea.
Desde tão remoto episódio, Gilka Machado já causava espécie. Quando a menina foi, com Therezinha, sua mãe, buscar os prêmios, os patrocinadores não puderam esconder o espanto. Da curiosidade passaram à desconfiança, e chegaram mesmo a declarar o quanto duvidavam da autoria dos poemas, muito avançados, segundo criam, para uma garota daquela idade. E isso porque os versos dessa “criança” (asseveravam eles) eram positivamente... eróticos!
Ora, a observação se devia, dentre outras, ao fato de a menina-revelação confessar sentir (no dito poema ganhador) “pêlos” no vento...[1] Tratava-se de um soneto que, agora, em 1915, integrava o livro de estréia como o VIII dos “Noturnos”, título mais tarde modificado mais apropriadamente para “Cio”. Ei-lo[2]:

É noite. Paira no ar uma etérea magia;
nem uma asa transpõe o espaço ermo e calado; e, o tear da amplidão, a Lua, do alto, fia
véus luminosos para o universal noivado.

Suponho ser a treva uma alcova sombria, onde tudo repousa unido, acasalado.
A Lua tece, borda e para a Terra envia,
finos, fluidos filós, que a envolvem lado a lado.

Uma brisa sutil, úmida, fria, lassa,
erra de quando em quando. É uma noite de bodas esta noite... Há por tudo um sensual arrepio.
Sinto pêlos no vento... É a Volúpia que passa, flexuosa, a se roçar por sobre as cousas todas, como uma gata errando em seu eterno cio.

Soneto alexandrino, de cunho muito sensitivo, todo em rimas alternadas e em exploração sonora dos vocábulos, ostentando uma cumplicidade com a natureza e um estreito entendimento do cosmos – ele exala a marca da sensualidade e do aspecto formal a imperar na obra futura de Gilka. A peça se ocupa das bodas cósmicas; todavia, a volúpia é bem terreal, pois que escapulindo-se da magia etérea, o poema incorpora os gemidos de uma “gata”. Tal feição erótica há de escandalizar a burguesia carioca, intrigar os críticos e dar pano para as muitas mangas dos comentários maldosos. Alfinetadas que, ao longo de anos seguidos, além de incomodarem, começarão por envenenar o estro de Gilka que, com sagacidade, há de tomar tais comentários como interlocutores, como antagonistas a figurarem internamente em sua obra enquanto vivos atestados de um longo diálogo que sua produção vai buscar empreender e assimilar argumentando - embora muitas vezes de maneira contrafeita.
Observo que Gilka não expulsará da sua obra tal matéria impura, tais manifestações de desagrado que rondam os seus versos: ela não as evita e nem tergiversa. Ao contrário: ela as traz, de fora para dentro do seu poema, importando-as enquanto percalços ou entendimentos, acolhendo-as no seu âmago. Não como uma enxertia invasora, mas como um manancial de diálogo, como gérmen de instigação para o adensamento da sua própria experiência poética e para sua defesa. A poetisa conversa com elas no coração do que escreve, argumenta com elas para poder exorcizá-las e se justificar. De maneira que a sua publicação seguinte há de estampar, desde o título, os sinais de cautela contra as nocivas especulações de que fora vítima logo nessa sua inaugural exposição pública. E o novo volume, o de 1917, carrega, desde o seu título, os indícios dessa tática poética de resistência receptiva, digamos assim.
Os versos se denominam Estados de alma. Estrategicamente, o vocábulo “alma” aí comparece com a função de elemento agregador das voláteis expressões daquilo que, antes, parecia emanar apenas de um centro erótico. Aqui, a “alma” é o lugar (apontado por antecipação), de onde devem se desdobrar (para convergirem) as possíveis leituras a serem perpetradas sobre esses outros poemas: maneira de implicitar que todo e qualquer erotismo ali presente não passa de um dos muitos “estados” provenientes de uma só sede sutil e nada material. O corpo não é para aqui chamado, a não ser como decorrência, como uma das possíveis articulações dessa matriz etérea... Gilka tentava, por tais meios, instruir (seduzir?) os seus adversários (homens e também mulheres!) acerca do modo mais condizente de leitura da sua obra. E mais: através de meandros internos postos em vigor pelos versos, ela também buscava prepará-los a ultrapassar a moral tão arraigada e o preconceito de tão difícil trato que, antes, haviam assumido contra ela.
Resulta curioso acompanhar os sulcos da composição de Gilka Machado a partir da recepção crítica obtida. Talvez mais do que em outras produções, nesta, ficam quase nítidos tal engenho: os ingredientes externos vão se imiscuindo na própria tessitura poética (com seus critérios morais e de gosto), por vezes a ponto de irem lhe conferindo uma compleição diferenciada, só possível mercê dessa conversação em surdina – aliás, muito acidentada por avanços e recuos diante do diverso alheio, diante de uma expressiva e crítica alteridade.
Noto que essa trajetória dos versos não é em nada pacificada. Porque, se, de um lado, a presença desses rumores, e mesmo dos ataques pudibundos desferidos contra seus poemas, a incitam a se definir mais incisivamente livre nos arroubos e enlevos sensuais, por outro, a sua poesia vai pouco a pouco se ressentindo de tais arremetidas. Por vezes molda-se por elas; por vezes revida-as, recusando-as ou trazendo-as declaradamente para si.
No entanto, parece que, desse litígio interno doloroso, é o seu interlocutor quem vai se fortalecendo gradativamente, deslocando-lhe a temática, a ponto de, ainda mais tarde (quem sabe?) chegar a decretar o silêncio da nossa poetisa - o seu suicídio em vida. Sim, porque Gilka, tendo vivido 86 anos, finou-se muito cedo para a poesia. Para quem havia iniciado a existência literária tão prematuramente, o seu encerramento foi precoce demais e rodeado de muito desencanto. Depois de 1938, quando publica Sublimação, Gilka, que viveu até 11 de dezembro de 1980, abandona praticamente a poesia, não tendo editado senão esporadicamente uma ou outra antologia de poemas antigos e descoloridos. Que digam disso os versos da antologia de 1968, a derradeira, cujo título indicativo aponta para um auto-reconhecimento patético: intitulava-se tristemente Velha poesia... a derradeira recolha poética de Gilka Machado.
Ora, para quem começara quebrando grilhões, estilhaçando cristais, o título de 1938 – Sublimação –, encerramento da sua carreira poética, parece soar como uma rendição final aos reclames de uma sociedade que reservava, para a mulher, um lugar de pura alienação. E o volume acena para um melancólico ambiente de pura rarefação, renunciando Gilka ao pioneirismo que seus versos abriram com tanto alarde no cenário da literatura brasileira. Parece ecoarem, agora, como a capitulação das conquistas de direito feminino de exercício da voz, prerrogativa adquirida por meio da flexão literária de toda a sua obra anterior que, como um protesto vivo e bombástico, conclamava, escandalizando, um novo patamar para o desempenho artístico da mulher, uma resistência concreta ao discurso patriarcal.
No entanto, a terceira produção de Gilka, a de 1922, exibira essa audácia com um título inesperado - Mulher Nua –, compensando, em larga escala, o pseudo-recuo contido na semântica do seu segundo volume, como frisei: Estados de Alma. A publicação seguinte, a de 1928, situando-se em igual movimento bombástico e revolucionário, tivera um título ainda mais relevante, mais diretamente concernente à condição feminina. O livro se intitulava Meu Glorioso Pecado - nome emblemático composto para celebrar, com orgulho, a pecha atribuída ao feminino, que acusa a mulher de detentora do dito pecado original. Em vez de culpa, o título exibia aos quatro ventos a sua glória. O pecado, ao contrário do que se poderia supor, era concebido por ela como digno de louvor! E de escândalo – claro está! – por parte dos ferrenhos moralistas. Todavia, agora, com Sublimação, Gilka celebrava o seu ritual de retiro da vida pública; isola-se a partir de então, confina-se.
Afastamento, subtração, desistência: no litígio poético contra a sociedade do seu tempo, a mulher sai vencida - mas não a poetisa! A artista audaz e insurrecta, aquela que ousou desafiar os padrões de comportamento com a sua voz insubmissa, que pleiteava o direito feminino de expressão do desejo – essa ainda hoje aqui está, fincada e enraizada definitivamente na literatura brasileira, tal como uma árvore (imagem que sempre lhe foi tão cara!), acenando, aos ventos futuros, com o seu espírito desbravador, com seu atrevimento e sua arte.
E é assim que Gilka Machado inaugura, na literatura brasileira, uma tradição que converte a mulher, de musa, a sujeito de discurso.
No caso dela, não terá sido apenas a sua condição feminina a visada pela desmoralização a que foi submetida a sua obra. Outros preconceitos, tão fortes quanto esses, concorreram para tal fito - só que impronunciáveis, só que jamais confessados! O que talvez explique o mal-estar e a confusão generalizada que a sua obra causou, a sensação de desconforto do seu leitor e de seus pares, presos de sentimentos contraditórios de encantamento, repulsa, escândalo e admiração. É provável que também a percepção da sua reputação como algo de suspeito decorra daí.
Tentarei articular com clareza o sombrio tom acionado por seus adversários para denegrir a sua presença literária, para desativá-la, para, por fim, neutralizá-la.

II. | Os anos de formação pessoal e literária de Gilka Machado coincidem com o período de transição cultural, política e social ocasionado, em 1889, pela proclamação da República Brasileira. A República é ainda muito jovem quando se dá o nascimento de Gilka em 12 de março de 1893, e o novo sistema político, muito embora simbolizado por uma linda mulher (a dita Marianne, oriunda da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” da Revolução Francesa) se erige (sob a égide do positivismo de Comte) contra quaisquer esforços de autonomia feminina. Numa palavra: a República propunha cidadania para os homens e maternidade para as mulheres. O poder mais nobre, o espiritual, é, claro, pertença feminina, o que ao mesmo tempo lhe ceifa quaisquer laivos de eficácia política; daí que ela resulte  confinada à domesticidade. A República anulava bizarramente o feminino naquilo que (como sistema político) trazia de mais inovador: o direito à representatividade política, ao voto, ao sufrágio, e à cidadania. De maneira que, emblemática feminina, a República enaltecia a mulher para alijá-la de suas atividades de participação social.
É às vésperas do Estado Novo de Getúlio que Gilka escreve; justo no momento em que são discutidos, no Brasil, a situação da mulher, o seu papel cívico e os seus direitos políticos. Em 1910, embora seja ainda muito jovem, Gilka, que se casa nesse ano, faz parte das iniciativas para a fundação do Partido Republicano Feminino. Note-se como o desvelo pela emancipação feminina já está entranhado na sua linguagem e no seu comportamento poético: é natural que ela busque respaldo político para exercer a sua literatura, num tempo em que tudo aquilo que implicasse em uma práxis (que tangenciasse uma zona interdita ou proibida) constituía por si só uma ação revolucionária.
Ruy Castro lembra que, ainda em 1919, a sociedade carioca se espantava com as maneiras da jornalista Eugênia Moreira, conhecida pelo desprendimento de modos: fumava charuto e falava desembaraçadamente palavrões, sendo exímia amazona e remadora do clube Flamengo – e, por sinal, amiga de Gilka[3]. Também a imagem que a nossa poetisa pleiteava para a mulher dos seus poemas se compunha de traços de independência, talvez aqueles mesmos aguardados pelo Modernismo Brasileiro, para o qual, no dizer de Menotti del Picchia, a mulher deveria surgir como “a Eva ativa, bela, prática, útil no lar e na rua, dançando o tango e datilografando uma conta corrente”...[4]
Quando Gilka inicia o desvelamento do universo feminino e da sensualidade, expondo as carências, as vicissitudes, os traumas e as paixões da mulher do início do século passado, tanto ela quanto Hermes Fontes começavam, no dizer de Mário de Andrade, “a abrir desvãos através dos quais seria possível prever a chegada da primeira revolução literária que houve no Brasil.” Mas nem por isso Gilka teria sido modernista. Seu comportamento formal a pende para uma fase de sincretismo literário, de convergência de parnasianismo e simbolismo, de mélange de movimentos de fin-de-siècle, para o dito Decadentismo. Oficialmente, ela pertenceria ao limbo literário conhecido como Pré-Modernismo, onde também se encontram agregados escritores tão diferenciados entre si quanto Augusto dos Anjos, Cecília Meireles, Hermes Fontes, Guilherme de Almeida, Humberto de Campos, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, por exemplo.
Mas aquando de sua estréia, há, no horizonte literário de Gilka, duas mulheres que se destacam: Francisca Júlia (1871-1920) e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), tidas como precursoras da literatura feminina no Brasil, ambas incluídas (de forma inaugural) no cânone masculino. Todavia, é fato que nem uma nem outra buscam se identificar como poetas-mulheres. Francisca Júlia, a quem Gilka vai dedicar o poema “Ânsia de Azul” (da sua primeira obra), desenvolve uma poesia de índole parnasiana e impessoal, onde não há traços de gênero. Aliás, o poema que Gilka lhe destina confirma que ela se dá conta dessa condição de impassibilidade neutral trilhada pela precursora. E parece-me que o poema de Gilka questiona, em Francisca Júlia, essa mesma feminilidade interdita, a necessidade de sua alforria, de liberdade de asas a pairar acima da sociedade. Parece convidar a contemporânea a partilhar consigo as intempéries dessa determinação de gênero.
O referido poema, todo em versos livres, busca, para a mulher, a condição de liberdade das aves, e pergunta:

De que vale viver
trazendo, assim, emparedado o ser? Pensar e, de contínuo, agrilhoar as idéias?

Já a obra de Júlia Lopes de Almeida, autora de livros infantis e de ensaios didáticos dirigidos às mulheres, segue o trilho ideológico do feminino enquanto um bem familiar, assumindo-se como o protótipo requerido pela ordem dominante, o que a restringe à sobrevivência de um ser dedicado aos outros, cuja missão se esgota aí: no marido e nos filhos.
Mas quanto a tais posições, o parecer de Gilka não se deixa esperar. Já na sua obra de estréia, há um poema que esclarece com lucidez que a posição da mulher é absolutamente paradoxal: é um “infinito curto” para “a larga expansão”. A sua alma foi talhada para a “liberdade” e para o “amor”, para escalar a “glória” – e, no entanto, a mulher se encontra como uma “águia inerte”, presa nos “pesados grilhões dos preceitos sociais”.
Observe-se como o ter asas, ganhar espaços, voar acima das contingências parece uma constante tanto no poema anterior quanto neste, naquilo que diz respeito ao aparato feminino. O soneto em pauta, intitulado “Ser mulher...”, é uma profissão de fé, e deplora que esta, desejando uma alma para compartilhar, buscando “um companheiro”, encontre apenas “um senhor...”

III. | Em 1910, cinco anos antes do lançamento de Cristais Partidos, Gilka, então com 17 anos, contraía matrimônio com o poeta, jornalista e chargista Rodolfo de Melo Machado - sobrenome que vai adotar para si e, através do qual, tornar-se-á conhecida doravante. Desse casamento, nascerão dois filhos: Hélio, que falece prematuramente, e Heros, que há de tornar-se importante bailarina internacional, capa da revista Life em 1941, e atenciosa divulgadora da obra da mãe. Heros também ficará conhecida como a musa inspiradora de Nelson Rodrigues que, tendo sido leitor assíduo de Gilka, jamais escondeu o quanto dela recebeu de influência literária.
Mesmo depois do casamento, Gilka, que já trabalhava desde menor- de-idade, continua a exercer duramente o seu ofício como diarista na Estrada de Ferro Central do Brasil, ganhando baixíssimo salário. Ocupará o mesmo cargo ainda após as duas maternidades. E é aqui que topamos com um dos aspectos mais determinantes da existência prática de Gilka Machado: a carência de dinheiro. A ausência de recursos, a pobreza, a quase indigência, sobretudo quando enviúva, marcam a sua vida desde a mais remota infância. E não por acaso, este é um dos temas recorrentes da sua obra poética.
Nascida no Estácio, na rua da Colina, numa família de artistas (músicos, poetas e atores), Gilka é bisneta de Francisco Moniz Barreto, o repentista baiano, e neta, pelo lado materno, do violinista português Francisco Pereira da Costa, radicado no Rio de Janeiro, onde tornou-se célebre, tendo merecido mesmo, da parte de Luís Delfino, um soneto por ocasião da sua morte[5]. Filha e sobrinha de atrizes de rádio e teatro, Gilka nutria enorme respeito e amor por sua mãe (e grande amiga) Thereza Christina Moniz da Costa, a quem dedica, aliás, o seu livro de estréia.
Thereza foi, ao mesmo tempo, mãe e mestra de todos os ofícios, transmitindo-lhe toda a sorte de ensinamentos, visto que Gilka nunca pode gozar de uma educação formal. Para que se saiba, numa crítica de 1924, estampada na revista carioca Sol Poente, a questão da formação da poetisa surge no crivo de um comentador desconhecido, à maneira de defesa, o que leva a crer que também este aspecto da vida de Gilka Machado deveria estar, naquela altura, sendo questionado. E eis aqui um dos impronunciáveis preconceitos que trabalham desde cedo para detratar a poetisa:

Limitada, por circunstâncias diversas, a uma cultura quase exclusivamente intuitiva, Gilka não tem tido a auxiliá-la num possível desdobramento de uma individualidade os recursos maravilhosos de um conhecimento claro da poesia universal.(...) Não é a construção magnífica que lhe importa – é a afirmação do seu direito de sentir e de pensar como os impulsos íntimos lho ordenam.

De seu pai, Hortêncio da Gama Souza Melo, ela dirá mais tarde que sabia “apenas que era culto, bonito, inteligente e boêmio”. A crer nessa defasagem entre a imagem paterna e ação materna, pode-se concluir a enorme importância emocional e material que Therezinha deve ter desempenhado na sua vida. De fato, seu lar parece se configurar como uma morada de ascendência feminina um tanto deslocada para a época, visto que a mulher que trabalha como artista é quem representa a norma e o eixo familiar. Como se vê, é a partir do seu berço que Gilka se diferencia grandemente de suas colegas escritoras, mulheres pertencentes às classes alta e média, coroadas por uma educação formal, com a qual ela jamais pôde contar.
Além disso, a nossa poetisa enviúva muito cedo, aos 30 anos, em 1923
- desenlace fatal que vai dar início à uma interminável fase de grandes dificuldades econômicas na sua vida.
Logo em 1924, Gilka trata de, heroicamente, editar a obra póstuma do marido, Divino inferno, à qual acrescenta um prefácio - “A revelação dos perfumes”. Mas a sua situação prática se complica ainda mais: no ano seguinte, cansada de mendigar trabalho publicando aqui e ali crônicas ou poemas, Gilka toma a resolução de cuidar de uma pensão no Rio de Janeiro, ofício em que vai persistir até o fim. Ela dirá depois que a sua “vida foi passada na cozinha. Os meus bons versos foram escritos à beira do fogão. Eu tive uma pensão, para não morrer de fome”![6]
E acrescento: na altura de sua viuvez, Gilka, de poetisa, se converte em cozinheira, trabalhando para os poetas simbolistas, seus colegas de profissão, servindo comida de pensão para Tasso da Silveira e para Andrade Muricy, tornados, então, seus clientes.
Reparo que, nessas circunstâncias adversas, desloca-se o eixo de suas atividades: Gilka não é mais nem a colega ou nem musa dos simbolistas: é aquela que, para sobreviver, os serve – e ainda bem que é assim, visto que os colegas devem ter-se empenhado em solidarizarem-se muito com ela nessa fase! No entanto, há uma mudança decrescente no grau nos seus relacionamentos literários: ela torna-se a criada, a empregada, a que tem um pé no fogão...

IV. | Antes, em 1912, Gilka publicara seus poemas na revista A Faceira, do Rio de Janeiro, dirigida por Carvalhais; a partir de 1918, participara regularmente da revista Souza Cruz; em 1922, colaborara em A Maçã, dirigida por Humberto de Campos, periódico, aliás, que não levava muito a sério a participação de escritoras nas suas folhas e que se comprazia em criticar jocosamente a “companheira do homem”, ridicularizando-a com a típica figura da “melindrosa”, símbolo da modernidade que pouco a pouco ia ocupando espaço nos elegantes salões que, aliás, Gilka não freqüenta - confinada já então à cozinha.
Na importante revista literária Festa, fundada por Andrade Muricy e Tasso da Silveira em 1927 (como se vê, pelos seus dois eméritos clientes da pensão), apenas Gilka Machado e Cecília Meireles (da ala das colaboradoras femininas) são mencionadas como pertencentes ao grupo.
No número 4 da revista, Andrade Muricy, tomando o partido de Gilka, chega a criticar os editores que consideram o melhor autor apenas aquele mais vendável. E declara que é por isso que

políticos profissionais com obras de propaganda figuram como escritores. Por isso, os editores, livreiros, colocam uma Gilka Machado (cuja obra está, aliás, esgotada), abaixo de poetisas mundanas e elegantes.

Muricy (e o leitor o saberá) conhece e experimenta as verdadeiras razões que não permitem à Gilka a reedição de seus livros.
Também no número 6 de Festa, Mário de Andrade comenta que

Na poesia, brilharam até agora, extraordinariamente, Gilka Machado e Cecília Meireles. Os poemas que publicaram são positivamente admiráveis a meu ver.

Todavia, tal nota assim entusiástica, datada de março de 1928, soa muito diferente dos pareceres que ele antes entabulara acerca da nossa poetisa. Segundo Arthur Saffioti, lê-se, no seu volume pessoal de Cristais Partidos, um comentário bastante pejorativo relativo à dedicatória do livro, no caso, destinada à Mãe Therezinha. Mário estaria objetando ali, nas páginas da primeira edição, que:

ainda diz esta senhora que lhe foi a mãe a melhor das amigas: inimiga, e das piores deveria ter sido, pois que não lhe ensinou sequer moral. (sic)

Em outros passos de diferentes poemas, o crítico alega uma e outra coisa, referindo-se ironicamente à Gilka como a “menina”, muito embora ambos tivessem nascido no mesmo ano. De modo que ele ora assevera que “todas estas filosofias junqueirescas são ridículas em poesia”; ora que “ai que a menina tem vida de eremita!”, e assim por diante, sempre em tom jocoso[7] 
Todavia, depois daquela simpática menção de 1928, mais tarde, num artigo de 1939 sobre “Heros Volúsia”, no Estado de São Paulo, e exaltando os dotes da grande bailarina que nos representa no estrangeiro, o nosso Modernista refere-se com justiça à mãe da bailarina como sendo uma

poetisa ilustre, autora dos mais ardentes versos femininos na nossa língua.

O crítico paulista parece, pois, ter mudado de opinião a respeito da obra de Gilka e, muito provavelmente, se apercebido dos preconceitos de que era objeto a escritora carioca, naquela altura em grande penúria de cabedais.

Em 1928, Gilka teve alguns poemas incluídos na Antologia feminina de Cândida de Brito, que iria contar com três diferentes edições e recolhas poéticas. Mas é muito curioso como, da primeira para a terceira edição, ocorrida em 1937, Gilka Machado vai (digamos) encolher: de poetisa “uma das mais notáveis”, torna-se apenas uma “mãe de família”, que perde, nessa edição próxima à publicação de Sublimação, a força da voz sensual e rebelde, diluída, então, num poema ali inserido, dedicado aos filhos e intitulado “Helios e Heros”. Digo que tal mutação é notável porque nela se projeta a mesma metamorfose sofrida em sua obra[8].
Em 1934, Gilka publicara, ainda na revista Festa, um pequeno artigo intitulado “Na manhã de cristal”[9].  Pelos vistos, este cristal aqui nomeado não é mais aquele objeto ruidoso, pronto a fazer alarde, que o título do seu primeiro livro anunciava. Na verdade, tal texto, editado então em Sublimação, tece uma espécie de balanço amargo do próprio percurso poético, um combate entre a energia vital e a entrega para a morte, poema doloroso onde Gilka constata, falando consigo mesma, que

Deixaste escorregar dos dedos tua sorte teu destino de estrela,
e a vida mata sempre antes da morte os que não sabem vivê-la.

Assim “cativa”, deixou que os outros acreditassem que ela se encontrava “morta”, de maneira que foi por eles “enterrada viva”.
E a dolorosa questão é posta: - “a presença dos mortos quem suporta?”

V. | Malgrado tudo, ainda na quadra de 1928, a animosidade difusa que rodeava Gilka acabara por alcançar até a sua casa-editora, afetando mesmo aqueles que, em princípio, deviam protegê-la e representá-la, já que controlavam os meios de divulgação do seu trabalho. Pois não é que são justo esses os que vão abusar da poetisa, provocando arbitrariedades no interior da sua obra?
A primeira e a segunda edições, quase seguidas, de Meu Glorioso Pecado, pela Livraria Azevedo/Erbas de Almeida & Cia Editores, são impressas à revelia do olhar da poetisa, a quem não são destinadas sequer as provas para correção! Há em ambas uma profusão de erros tipográficos, de omissão de versos, etc, etc. Para que se tenha idéia, o título que passa a vigorar para o volume, agora na segunda edição, deixa na sombra o nome original do livro. Este comparece apenas enquanto mero subtítulo e, ainda assim, acrescido de um artigo que não há. De maneira que se dá primazia a um anódino título de “Poemas” à segunda edição de Meu Glorioso Pecado, muito provavelmente um recurso cogitado a última hora para apaziguar um tanto a despropositada recepção da edição inaugural.
Segundo Nestor Vítor, Gilka só tomou conhecimento dessa edição quando o volume já se encontrava à venda, o que – sem considerar a inominável falta de respeito ao autor! - a teria maltratado sobremaneira. E o crítico comenta: “Tem-se de reconhecer, numa terra em que se comentem barbaridades assim, que ficam impunes”. Considera, então, como seria possível, a um autor sem dinheiro, “questionar judicialmente a propósito”. E conclui que tal “displicência” caracterizaria

a fase por que passa nesse momento a poetisa de que venho falando. Isso e o mais que ocorre justamente a quase quantos têm valor... neste delicioso país[10].

Aliás, Gilka sabe muito bem que não só a ela ocorrem tais disparates e desmandos de autoritarismo. A ela, que havia escrito precisamente sobre as injustiças sociais, sobre os miseráveis, sobre os desvalidos, sobre as classes mais baixas, além de ter tratado de temas da cultura brasileira, como o futebol, por exemplo. No poema “A uma lavadeira” (que pertence a Mulher Nua), Gilka dirige o seu “anseio singular” a essa vizinha que mais parece uma “rendeira”, desfiando sons madrugadores (brancura coalhando o ar noturno), a essa, que torna claro (mas “sem a força bruta”) o impoluto:

pudesses tu, leda criatura, lavar minha alma da amargura e pô-la ao sol para secar.

Mas, convenhamos, que ainda bem que, nesta fase negra, nem tudo lhe é adverso! Em 1930, Henrique Bustamante y Ballivián a inclui, com Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Ronald de Carvalho, num volume de traduções intitulado 9 Poetas Nuevos del Brasil.
Também Gregorin Reynolds, embaixador da Bolívia no Brasil, traduz, em 1932, os seus versos, publicando-os sob o título de Sonetos y poemas, com prólogo de António Capdeville, em Cochabamba, Bolívia.
Em 1933, a revista O Malho lança um grande concurso para a escolha da maior poetisa brasileira, e um júri de duzentos intelectuais, cujo voto era nominal, escolhe Gilka, que vence em grande margem de maioria.
Ainda em 1933, ela viaja para a Argentina a fim de receber homenagens; em 1941, visita os Estados Unidos; em 1948 vai para a Europa e empreende várias viagens pelo interior do Brasil. Em 1979, após a publicação de Poesias Completas, ela recebe o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.
Entretanto, Wilson Martins, que está sempre atento aos fatos, não aprecia tais festejos como celebrações. Ele crê, ao contrário, que apontar Gilka como uma das maiores, senão como a maior poetisa brasileira, não passava, naquela altura, apenas de “uma tentativa psicanalítica de reduzir-lhe a importância”, de neutralizar sua influência, visto que “nem todos os brasileiros estavam preparados para ler, sem extrapolações falazes, a obra” da poetisa. Deveras, nem era preciso ir mais longe: Humberto de Campos, que a admirava, considerava seus poemas verdadeiras “tempestades de carne”...
Wilson a compara a Hermes Fontes, ambos, segundo ele, estimados “talvez pelos maus motivos”. Os dois poetas “jamais se ajustaram a qualquer das grandes correntes literárias em curso”, o que significa que acabaram por envelhecer

mais rapidamente e mais irremediavelmente do que os parnasianos e modernos de estrita obediência.[11]

Também Osório Duque Estrada, a quem Gilka dedica um poema, comparece no cenário crítico da época para defender, com a sua autoridade crítica (e, para além disso, masculina), a reputação da nossa poetisa. Declara ele, em 1937, que

o país inteiro sabe que, dos poetas aparecidos nestes últimos trinta anos, ela é, incontestavelmente o maior de todos... No Rio de Janeiro, a par de grande admiração, o nome glorioso de Gilka Machado tem igualmente despertado o rancor e o despeito dos seus pequeninos, venenosos e malevolentes rivais. É odiada e invejada por alguns, que não se pejam de afrontá-la covardemente com as mais repugnantes e mais nojentas “maldades”.

Gilka nunca deixou de se ressentir dos insultos de que tanto ela quanto sua família se tornaram alvo. Na entrevista concedida a Nádia Battella Gotlib e a Irma Ribeiro, um ano antes da sua morte, ela relembra com amargura os desaforos gritados na rua aos seus filhos, por colegas de escola, cujos pais a consideravam uma “mulher imoral”. Sublinha também uma caricatura estampada num jornal do Rio de Janeiro em que a ridicularizavam, enfiando-a dentro de uma saia godê, que se levantava escandalosamente ao vento (à la Marylin Monroe) - ação ilustrada pela usurpação tendenciosa de um verso do seu soneto “Reflexões”: “Nasci para o pecado”... Ora, contra-atacava ela indignada, a intenção era claramente maliciosa, visto que fora do seu contexto - “Nasci para o pecado/ se é pecado, na Terra, amar o amor” - o verso tomava outra semântica e se tornava deveras capcioso.
Gilka comenta, na mesma ocasião, que estreara para as letras vencendo um concurso literário. Mas que, logo depois,

um crítico famoso escrevia que aqueles poemas deveriam ter sido laborados por uma ´matrona imoral´... Aquela primeira crítica (por que negar?) surpreendeu-me, machucou-me e manchou o meu destino. Em compensação, imunizou-me contra a malícia dos adjetivos.

Agora, em 1979, aquando da entrevista, ela revela que acabara por tomar “enjôo”, não pela poesia, mas pelo “ambiente” da poesia. Que, ao pé do fogão, ela teria feito muito dos seus poemas. Que as mulheres da sua época jamais confessavam o que sentiam, e que as poetisas tinham de ter como defensores homens de algum status e importância, para que pudessem se manter na ativa. Cecília Meireles, por exemplo, contava sempre com Drummond e Bandeira, que batalhavam por ela. Quanto a si mesma, escrevera sempre “com o corpo e a alma. (...) A minha vida está nos meus versos”!
Acerca da situação econômica das mulheres escritoras, ela assevera que apenas “quem tinha dinheiro, editava. Eu editei fiado. Conforme fui vendendo o livro, ia pagando.” E admite ter chegado a dispensar as benesses que o próprio Olavo Bilac lhe oferecera, porque queria manter-se independente dos homens:

Em 1916, fiz conferência sobre ´A revelação dos perfumes`. Bilac compareceu. Ele quis fazer o prefácio do meu primeiro livro. E eu recusei. Ele disse – Por que você recusa? - Recuso porque eu quero aparecer sem defesa, sem escudo. E com um prefácio seu, todo mundo já está me achando ótima.

De resto, havia ainda outra pecha: os intelectuais que escreviam sobre a sua obra temiam desagradar a outras mulheres. E para que se saiba: não só a moral masculina despejava-lhe farpas e a ofendia - mas também a feminina!
Talvez por isso mesmo, o olhar crítico que vai se apoderar da obra de Gilka buscará sempre conciliar o espiritualismo ao sensualismo, puxando a sua poesia ora para um lado, ora para outro, como a buscar um equilíbrio que variava diante das conjunturas e dos leitores. Esta é a constante mais incisiva presente na fortuna crítica da nossa poetisa. Veja-se, por exemplo, o comentário que a revista carioca Terra de Sol faz em 1924:

Não tem a lira da Condessa de Noailles, ou de Ada Negri, ou de Amália Guglielminetti, mais luminosa vibração que a sua, nem maior volúpia de arrebatamento, nem sonoridades e ritmos de mais vivo encanto. Gilka é uma alta cantora da embriaguez dos sentidos. Sua arte é, toda, uma vertigem sensual. (...) Mas nenhuma outra poetisa, entre nós, feriu tão fundo a nota da exasperação do sentimento amoroso, em que são alma e corpo um só apelo angustiado.

Na mesma revista, ainda em 1924, Emílio Moura, ao comentar a obra de Gilka, aproximando-a à do jovem Bilac e a de Dannunzio, conclui que (e é
preciso citá-lo todo), que Gilka se encontra mais perto de Bilitis[12] do que do que de Desborde-Valmore[13],

essa musa irreverente que surpreende a nossa sensibilidade. É que lhe falta um pouco de espiritualismo, falta-lhe na obra luminosa, o gesto que se alonga para o infinito nebuloso, que foge da superfície da terra à procura do sonho que se eteriliza, na inquietude do espírito; falta-lhe um pouco dessa outra alma, a que se não desnuda, a não ser para vestir o universo para dar a nossa miséria uma túnica transfiguradora. São vivas demais as impressões que lhe vêm da vida, por isso é que essa serenidade da inteligência diante da sensibilidade nunca se realiza nos seus momentos criadores. Lírica e panteísta, a sua obra é um bailado voluptuoso, na harmonia de sua alma com a natureza.

Em crônica de 1930, apodando-a de “a maior poetisa brasileira”, Henrique Pongetti nota que seus poemas, tão luxuriosos, “eram extraordinários por nascerem, paradoxalmente, de uma solitária enamorada do espírito.”
Péricles Eugênio da Silva Ramos, por sua vez, repara que

a sua ousadia não tinha impureza, mas punha à mostra a riqueza de seus sentidos, especialmente aquele pouco explorado em poesia, o tato. Sua sensibilidade é requintada, algo excêntrica, mas profundamente feminina.

E Leal de Souza, ainda em conferência em 1914 sobre cinquenta poetisas brasileiras, comentava que Gilka possui um voz “cheia de imprevistos acentos nunca dantes escutados”, acesos na “delicada volúpia” dos seus poemas. Seriam chamas de revoltas “supremas”, “sociais”, “estéticas”,

sentimentais do coração limitado a um círculo de amor convencional; revoltas audazes do espírito ébrio e sedento de liberdade!”

Data de 1977 uma carta de Jorge de Amado a ela.
Os tempos, agora, eram outros. Gilka, recolhida, morreria três anos depois. E a referida missiva declara que ele havia tomado conhecimento da vaga aberta na Academia Brasileira de Letras depois da morte de Cândido Motta Filho, e que, a partir de então, o regimento passaria a aceitar a eleição de mulheres. De maneira que ele pensara de imediato nela, porque acreditava que

entre as escritoras brasileiras, nenhuma merece tanto quanto a cara amiga, pertencer aos quadros da Academia, devido à importância de sua obra poética, uma das mais belas da língua portuguesa.

E encerrava a missiva, prometendo que se Gilka viesse a se candidatar, poderia ter certeza de que teria o voto dele “nos quatro escrutínios”.
Todavia, para Gilka, era tarde demais. Ela não deixara de se interessar pela vida literária, da qual abdicara tão precocemente. Ao longo da sua vida de poetisa pioneira,  fora hostilizada, tinha se tornado objeto de maledicência, tinha sido posta à margem por seus pares. De modos que ela  agradecia o convite, mas declinava dele.

Portanto, já agora, perguntemos claramente: afinal quais eram de fato as tais objeções mais contundentes feitas à poetisa? Quais os impronunciáveis preconceitos que vieram minando a sua carreira?[14]

VI. | O teor dessacralizante da sua poesia de mulher sempre fizera espécie. E tanto, que a crítica da época acabara por tomar como imperiosa a necessidade de separar (compartimentando-a para o público) a mulher que comparecia nos seus poemas daquela que os produzia. Esta última, a crer em Humberto de Campos, era “a mais virtuosa das mulheres” e “a mais abnegada das mães”[15].
Agrippino Grieco, que louvara em Gilka a ousadia anti-puritana e a ausência de preconceitos, enaltecendo-a como a “bacante dos trópicos”, também não faz diferente. Para ele, é premente o ditame de advertir a seus leitores que tais atitudes da poetisa pertencem à esfera do “domínio da arte”, o que significa que eram mui diversas daquelas que Gilka, a autora, desempenhava na “vida” real, em que ela se apresentava “modesta e altiva” [16].
Ora, na referida entrevista, a própria Gilka se lastimava de que até mesmo as mulheres reagiam contra ela, ao passo que os homens se compraziam na curiosidade de saber como seria na intimidade tão “distinta senhora”. E ela não tinha mais ilusões: sabia que o seu primeiro livro esgotara-se rapidamente apenas porque todo mundo queria conhecer o “livro imoral” [17].
E, deveras, Agripino concluía que constatara, na poesia de Gilka,

uma inversão de papéis, apressando-se ela em dizer aos homens, como poetisa, certas coisas que devia esperar [sic] que eles lhe dissessem primeiro”[o grifo é meu].

Posição compartilhada por Medeiros e Albuquerque que ressalta que

a situação das mulheres, quando se dispõem a cantar o amor, é muito mais embaraçosa do que poderia parecer à primeira vista. Os homens têm o direito [o grifo é meu], não só de aludir ao sentimento amoroso no que nele há de abstrato, como de descer às minúcias descritivas que nos parecem deliciosas. (...) Permitir-se-á [o grifo é meu] às mulheres fazer o mesmo? Parece que não. Até hoje pelo menos não se tem permitido.

Portanto, concluía ele, que seria

impróprio [o grifo é meu] o elogio do corpo masculino pela mulher, pois parece coisa brutal, luxuriosa, cínica.

Diante disso, Gilka seria a grande exceção, pois que ela sim, tinha 

a coragem de confessar certas inclinações que, em geral, as poetisas escondem.

Pois bem. Que “inclinações” seriam essas, guardadas a sete chaves pelas restantes poetisas?

Observo que na obra de Gilka, a condição feminina fica contígua à temática da simultaneidade de pessoas numa única e mesma mulher. Essa espécie de povoamento que habita a poetisa torna-se metaforizada, por exemplo, num de seus sonetos, na relação entre mulher e rajá, flexionada na amada que aguarda o amante, pronta a lhe oferecer tudo o que ele pretende dela. Diante do amante, tanto sua carne quanto sua alma se embatem, rivais, pois que a poetisa se sente ao mesmo tempo mulher e artista, cheia de insólitos requintes, fazendo-se, de propósito, ainda mais imprevista, o que (aparentemente) torna vitoriosa a sua sedução.
E o referido soneto (que está em Meu Glorioso Pecado) se encerra assim:

Feitas de sensações extraordinárias, aguardam-te em meu ser mulheres várias, para teu gozo, para teu festim.

Serás como os sultões do velho oriente, só meu, possuindo, simultaneamente, as mulheres ideais que tenho em mim...

Já num outro poema, Gilka expõe a sua existência de permeio, dando cena a uma vida desenvolvida num entrelugar de si mesma. Esse ser assim apertado, e que floresce apenas num intervalo estreito, se manifesta com a inconveniência de uma “tara”, como um “fantasma”. Todavia, segundo nos revela esse soneto do mesmo livro, tal mulher espremida, apertada dentro da outra, é aquela que com esta se debate na cena sexual, protagonizando o outro lado do feminino, pois é ali que, então, se chocam, face a face, e em litígio, a mulher de carne e a mulher de espírito. Cito o soneto completo:

A que buscas em mim, que vive em meio de nós, e nos unindo nos separa,
não sei bem aonde vai, de onde me veio, trago-a no sangue assim como uma tara.

Dou-te a carne que sou... mas teu anseio fora possuí-la – a espiritual, a rara,
essa que tem o olhar ao mundo alheio, essa que tão somente astros encara.

Por que não sou como as demais mulheres? Sinto que, me possuindo, em mim preferes aquela que é o meu íntimo avantesma...

E, ó meu amor, que ciúme dessa estranha, dessa rival que os dias me acompanha, para ruína gloriosa de mim mesma!

Também os frutos da natureza são metonímias eróticas, como ocorre com o “pêssego” em “Particularidades...”, pertença de Estados de Alma.
Digamos que aquilo que se esconde procura permanecer sob a obliqüidade de um vocabulário parnasiano e preciosístico, empregado na dicção solene do soneto alexandrino. Todavia, o poema vai trabalhando com os sentidos de maneira sinestésica, aguçando-os para outro fim que não o que aparenta, e a maciez colhida por Gilka através do tato, acaba por torná-la extremamente insinuante e felina. Afinal, o poema atenta para o fato de que ela ama o pêssego pelo que ele tem de sensual: ela ama nele a “pubescente poma”...
E o soneto parece desembocar no impasse dos quartetos, visto que saborear a fruta implicaria em destruí-la para o carinho das mãos. Todavia, ao se adentrar nos tercetos, uma comparação se delineia, ainda que de través. A maciez em pauta se desloca para os lábios do amado que, todavia, não são tocados pelos seus, mas antes (e pudicamente!) apenas pelo seu olhar acariciante. O prazer, então, se revela bem bizarro: através da vista, Gilka diz comer o pêssego dos lábios dele, comendo, pois, o pêssego, tão-somente pelo tato[18].

Toco-a, palpo-a, acarinho o seu carnal contorno, saboreio-a, num beijo, evitando um ressábio, como num lento olhar te osculo o lábio morno.

E que prazer o meu! Que prazer insensato!
– Pela vista comer-te o pêssego do lábio, e o pêssego comer apenas pelo tacto.

Os exemplos abundam e são inúmeros os que se manifestam na tênue linha entre o espiritual e o sensual, onde mesmo o panteísmo e os elementos telúricos (como em uma de suas tópicas, a da comunhão cósmica) ficam erotizados. O motivo da máscara, do espelho, da divisão interna; o uso da metonímia, da sinestesia, de um vocabulário conventual; de um certo orientalismo na reverência imposta à mulher diante do amado -  comparecem em sua obra abrindo caminho literário para uma necessidade de “despersonalização” no exercício do feminino. Ao mesmo tempo, repare-se como tal atitude poética fica muito perto dos procedimentos modernistas e da
divisão interna de um Fernando Pessoa ou de um Mário de Sá-Carneiro.
Gilka sempre nomeia uma coisa através de outra, à maneira do correlato objetivo de Eliot, num modus operandi em que o erotismo acaba por se exercer através de (digamos assim) suposta pessoa. Há mesmo, no repertório dela, um poema sem título que começa por “Lépida e leve” referindo-se à “língua” do seu amor, que pode muito bem figurar como a referência literária fundante do poema-canção de Caetano Veloso, tão conhecido e admirado.
De modo que, parece-me, os “impulsos íntimos”, a “sensualidade exaltada”, a “embriaguez dos sentidos”, a “vertigem sensual” de Gilka acabaram por semear na sua poesia, segundo os críticos, uma... (nada mais nada menos!) suspeição moral. “Bacante dos trópicos” é como Agripino Grieco a chama; “tempestades de carne” é (como já afiancei) a maneira como Humberto de Campos a identifica; “bailado voluptuoso” é como Emílio Moura cunha sua obra[19].
Mas é por tal viés que certas cogitações interessadas nos frenesis poéticos de Gilka deságuam, não por acaso, na sua ancestralidade familiar e na insinuação da sua... tez.

VII. | Poemas de tal naipe levam Humberto de Campos a tecer este comentário assim tão malicioso, que faço questão de citá-lo integralmente:

Leal com a sua musa, imaginou a ilustre carioca que poderia externar em versos, impunemente no Brasil, como Lucie Delarue-Mardus, Marcelline Desbordes-Valmore ou a condessa de Noialles, todo o ardor de sua mentalidade de crioula. E foi uma temeridade. Ao ler-lhe as rimas, cheirando a pecado, toda a gente supôs que estas subiam dos subterrâneos de um temperamento, quando elas, na realidade, provinham do alto das nuvens de uma bizarra imaginação. [20]

Dito assim, en passant, o leitor mal se apercebe de um dado de raça que pode ali se incrustar como um preconceito: Humberto nomeia uma “mentalidade de crioula”. Tal “inocente” e rápida passagem, no entanto, nos afiança que Gilka Machado era mestiça. Tal dado de realidade parece estar ali situado apenas para explicitar e sublinhar o ardor com que a nossa poetisa externava os seus versos. Entretanto, eis aí mais um dos preconceitos impronunciáveis sobre Gilka Machado.
Para além de mulher, de mulher pobre e sem educação formal, que ostenta nas mãos os estigmas do trabalho – ela também é uma mulher “de cor”!
A citação é dúbia e matreira. O crítico parece tomar o partido da poetisa contra os subdesenvolvidos sátiros da nossa Republiqueta de Banana, quando, na verdade, se compraz em explicitar o seu preconceito, fortalecido pelo “pecado” e associado aos “subterrâneos de um temperamento”. Repare-se também que Campos divide Gilka em duas, dilacerando-a: de um lado, ela é o tal temperamento ardoroso e o sentimento; de outro, a bizarra imaginação e o pensamento – cisão que, aliás, já vinha percorrendo toda a fortuna crítica da nossa poetisa, como demonstrei. No entanto, - é de fazer espécie! - as poetisas francesas citadas se encontram a salvo, fora do seu alcance e suspeita, e ali comparecem para contrastar com o sub-reptício primitivismo intuitivo (e de cor) de Gilka: são loiras ou da nobreza francesa.
Assim, embora externem em versos suas “mentalidades” femininas (certamente a ousadia de Lucie Delarue-Mardrus lhe fizesse alguma cócega!), ficam, no entanto, impunes, fora da jurisdição de Campos, visto que só Gilka, dentre elas, é “crioula”. Dentre as três estrangeiras (e é bom não esquecer) há uma dita “maldita” eleita por Verlaine: a loura Marceline Debordes-Valmore.
E só à luz desta citação pode-se entender por que Gilka, na referida entrevista à Nádia e à Ilma, nomeia Humberto de Campos com tanto rancor, asseverando que ele era um inimigo, um difamador. Deveras, a opinião da sua lavra tem a qualidade de insinuar, para além da mordacidade contumaz, aquilo que ele (e, quem sabe, a maioria da intelectualidade brasileira da altura) pensava a respeito dela. Também o argumento de que a poetisa era uma “artista nata e impetuosa”[21]  entra aqui como conseqüência de ser Gilka oriunda de uma família de artistas, músicos, poetas e atores, enfim, de gente dita “boêmia”.
De maneira que (como mexerica o ferino Lindolfo Gomes para o comprovado fofoqueiro Humberto de Campos) ela padeceria “da tara da família”, muito embora fosse menos “vítima” do “sangue familiar” que do sangue do “marido”. Este a obrigaria [sic] a escrever “aqueles versos escandalosos”, só para tirar disso [sic] “proveito de empregos e de relações”[22] 
E ajunte-se a estas ferinas suposições um depoimento não menos empenhado de Afrânio Peixoto ao mesmo Humberto de Campos, datado de 1930, e ver-se-á do que é capaz a maledicência.
Todo compungido e tocado pela miséria e pela sujeira da escura “alfurja”[23] onde residia Gilka na Rua da Misericórdia, Afrânio revela a Campos que Gilka não é “aquela moça branca e vistosa” que se mostra “nos retratos”, mas sim aquela “mulatinha escura, de chinelos, num vestido caseiro” que lhe aparecera então à porta.[24]
Eis a citação toda:

Você não imagina a tristeza que senti outro dia. Recebi de Gilka Machado o pedido de uma parte da minha obra, ou de um fragmento inédito, para uma antologia que ela estava reunindo. E me deram o seu endereço. Como era perto daqui, da Câmara, na rua da Misericórdia, e eu tinha a resposta no meu bolso, decidi ir entregá-la pessoalmente, ou seja, à doméstica ou a quem me recebesse. Subi uma pequena escada suja e sombria e me adentrei no segundo andar, diante de uma porta que fecha um corredor escuro. Bati e me apareceu uma pequena mestiça sombria, em chinelos, com um vestido caseiro. Perguntei se era lá que vivia a Senhora Gilka Machado.
- Sim, senhor; sou eu mesma – me respondeu a pequena mulata. Faça gentileza de entrar, doutor...
Eu não entrei. Entreguei a carta me desculpando e parti... Mas, seu Humberto, que tristeza! Eu não conhecia Gilka, a não ser por retrato: jovem mulher branca, atraente, chamando atenção... E eu tive pena de a ver nesse pardieiro,onde tudo respirava à pobreza e quase à miséria.[25]

O desaponto de Afrânio Peixoto diante da “verdadeira” Gilka Machado e sua comiseração por ela, certamente fruto da... infinita misericórdia e da piedade do literato, não se sabe se decorre do flagrante de miséria em que vivia a nossa poetisa ou se da decepção por conhecê-la (agora) com outra... cor e modos – ou se por ambas as razões!
Diante do que se lê, seria necessário avaliarmos com prudência e cautela tudo quanto se escreveu sobre Gilka Machado no seu tempo. Não é improvável que a crítica de época pudesse ter sido guiada por mais razões do que aquelas que dizem respeito apenas a uma mulher que escrevesse livremente sobre o seu desejo e de maneira tão extraordinária. Não teria sido Gilka, como poetisa (como mulher desvalida e sem tutor) também vítima do odiento crime de preconceito racial?!
Há certamente mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia!


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MARIA LÚCIA DAL FARRA (Brasil). Poeta e ensaísta. Página ilustrada com obras de Vicente do Rego Monteiro (Brasil), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 106 | Janeiro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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[1] Baseio-me no testemunho de Ana Maria Muricy, irmã do crítico Andrade Muricy, amiga de Gilka. A entrevista foi fornecida a Sylvia Perlingeiro Paixão, segundo nos informa em “Gilka Machado e a esfera pública”, texto inserido nos anais do 5º. Seminário Nacional Mulher e Literatura (org. Constância Lima Duarte). Natal: UFRGN/Editora Universitária, 1996, pp. 63- 69.
[2] Cito o poema, segundo comparece em Cristais Partidos, na edição comemorativa do centenário de nascimento de Gilka Machado. Poesias Completas (apres. de Eros Volúsia Machado). Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial Ltda, 1992, p. 83. Todos os restantes poemas enfocados serão também retirados dessa obra.
[3] CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001. Gilka é citada às pp. 27-28 e 124.
[4] PICCHIA, Menotti del. A semana revolucionária (org. Jácomo Mandatto). Campinas/São Paulo: Pontes, 1992.
[5] Trata-se do soneto “Naufrágio Irreparável”, constante de Arcos do Triunfo (Rio de Janeiro, 1940, p. 41).
[6] Entrevista concedida por Gilka Machado a Ilma Ribeiro e a Nádia Battella Gotlib, em final de 1979, e transcrita em GOTLIB, Nádia Battella – “Gilka Machado: a mulher e a poesia”. Mulher & Literatura. V Seminário Nacional (org. Constância Lima Duarte). Natal, Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 1995, pp. 17-30. Sempre que me referir ao seu testemunho, estou levando em conta esta precisa entrevista.
Pertencem também a esse volume dois ensaios fundamentais sobre a nossa poetisa. O de Angélica Soares, “O erotismo poético de Gilka Machado” (às pp. 33-42), e o da já citada Sylvia Perlingeiro Paixão, “Gilka Machado e a esfera pública” (às pp. 63-69), presentes nas especulações que desenvolvo durante este texto.
Cito também a tese de doutorado de Cleonice Nascimento da Silva, A busca da identidade feminina na poesia de Gilka Machado e Florbela Espanca (Assis: Unesp, 2003), um dos trabalhos pioneiros, que comprova como o discurso de ambas trabalha dentro do discurso masculino, escrevendo o que não pode ser dito e desconstruindo-o, retirando a mulher dos “cárceres da língua”. 
7Arthur Saffioti estudou os manuscritos do escritor paulista em “Gilka e Mário: dois centenários”. Poesia Sempre. Revista Semestral de Poesia. Ano 1, n. 2, Rio de Janeiro, julho de 1993, pp. 160-163.
[8] BRITO, Cândida de. Antologia Feminina. Rio de Janeiro: Edição de “A Dona de Casa”, 1937, 3ª. ed., p. 18.
[9] Festa. Revista de Arte e Pensamento n.1 (2ª. fase). Rio de Janeiro, dezembro de 1934, p. 3.
[10] Publicado em O Globo de 8 de julho de 1928, Rio de Janeiro, num artigo intitulado “Gilka Machado”. Não parece o autor estar a falar do nosso ilustre Brasil contemporâneo?!
[11] MARTINS, Wilson – História da Inteligência Brasileira v. VI. São Paulo: Cultrix, 1978, pp. 32-35. 
[12]Les Chansons de Bilitis foram publicadas em 1894, e são produção masculina (como também é o caso das Cartas de Sóror Mariana Alcoforado). Pierre Louÿs, seu autor (que por anos conseguiu ludibriar até mesmo os críticos) pretende fazer crer ao leitor que seu trabalho é apenas de tradução da obra de uma poetisa grega do VI século AC (cuja vida ele busca elucidar), originária de Pamphylie, que teria vivido em Lesbos (onde tornou-se rival de Sappho) e depois na ilha de Chypre. Para Bilitis, Louÿs forja até mesmo referências bibliográficas e documentos de um certo arqueólogo alemão. Trata-se de textos em prosa, inspirados a partir de um profundo conhecimento da língua e dos escritos poéticos gregos, num estilo simples, quase ingênuo, mas altamente sensual e de natureza sáfica. As outras canções de Bilitis, as Secretas, só foram publicadas depois da morte do seu « tradutor ». Claude Debussy musicou uma adaptação simbolista de três das Canções e, curiosamente, a primeira associação lesbiana americana, fundada em 1955, traz o nome de “As filhas de Bilitis”.
[13] Acerca da relação da poética de Gilka e da de Marceline Desbordes-Valmore, remeto o leitor ao meu texto «Gilka , a maldita », onde me empenho em examinar, a partir da concepção de « maudit » em Verlaine (que, aliás, escolhe como a única mulher “maudite” à Marceline), quais os pontos de contato e de dissonância entre ambas, e a razão de a crítica nacional tê-las, de alguma maneira, aproximado. O texto foi publicado em Teresa v. 15. São Paulo : Universidade de São Paulo, 2014, pp. 117-129. 
[14]Uma poetisa portuguesa, sua contemporânea, também passou por tal suplício de detratações, bem mais acirradas que aquelas assacadas contra Florbela Espanca. Trata-se de Judith Teixeira (1880-1959), que teve seu livro Decadência incinerado em praça pública, em 1923, juntamente com o de Raul Leal e o de António Botto, defendidos, entretanto, por Fernando Pessoa que, por sua vez, a ignorou. O episódio em questão ficou conhecido como a “Literatura de Sodoma”, e, sobre tais aproximações entre Gilka e Judith, busco dar conta em “Gilka Machado e Judith Teixeira: o maldito no feminino”. Boletim n. 25, ano XV. Araraquara: UNESP/Centro de Estudos Portugueses Jorge de Sena, dez. 2007, pp. 157-186.
[15]CAMPOS, Humberto de - Crítica. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W.M. Jackson, 1945, 2ª ed., p. 400.
[16]GRIECO, Agrippino – “As poetisas do Segundo Império”. Evolução da poesia brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947, 3ª ed. rev., p. 93.
[17] Trata-se ainda da citada entrevista. 
18 A tradição de tratamento do pêssego, pela ala feminina de poetas, data, pelo menos, de Barroco Português. Em Sóror Maria do Céu (1658-1753), na seção dedicada às “Significações das frutas moralizadas em estilo simples” de Enganos do Bosque (1736), encontra-se o poema “Pêssego guerra”, comparado ao coração humano, ao qual se terá de vencer para se ter glória. Cf. Antologia da poesia do período barroco (org. Natália Correia). Lisboa, Moraes Editores, 1982, p. 245. Remeto o leitor para um texto meu onde abordo tais questões, intitulado “Poesia de mulher em língua portuguesa”. Abrindo Caminhos. Homenagem a Maria Aparecida Santilli. São Paulo: Coleção Fia Atlântica n. 02, 2002, pp.337- 353.
[19] MOURA, Emílio. “Poetisas (do “Esfinges” ao “Nunca mais”)”. Revista Terra de Sol, agosto de 1924, nº.8 (vol. 3), p. 197.
[20] CAMPOS, Humberto. Crítica. Opus Cit. p. 400. Os grifos são meus.
[21] Cit. por GÓES, Fernando. “Gilka da Costa Melo Machado”. Panorama da Poesia Brasileira (O Pré-Modernismo). Vol. V. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1960, pp. 165- 175.
[22] O verrino comentário, citado por Humberto de Campos, no seu Diário Secreto .Vol.II (Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1954, p.63), teria ocorrido em 4 de junho de 1919, a propósito da publicação de Estados de Alma.
[23]O leitor estranhará o termo, para o qual há estas acepções do Houaiss: pátio interno descoberto, destinado a ventilar e iluminar os aposentos de uma casa; rua estreita, ou
qualquer área, onde se atirava o despejo das casas; monte de detritos, de objetos velhos ou gastos, sem préstimo; monturo; lugar freqüentado por gente desclassificada; antro. Dentre todas podemos supor o significado escolhido por Afrânio Peixoto.
[24] Afrânio teria revelado a Campos tais fatos em 18 de agosto de 1930. Cf. Diário Secreto,
Opus Cit.p. 50.
[25]Cit. por Mônica Raisa Schpun. “Entre privée et public – partage de genres à São Paulo dans les années vingt ». Histoire et Societés de l´Amérique Latina. n. 3. Paris : Paris VII/CNRS, mai 1995, pp. 137-159.


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