segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

RUY VASCONCELOS [sobre] Joaquim Cardozo



Em geral, o Brasil não tem sido muito generoso com poetas que estão à margem de certo cânone para leigos. De uma antologia escolar. O mesmo que seleciona repertório para manuais didáticos. Ou o que separa o assunto das teses acadêmicas em departamentos menos engajados com pesquisa. E se pensarmos no modernismo, por exemplo, isso soa pontual.
Drummond, Cabral, Bandeira – e, mais recentemente, Murilo Mendes – têm sido as pedras da vez. E se tem tocado muito nelas. E elas se têm prestado a vários jogos – e umas poucas partidas de horas extraordinárias. Mas também a algum desgaste por recorrente repetição de jogadas. Aquele desgaste que o excessivo toque da mão provoca nas pedras de damas.
O certo é que houve um envolvimento fatal com esse núcleo mínimo, até o ponto em que nos desacostumamos a olhar para outros lances em curiosidade. E, então, algumas leituras caducaram por má repetição de comentário. Nesse sentido, o caso de Cabral e sua poética da pedra é emblemático. Hoje em dia, um gasto exemplo de vulgarização. Um clichê escolar. Quer dizer, não a força da imagem em si, mas a maneira como foi relida à exaustão, até ser acomodada ou amortecida. Atraída para uma inofensiva domesticidade.
Mas fato é também que, a partir dessa redução, desse olhar em linha reta, quase se desconhece por completo a obra dos demais poetas modernistas. E, claro, em algumas delas se pode surpreender um empenho formal tão lapidar quanto o dos selecionados para essa espécie de excesso de jogo.
Autores como Rui Ribeiro Couto ou Dante Milano, por exemplo, têm sido votados a um empedernido ostracismo. Ou, no mínimo, sub-investigados em prol dessa visada linear. E, dentre esses, há Joaquim Cardozo, que é mais conhecido como o amigo erudito de João Cabral. Ou então, como o engenheiro de cálculos, que traduziu para o concreto, mediante justas equações, a sensual sinuosidade dos palácios de Niemeyer.
Em 1997, o centenário de nascimento desse importante poeta, morto em 1978, passou praticamente em brancas nuvens. Não houve qualquer gesto mais largo de aprofundamento, pesquisa, divulgação. Ou mesmo de simples homenagem – à parte ser lembrado, em avulso, por um ou outro suplemento literário país afora. Não houve reedições críticas de suas obras. E hoje seus livros só são encontráveis nas prateleiras dos sebos e disputados, com acrimônia, por colecionadores bem informados.
E há muito a lamentar nesse esquecimento, pois Cardozo possui um lirismo justo, pensamenteado, capaz de surpreender pelo que nele há de invenção sob a veste do tradicional. E, em especial, exigente o bastante para variar só em sinceridade – e o quanto há de perícia neste só. “Enganadora simplicidade” em “balanços rítmicos tradicionais”, é como Drummond se refere a essa perícia de Cardozo para expressar-se por antigas fórmulas fixas. Para renová-las em alto grau mediante procedimentos mínimos.
O modernismo de Cardozo é a verdade. Uma instância consequente por oposição a rótulos de ocasião ou modas descartáveis. A verdade em vez da vanguarda. Uma busca pela coerência que, inclusive, o fará publicar seu primeiro livro, Poemas (1947), tão-só aos cinquenta anos. Ou no dizer de Drummond, “um aparelho severo de pudor, timidez e autocrítica salvou-o das demasias próprias de todo período de renovação literária”. Um lirismo que se quer um tanto distanciado da concepção lírica convencionalmente barroca da tradição brasileira. Mas que não a nega. Senão a desloca. Numa primeira leitura, quase nada desse jogo é aparente. Sua poesia soa mesmo bastante tradicional e até pré-moderna. Simples não quer dizer fácil. Quase nunca quer. E, assim, seus olhos cortam fundo, e bem mais esteados no pensamento do que se pode supor em pressa. E convoca os olhos do leitor a fazer o mesmo: assumir esse olhar solar – mas também elegíaco, que parece abraçar a paisagem da Zona da Mata, onde Cardozo viveu quando jovem e se deslocou por, como engenheiro de campo.
Chuvas e ventos, estios e luzes, sombras e árvores, praias e rios, Recife e pequenas vilas pesqueiras, Mosteiros de Olinda e mocambos de Tramataia, velhas alvarengas e mulheres com nomes simples e plásticos, gamboas e várzeas, corais e correntezas – um inequívoco senso de veraneio, ar livre – repõem, no entanto, um Nordeste impressivamente complexo, histórico, digno: relíquia de velhas chuvas. Um Nordeste inventariado para a alma. Uma “terra crescida, plantada/ de muita recordação”.
Um sentimento apurado, quase metereológico da paisagem é composto por uma límpida modelagem de palavras, chegando – como quase tudo em Cardozo – a criar galerias ou uma série de vãos subterrâneos. É por esses túneis que se pode adivinhar uma sorte de passagem comum, através da qual se dá o enredo, a correspondência de toda uma realidade mais estranha e extrema do que a que estamos habituados a ver em superfície: "as coisas se estão reunindo/ por detrás da realidade”. Uma mina em que se relacionam os elementos mínimos desse lirismo da contenção. Um raro inventário de dados concretos. E Cardozo sabe avalizar esse inventário como ninguém. Em profundidade quase mística. Trata-o com intimidade e cromatismos. “Visões de alto poder plástico” é como Drummond refere-se a essa exuberância visual dos poemas cardozianos.






E essa sorte de olhar em história é filtrado por uma sensibilidade extremamente cultivada. Um olhar que se cria também a partir de leituras diversas. Cardozo era um leitor atento de Valéry. Mas especialmente de Vico – que talvez haja sido seu herói por excelência, numa época em que ainda era praticamente desconhecido no Brasil.
Mas para todos os efeitos, esse Cardozo de que falamos é o de seus dois primeiros livros, Poemas e Signo Estrelado bem como o d’O Coronel de Macambira – que estranhamente não se faz presente na edição de sua poesia completa.
Propor Cardozo como leitura é propor integridade e alternativa. Especialmente num momento em que jovens poetas brasileiros escrevem excessivamente próximos uns dos outros e de um certo registro de ocasião. Decalcando-se. Fundindo-se mais do que diferençando-se. Reverenciando uma vanguarda suspeita. Algo que assoma mesmo como uma modalidade de neoparnasianismo.
Há algum entusiasmo em torno de um Paul Celan ou de um Francis Ponge recém-descobertos em tardividade. Mas a bossa do momento são apressadas releituras de Creeley, Palmer e de poetas experimentalistas americanos ligados ao grupo L=A=N=G=U=A=G=E e depois, quase sempre coercivamente monitoradas. Uma produção que escoa predominantemente por quatro editoras: Sette Letras (Rio); Ateliê Editorial e, mais atenuadamente, Iluminuras e 34 Letras (São Paulo). Além de pelas revistas Cult, Sibila (São Paulo) e, em menor grau, Inimigo Rumor (Rio). Editoras e periódicos que, de resto, têm exercido um papel seminal na divulgação de novas tendências em poesia. Mas que, de outro modo, também têm se prestado à divulgação dessa bossa em que há mais diluição festiva relacionada a um fenômeno de moda – como à sua vez a poesia marginal era a contraleitura nacional rala e tardia para os beats – que pesquisa empenhada ou real entendimento das somas. E há uma excessiva e condescendente necessidade de se dissociar do modernismo brasileiro – à exceção de Cabral, Murilo e, menos estavelmente, Drummond – quando a maioria sequer teve informação suficiente para saber fazer diferente desse modernismo. De suas amplitudes, ressonâncias. Das alternativas, para além desse excesso de jogo que fixou os nomes dos que são lidos em recorrência. Eis um resumo do agora.
Mas, como diz, em lucidez, um dos mais filosóficos poetas do século passado, o norte-americano George Oppen (1908-1984), “é equívoco pensar que poetas contemporâneos são os principais vetores na consolidação da obra de um jovem poeta. Isso quase sempre não é verdade”.
Dentro desse panorama, autores como Couto, Milano e Cardozo, poderiam contribuir para diversidade e enriquecimento de soluções. Especialmente no impulso de implodir com essa uniformização de momento. Também marcado pelo excesso de belo-marketing e autopromoção. E tudo isso em prejuízo do que realmente importa: pesquisa, expressão com real marca de dígitos. Vestígio de mão humana pairando sobre objetos. Uma artesania ameaçada.
A verdade em vez da vanguarda.


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RUY VASCONCELOS (Brasil). Poeta, ensaísta e tradutor. Página ilustrada com obras de Vicente do Rego Monteiro (Brasil), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 106 | Janeiro de 2018
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