quarta-feira, 4 de abril de 2018

FLORIANO MARTINS | Maria Estela Guedes nos regaços comovidos da linguagem



Meu encontro com Maria Estela Guedes se deu em função dos periódicos que dirigimos, TriploV e Agulha Revista de Cultura, revelando a partir de então um entranhável leque de afinidades que nos permitiu, dentre outras atividades comuns, criar um dossiê dedicado ao Surrealismo, instalado dentro do TriploV. Meg, como desde então a chamo, pela simpática e sugestiva reunião das iniciais de seu nome, é também uma consistente investigadora científica, área em que se destacam seus estudos sobre Naturalismo, desenvolvidos a partir de seu vínculo com o Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa. Uma parcela desses estudos se encontra reunida em um volume intitulado Lápis de carvão, publicado em 2005.
E não devemos esquecer também seus ensaios sobre António Ramos Rosa, Ernesto de Sousa e Herberto Helder, que podem ser encontrados na Agulha Revista de Cultura. Contudo, a oportunidade aqui nos leva ao conhecimento da poeta, através do encontro de três livros que somam recursos de linguagem distintos, como o teatro e o relato de viagem.
Tríptico a solo aproxima esses ambientes distantes apenas aparentemente, permitindo ao leitor observar como a autora os costura de forma substanciosa, agregando-lhes uma acentuada visão crítica. E já o veremos a partir deste prólogo (também ele pautado por esta nossa paixão pela mistura, pelo amálgama), primeiramente através de depoimentos da própria autora, seguidos de uma entrevista em que complementamos abordagens, não sem deixar em aberto o tema para que o próprio leitor se enverede por suas raízes, matrizes, abismos.

1. Ofício de trevas

No Oficio das trevas começa logo por me atrair a designação dessa cerimónia católica: missa solene, nocturna. Há várias obras com esse título, musicais e literárias. Julgo que é de Camilo José Cela um Ofício de trevas. Essa peça relaciona-se com uma época da minha vida, de crise total, devido sobretudo a um conflito muito sério com o discurso da ciência. Uma ciência que mente, arrogante, que se julga detentora da Verdade, e que por isso se auto-sacraliza. Eu parodio essa sacralização na cena da ladainha constituída por alguns dos muitos nomes científicos que teve, desde finais do século XVIII, a tartaruga-lira, uma espécie descrita por um famoso lente da Universidade de Coimbra, Domingos Vandelli. Mas a peça não reflecte só esse conflito com a ciência; reflecte também o que me levou à mesquita, onde aprendi os rudimentos do islamismo. Se eu não vivesse num país europeu, seria muçulmana. As religiões actuam como a ciência, dominando e cegando com os seus paradigmas. Mesmo sabendo disso, sabendo que as religiões têm a mesma Verdade da ciência, nós não conseguimos viver sem religião, porque é no seu seio que encontramos um alimento indispensável à vida mental: o ofício da luz ou das trevas, a alta cerimónia, o rito, o sacral. Eu seria muçulmana porque o islamismo é nu, directo, simples como um raio de luz. O catolicismo tem excessiva carga idolátrica e icónica para o meu ascetismo. Mas como vivo num país católico, não tenho outra fonte de cerimonial. Na peça, a personagem feminina, Lucy – Lucy in the sky with diamonds – Lucy de Lúcifer, o anjo da rebelião, essa Lucy assume o seu próprio sacerdócio porque não acredita no alheio: nem no sacerdócio científico nem no religioso. O rito que ela lidera é poético: ela acredita na Poesia como interlocução divina, acredita na Palavra como portadora de Verdade.

2. Lilith

Lilith é outra Lucy, o meu demónio, a querer tirar uma dor do peito que durava havia dois anos. Aqui para nós, Lucy, Lilith e outros diabos eram o meu hipertireoidismo, antes de controlado. Aquilo altera o comportamento e dá crises de cólera, um horror. Eu não fazia ideia de que era tão diabólica assim, apenas a minha tireóide estava a descarregar tóxicos para o sangue. Bom, certa vez comecei a rabiscar quando iniciei uma das minhas habituais viagens de Lisboa para Britiande. Ia-me surgindo uma ideia, uma história, um comentário, a propósito das terras por onde passava. Daí que quase todos os textos tenham um topónimo por título. Fui de Lisboa ao Porto de autocarro. No Porto, em Campanhã, numa grande e antiga estação ferroviária, apanhei o comboio da linha do Douro, mas resolvi ficar na Régua dois ou três dias, porque sou desta zona mas nunca tinha dormido com o Douro, e eu queria dormir com o Douro, assim como quem quer dormir com um homem muito desejado. Ali apanhei uma tempestade de verão, na varanda do hotel, uma chuvada, raios e trovões, parecia que estava nos trópicos. Foi muito inspirador. Não me sentia melhor: a cólera não se ia embora, a dor no peito continuava, se calhar era coração, porque o hipertireoidismo provoca arritmia e outros problemas cardíacos. Mas eu estava convencida de que o mundo todo se tinha virado contra mim, por isso estava a sofrer fisicamente, pensando que o sofrimento era apenas afectivo. Mas a escrita aliviava-me ou dava-me essa ilusão. A partir da Régua escrevi A tempestade, um pouco a duas mãos com o Oscar Portela, o poeta argentino, que anda e andava com uma depressão terrível. Dizia ele que a tempestade nem era a de Shakespeare nem outra: a verdadeira tempestade, a dele, e a minha, pensava eu, era interior. E realmente... Como só mais tarde comecei o tratamento, nessa altura A tempestade saiu sem nenhuma referência glandular. A propósito de referências, as referências preocuparam-me durante a escrita de Lilith até Atempestade. A partir daí, esqueci-me do problema, que é o de termos pontos de contacto que nos permitam a conversação. Eu escrevi para pessoas como a minha mãe, que não tem estudos quase nenhuns; por isso não há interlocução entre nós, as referências são distintas: eu tenho poucas referências no quotidiano e muitas na arte, tenho poucas referências musicais, por exemplo; então é difícil encontrarmos interlocutor intelectual quando os modos de vida e os pontos de vista são muito diversos. Escrevi para gente como a minha mãe, pensando: as pessoas que conhecem a Régua, Pala, Campanhã, que cultivam vinhas, têm adegas etc., vão aderir. Dou-lhes referências do quotidiano, elas aderem porque conhecem aquilo de que estou a falar. O esforço de falar para esse público hipotético fez com que o poema deslizasse muitas vezes para a prosa. Florzinha, tudo isto depende da região, não é? Tu se calhar não tens essas referências no teu quotidiano, por isso o meu discurso, se é acessível a um lamecense, já deve ser muito abstracto para um cearense. O que nos salva é outro tipo de referências: os afectos que andam pelo meio das linhas, coisas pouco claras a que chamamos “poesia”. A poesia é para nós uma rede de referências universal, uma linguagem acima do léxico e acima das línguas.

3. A Boba

Um dos nossos grandes mitos é o dos amores entre Inês de Castro e o rei D. Pedro I, o Cru, ou Justiceiro. A Boba não desmitifica, como aliás refere Eugénia Vasques no prefácio da peça. A ideia não é desmistificar, e sim pôr o mito a nu, deixar claro que aquela história de amor só pode ser mito e mais coisa nenhuma. Então, A Boba desmistifica, tira a máscara radiosa às figuras, mostra a História. E a História, seja a de Fernão Lopes seja a de uma ficcionista como Agustina Bessa-Luís, diz que a História é uma ficção. A Boba é o terceiro demónio, um joker em baralho de cartas. Ela declara-se o Mal em persona: foi ela, Miguéis, quem tramou toda a tragédia... Mas realmente ela não é culpada da morte de Inês de Castro, sim de se atrever a dizer o que terá sido coroado, meia dúzia de anos após o enterro da Reine morte. Aliás, todos os detalhes históricos que ela refere são endiabrados.

AO DIÁLOGO

FM Comecemos tratando diretamente do encontro dos três livros aqui reunidos, no que diz respeito à presença coincidente de seus protagonistas femininos: Lucy, Lilith e a Boba. De que maneira estas mulheres se entrelaçam, pensando nas conexões [tuas] possíveis entre vida e obra?

MEG Tu é que escolheste os livros. Como já me vais conhecendo, escolheste segundo uma unidade mental, a de o solo ser eu em três versões não muito diferentes. A Boba parece uma figura medieval, porque conta a história dos seus amores com Inês de Castro. Mas, pondo de lado a História, é claro que boba sou eu: faço disparates, momices, digo coisas que dão vontade de rir, além de desempenhar o habitual papel crítico concedido a essas personagens. As três são figuras fosfóricas, buscadoras de luz mais do que transportadoras dela, e isso é visível sobretudo no Ofício das trevas, por contraste. Em suma, as três têm a paixão de um conhecimento a que a verdade não seja alheia.

FM Em termos de linguagem, temos um livro central na forma de poemas – que a rigor são relatos de viagem – e duas peças de teatro, sendo a última um monólogo. Esta relação entre poesia, teatro e relato é algo que buscas como definição de uma poética ou o caminho a ser trilhado opta por uma linguagem a sobrepor-se as demais?

MEG Se tivesses escolhido ensaios e excluído o teatro, as linguagens seriam diferentes. Em todo o caso, não vejo grande diferença entre as formas de expressão. O livro mais lírico dos três, o mais profundamente poético, é a primeira peça de teatro, Ofício das trevas. A Boba é muito directa, não se perde pelo caminho com lirismo nem retórica, ela tem um discurso sintético, realmente próprio de teatro. E o livro a que chamas de relatos, Diário, mais próximo estaria de um Horário ou Minutário... Bem, os poemas deslizam muitas vezes para a prosa ou inversamente: existe o relato, uma vontade de contar que ora usa a prosa ora o verso, porque o importante para Lilith é ser ouvida por pessoas de instrução inferior a dela. Então busca referências no quotidiano para eu mais facilmente me encontrar com o leitor, já que os interlocutores são as próprias personagens: no interior de cada texto não faltam ouvintes, e mesmo a Miguéis tem muita gente à volta, que ela interpela; o seu discurso é um falso monólogo: a Boba dirige-se sempre a alguém: ao público, a Inês de Castro, a D. Pedro, a D. Afonso IV. As personagens, as pessoas internas, ouvem e entendem.
O problema é chegarmos ao coração dos leitores. Como dizer, em que registo, para sermos compreendidos?


FM Este é um velho dilema da criação artística. Inclusive muita arte de pouca expressão se guia por esta deliberada preocupação com a maneira eficaz de ser compreendida. Nisto quase sempre há, inclusive, uma subestimação do outro, do espectador; do leitor, no caso da literatura. A arte deveria ser mais um estímulo à certa avidez por novas experiências, novas formas de conhecimento. Não te parece?

MEG Sim, esse é um falso problema, intelectual e artisticamente falando. A arte é um estímulo à avidez por novas experiências, novas formas de conhecimento, sim; mas só entre nós dois, só entre parceiros. Não existe tal relacionamento entre um poeta e o engenheiro que vive na vivenda ao lado. Salvo alguma exceção bem-aventurada, esse estímulo não funciona com os professores dos nossos filhos e ainda menos com o homem do talho. Isso incomoda, parece que as classes sociais passaram a classes intelectuais e que vivemos segundo a nossa em prateleiras diferentes. Onde está o tempo em que o povão apupava e aplaudia o próprio Shakespeare, representando as suas peças? Comendo, bebendo e gritando, em pleno espetáculo? Incomoda, não é falso problema do ponto de vista emocional. Interessa à nossa vontade de ser felizes que o outro nos acompanhe, nos reconheça. Vejamos, Floriano, esse é um problema imenso e verdadeiro, tanto mais doloroso quanto insuperável. Imagina uma sala de espetáculo em que um poeta diz versos para uma platéia vazia... Imagina os nossos livros, em Portugal, a não serem vendidos, o comércio livreiro a ruir, as bancas dos shoppings a serem inundadas por essa literatura descartável vinda sobretudo dos EUA... Tudo isto é uma punhalada no coração de Lilith, a pobre diaba, que sofre verdadeiramente, e sobretudo por não ter remédio para a situação.

FM Porém, há que estimar quais os obstáculos decorrentes de certa debilidade estética daqueles que são impostos por uma visão deformadora do próprio mercado de livros. Claro que ao autor interessa que o leitor se reconheça nele e que o acompanhe. Contudo, quem em Portugal mais contribui para o afastamento do leitor em relação ao livro: autores, críticos, imprensa, editores... Quem?

MEG Todos nós contribuímos para o descalabro, mas poria em primeiro lugar a instrução pública. De raiz, algo corre mal nas escolas, as pessoas crescem sem interesse pelos livros, dirigidas apenas para a futura carreira e tendem a confundir com cultura os passatempos de televisão. Ignoram que a cultura está na base da civilização; da arte esperam a representação própria do classicismo, esgotada no século XIX; pensam que “cultura não enche barriga” e decretam que “a cultura não dá votos”. Ora, sem Camões, sem Fernando Pessoa, sem Amália Rodrigues, sem Chico Buarque, sem Clarice Lispector etc., os professores não teriam nada que ensinar, por isso não haveria professores, a imensa indústria musical não daria emprego a tanta gente e, por aí adiante, teríamos um mundo mil vezes mais esfaimado do que já é. Nessa situação, o problema eleitoral ficava resolvido, por falta de entidade a quem dar votos...

FM Há um nítido cenário paródico em Ofício de trevas que põe em conflito as relações entre ciência e religião. Dizes que “não conseguimos viver sem religião, porque é no seu seio que encontramos um alimento indispensável à vida mental: o ofício da luz ou das trevas, a alta cerimônia, o rito, o sacral”. Contudo, também o homem consegue viver sem ciência e hoje como que se encontra mais refém desta do que da outra, e sob certo aspecto por um mesmo efeito religioso – no caso o da sacralização da tecnologia, por exemplo. Como a Poesia opera entre esses dois mundos, no sentido de recuperar a essência humana?

MEG O cenário em que se parodia a ciência é o da ladainha dos nomes científicos da tartaruga-lira, Dermochelys coriacea (Vandelli, 1761). Era fatal: de um lado os textos científicos estão escritos em latim, de outro o catolicismo permite a paródia, as missas do burro. Nota, entretanto, que da minha paródia está ausente o zurrar do burro! A ladainha é declamada, cantada em gregoriano e em canto corânico, com uns pormenores militares pelo meio, mas nada de deselegante. O cerimonial é tão solene como o da missa normal, e isso é possível por causa do latim. O grande cerimonial deriva do mistério, do terror ligado ao sagrado que vem do desconhecido. Esse clima existia na missa antiga, dita em latim, porque as pessoas falavam essa língua alienígena, sem a entenderem. Do mesmo modo, quem entende o que seja uma sinonímia de espécie? Uma lista de nomes de plantas em latim é um texto misterioso para os leigos, algo de ar terrífico. O comum dos mortais imagina que os cientistas já classificaram todas as espécies da Terra, e que essa classificação é imutável. Não faz ideia de que existem centenas de diferentes espécies só entre os coleópteros. Ri-se quando verifica que os coleópteros (escaravelhos) são objeto de estudo científico, como se a ciência só se ocupasse de cavalos de corrida e de cães de caça, por serem animais grandes e belos. O comum dos mortais não faz idéia de  que a Zoologia se ocupa de mosquitos, formigas e toupeiras, e não estuda galgos nem cavalos, porque esses animais não são fruto de seleção natural! Quem estuda galgos e cavalos são os veterinários, as ciências aplicadas, aquelas que justamente criam novas variedades de tartarugas, de cães e de ovelhas.
O comum dos mortais não sabe que dada espécie, no caso a tartaruga-lira, tem uma sinonímia, isto é, um cartão de identidade em que a ciência registou não um nome, sim os muitos nomes científicos que já teve, até certa data. A sinonímia da Dermochelys coriacea, uma espécie gigante, conhecida da ciência desde pelo menos 1761, é tão extensa, e são tão irônicos certos nomes, como o de porcata, que só entendo o incidente como autoparódico.
É a própria ciência que ri de si mesma, e então eu apenas torno evidente esse riso. Em rigor, a paródia não é minha. Mas não é por a ciência estar sempre a mudar os nomes das espécies que eu me incomodo! Essa mudança de nomes é espelho do que para mim é mudança da espécie, mutação! Ora as espécies só mutam de forma tão óbvia que seja preciso mudar-lhes a identificação se existir seleção humana, se estivermos a lidar com os resultados da intervenção da técnica de pecuária ou de piscicultura e não com a ciência fundamental. Nesse caso, não podemos falar de espécies, sim de híbridos, variedades, criaturas como os caniches, que já só falta nascerem de laçarotes na cabeça!
Para te responder mais diretamente: no Ofício das trevas, a ciência diz a sua missinha como qualquer padre, donde não aparece grande diferença nos métodos nem nos objetivos de ciência e religião. O que pode a Poesia fazer, perguntas tu? Pois, a Poesia mente menos, para já. A Poesia é mais autêntica, porque esses discursos auto-sacralizadores usados por religiões e ciência mais não são afinal do que a Poesia. O cerimonial e a sacralidade vêm da Poesia e não de Deus, certo? A Poesia é a mãe destas modalidades bastardas de ser e estar na Palavra. Por fim, a poesia mostra, ela tem Luz própria, é ela a Estrela. Tudo o mais são planetóides...

FM Retornemos às origens, aos primeiros impulsos que te conduziram à Poesia, identificações, buscas, enfim, por onde e em quais circunstâncias começas a escrever.

MEG Rasguei há pouco uma série de textos da minha adolescência. A Lilith fala disso, espantada, porque num deles referia a Nadja... Desde o Liceu que escrevo versos, a poesia coincidia em mim com os grandes conflitos amorosos. Como se a paixão tivesse uma língua natural, o poema. Usei por isso os  poemas como instrumentos de sedução. Sim, é possível que haja inéditos meus na gaveta ou na mente de alguns dos meus amados... Só comecei a olhar para o que escrevia com interesse editorial depois de os jornais terem começado a publicar crônicas e ensaios. E depois de grandes revelações poéticas, que podem não estar expressas em verso, como Octavio Paz, Herberto Helder, Umberto Eco, Rabelais... O excesso, os excessivos, os que transgridem as normas, como Luiz Pacheco, esses sempre me deslumbraram, porque, além de outro valor, têm o da coragem. São os meus heróis, os meus Batman... Mas olha, eu não cultivo muito a poesia, ela está em mim demasiado ligada à depressão. É preciso estar na fossa, de coração partido por algum amor impossível, para ela aparecer cá por casa, toda pintada, de saltos altos e vestido berrante, a exigir o meu lugar diante do computador para se entregar aos seus versos. Ou então de comportamento alterado com as substâncias tóxicas lançadas no sangue pela tireóide, que foi o que aconteceu no Diário de Lilith, mas eu não sabia. Deixa-te estar sentado, não há problema... Já fui ao médico, os demônios estão a ser controlados...

FM E a paixão pelo teatro, resulta de quais conflitos? Tens encenado os textos escritos ou pretende fazê-lo? Esta seria tua linguagem preferida ou acaso radica no ensaio uma maior afinidade expressiva?

MEG Em princípio, eu escrevo em qualquer género, mas sou mais solicitada para o serviço público, o ensaio. De qualquer modo, as duas peças do livro também resultam da vontade de satisfazer pedidos. O Ofício das trevas fez parte dos projectos de investigação do CICTSUL, Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa, de que sou membro. A Boba resulta de um desafio da Eugénia Vasques, crítica e instigadora de teatro.
Investigadora, devia ter escrito... O teatro dá-me imenso prazer, tenciono prosseguir a linhagem da Boba com mais uns mitos, em especial o de D. Sebastião. Dá-me prazer porque é um género altamente controlável, em que consigo ter todos os pormenores na cabeça. Não gosto de livros grandes, que não possa abarcar em menos de umas três horas de leitura. Livros grandes, se têm uma arquitectura, são difíceis de construir. Uma criadora perde-se neles, mata uma personagem, esquece-se de que a matou, e depois lá aparece ela a atravessar a rua toda vivaça... A mim nunca tal aconteceu, mas acontece a outros. Uma vez ouvi Agustina Bessa-Luís a desculpar-se desses lapsos, dizendo que um romance é como a vida, na vida também nos esquecemos. Pois esquecemos, concordo com ela, mas na vida os mortos não andam a fazer compras na Baixa... Gostava muito que as minhas peças fossem à cena, mas por enquanto só foi montado um espectáculo, O Lagarto do Âmbar, na Fundação Calouste Gulbenkian. Pode ser que os brasileiros leiam o livro, se entusiasmem e encenem as peças. Nós, por cá, estamos de algibeiras vazias, numa crise sem paralelo! Afinal, em muito do que eu escrevo há marcas do Brasil. Tenho estudado os Naturalistas, por isso, em ensaio, há bastante matéria publicada, nas circunvizinhanças das Inconfidências: Mineira e Baiana. Ensaios sobre João da Silva Feijó e Álvares Maciel.
Este foi o ideólogo e iniciador maçónico do Tiradentes, era o naturalista que devia proceder ao armamento da revolução. No Ofício das trevas notam-se uns vestígios brasileiros dessa investigação sobre a História Natural.

FM Em um ensaio teu, lemos a seguinte passagem: “Pôr portas no campo é o mérito maior dos movimentos da modernidade, e não só dos surrealistas: não se trata tanto de subjugar à sua liderança teórica e modelos poéticos a capacidade de criação alheia, mas de fornecer o campo e o húmus necessário ao florescimento do que nunca poderia ser -ista em sentido estrito, dada também a rebeldia inerente a cada artista, a sua necessidade de seguir caminho pessoal. O Surrealismo é ainda hoje uma porta de entrada e de saída, uma casa de família a qual o filho pródigo ainda pode retornar”. Como situar em Portugal, nominalmente, esta porta de dupla função, naturalmente considerando suas variações e atualidade?

MEG Eu nunca poderia ser como sou se autores como Octavio Paz me não tivessem posto portas no campo. Portas manuelinas na selva amazônica, entenda-se. E dito: salta, não tenhas medo da extravagância, é assim que te libertas e exprimes a tua própria singularidade. O Surrealismo tornou essas portas um movimento, instituiu a liberdade de expressão poética. Aquilo que em Rabelais é excepcional, individual, com o Surrealismo tornou-se coletivo. Nesse momento eu não consigo situar nada em Portugal, não creio que exista nenhum chapéu que recubra várias cabeças ao qual se possa dar um nome terminado em -ista. Para já, os intelectuais portugueses são snobs, odeiam pertencer a grupos em que estejam A, X, e Z, odeiam Z porque se sentem plagiados por ele, não se apercebem de que já Carlos de Oliveira, no seu tempo, fez o que eles agora nem sabem que repetem etc., por isso mais facilmente se organizam em capelinhas do que em movimentos estéticos. Eu sinto alguma necessidade de pertença, por isso pertenço, sou membro de centros e de instituições.
Agrada-me estar no meio de vós, não me incomoda a pertença surrealista, pelo contrário. Mas aqui, em Portugal, para a maior parte dos intelectuais, o Surrealismo é algo que pertence ao passado. Nesta casa ou em qualquer outra, eu não suporto coleiras de idéias pré-fabricadas, por muito que pertença. Mas penso que um dos equívocos sobre o Surrealismo é esse, e é dele que falo na frase que citaste: o Surrealismo não exige seguidismo, submissão. Seria inconcebível esperar que um Buñuel seguisse caninamente as pisadas de um Salvador Dali, por muito que ambos tenham criado Un chien andalou. Não existem dogmas em arte. O Surrealismo não pode confundir-se com uma ideologia. Basta o seu estímulo à liberdade para garantir que não ata, não agrilhoa escolasticamente, e que a qualquer momento pode incitar à mudança. Por esse fluxo, podem filhos pródigos voltar a casa, podem aí berçários mostrar ao mundo que do movimento surgem revolutivos nascituros...

FM Estou de acordo e ao mesmo tempo lamento que o Surrealismo se mostre hoje em diversos países mais com um perfil deste “seguidismo” que apontas do que propriamente com um sentido de liberdade que sempre o caracterizou. Dentro e fora de Portugal, é possível identificar obra surrealista com a qual dialogas mais intensamente, que possa ser referência na definição de uma poética tua?

MEG Talvez tu possas dizer, eu não. Os autores surrealistas que mais me marcaram não se considerariam surrealistas. Um deles é o rival de Cesariny, editor de Cesariny, o surrealista-abjeccionista Luiz Pacheco. É claro que tenho pontos em comum com Herberto Helder, que a semelhança afectiva me aproximou da obra dele, que pode até dar-se o caso de saber de cor frases dele sem saber que as sei de cor, e por isso reproduzi-las em textos meus. Noutros tempos isso ter-me-ia incomodado, mas acima desses nomes situa-se um outro, com o qual não devo ter grandes afinidades estéticas, mas que considero um Mestre: Ernesto de Sousa. O Ernesto citava como se os textos fossem dele – “Quando eu nasci, todas as frases que haviam de salvar a Humanidade já estavam escritas, só faltava uma coisa: salvar a Humanidade!” –, o Ernesto dizia coisas inacreditáveis como esta, que justificam a apropriação do alheio como nosso: “O teu corpo é o meu corpo é o teu corpo”. Não me perguntes a quem pertence a tirada, se a Joseph Beuys se a Filliou: para mim, ela é puro Zé Ernesto. Depois de ter tido aulas com um espírito verdadeiramente iluminado e de vanguarda como o Ernesto de Sousa, podem todos os vira-latas latir-me às canelas, que eu seguirei impávida o meu caminho. Tenho textos maus, às vezes ouve-se neles o canto das aves, estranho era que assim não fosse.

FM Peço que comentes sobre a trajetória do TriploV, desde seu surgimento, não esquecendo de mencionar sua recepção, em Portugal, junto à mídia impressa.

MEG A mídia brasileira, como bem sabes, logo que o TriploV apareceu, fez-nos uma entrevista no jornal O Escritor, da UBE. Aqui, não. O que não quer dizer que o TriploV seja desconhecido. Não é, e também fui entrevistada, mas pela imprensa regional, um jornal de Viseu. Todos conhecem o TriploV, há muitos sítios, alguns bem valiosos, como o Instituto Camões, com links para nós. Muitos artigos do TriploV vão para outros espaços editoriais, virtuais e em suporte de papel, caso dos meus, publicados num jornal da região do Porto, O Progresso de Gondomar. Eu penso que as pessoas ainda não sabem o que significa figurarem no TriploV. A avaliar pelo pudor em referirem sítios em bibliografias, em publicarem no ciberespaço e tal, eu diria que muita gente pensa que “virtual” significa “inexistente”. Não contes a ninguém, mas às vezes dá-me vontade de chutar aqueles que se aproveitam, e depois não mencionam o que têm publicado no TriploV. Bom, estamos ambos no TriploV, ambos estamos na Agulha. O TriploV tem seis anos. Passou de zero a alguma audiência, e neste momento, deixa ver, vou consultar o último relatório do Magno Urbano, que data de abril de 2007, portanto do mês passado. Posição do TriploV no ranking mundial: 142.760º lugar. Isto em trinta e tal bilhões de sites. Entre os 7 milhões que existem em Portugal, vamos no 6.053o. Quanto ao Brasil, figuramos entre os 7.000 mais visitados, num total de 143 milhões. Acho fantástico este recorde, esta posição vanguardista no Brasil.
Porém há números mais importantes. Mais importante é a carga transportada nos porões da cibernave: vinte mil páginas, cinquenta mil imagens, um milhar de autores representados com obra, desde a Idade Média até ao momento, várias nacionalidades num grupo que se constituiu de forma mais ou menos espontânea, com duas colunas fortes a segurá-lo: Portugal e Brasil. Na maior parte, são os autores que se aproximam do TriploV, eu já não preciso de pedir colaboração. Chegam sobretudo do exterior: são estrangeiros e emigrantes portugueses. As pessoas não reparam na bandeira da fachada e no que está escrito debaixo dela: pensam que o TriploV é um sítio brasileiro.
E pronto, isto também é obra tua, a equipa inicial mantém-se: cooperação com a Agulha, onde estás tu e o Cláudio Willer, e coordenação minha, do José Augusto Mourão (Lisboa) e Maria Alzira Brum Lemos (São Paulo). Investi muito, agora colho os frutos. São saborosos: no verão vou conhecer mais colaboradores do TriploV, no Peru e no Brasil. Participarei em cursos e colóquios com eles. Tudo o que acontecer terá registo no TriploV, para as pessoas em todo o mundo irem lá dar quando fazem pesquisa no Google. E finalmente: sem TriploV, não te teria conhecido a ti e por isso este livro não teria nascido.
Agora já chega, recebe um ciberbeijo e vai dormir, são horas de recolhermos a penates.


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Prefácio do livro Tríptico a solo, de Maria Estela Guedes. Organização de Floriano Martins para a Coleção Ponte Velha da Escrituras Editora. São Paulo, 2007. Página ilustrada com obras de Sérgio Bonzón (Argentina, 1959), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 109 | Abril de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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