sexta-feira, 6 de março de 2015

ALCEBIADES DINIZ MIGUEL | Da poética Shrapnel


I | Em meados do século XVIII, um militar e inventor britânico, o tenente Henry Shrapnel projetou uma curiosa munição de artilharia cuja essência destrutiva não estava situada em sua capacidade explosiva ou de impacto, mas na sua capacidade de impulsionar fragmentos menores à velocidade e alcance superior aos das balas de fuzil correntes (cf. HAMILTON, 1915). A explosão desse tipo de munição de artilharia impulsionava fragmentos e estilhaços que atingiam as tropas inimigas como uma chuva de navalhas em chamas. Adotada pelo exército britânico em 1808, a munição de artilharia shrapnel (o batismo deriva do nome de seu criador) teve uma longa vida útil em termos militares, sendo ainda utilizada no início da Primeira Guerra Mundial. [1] Essa forma de artilharia foi aposentada quando os fuzis, arma essencial da infantaria desde o século XVI, ganhou novo impulso pela revolução tecnológica imposta pelo fuzil de modelo Minié, surgido em 1861 como substituição do mosquete convencional (cujo alcance confiável não passava dos cem metros), arma que garantia tiros mortais a um alcance acima dos 500 metros. A nova tecnologia em fuzil aposentou o canhão como arma anti-pessoal, deslocando sua posição e função: foi para trás da linha de frente, tornar-se arma de pressão e apoio. O poder explosivo desse tipo de arma passou a ser valorizado, ao mesmo tempo que as linhas de frente ganhavam a feição de No Man’s Land, um território fantasma, desértico e desolado como as imagens usuais do Hades, recortado por trincheiras subterrâneas nas quais os soldados permaneciam entocados boa parte do tempo (cf. GOLDONI, 2012). Mas a herança da artilharia shrapnel se manteria, de certa forma, na estrutura das insidiosas minas terrestres, imaginadas para atingir soldados inimigos (ou qualquer outro ser) que estivesse caminhando a pé, para mutilá-lo com o máximo de eficácia.
Não é preciso muito esforço para perceber que um artefato mortal mas complexo, um obus de dois tempos que amplifica a explosão do projétil pela multiplicação de pedaços mutilantes projetados, acabaria ganhando certa atenção de autores interessados nos efeitos apocalípticos da guerra moderna. Podemos citar dois desses autores, em campos políticos completamente opostos, que trataram do shrapnel em período histórico relativamente próximo, o da Primeira Guerra Mundial: H. G. Wells e Ernst Jünger. Wells menciona o artefato em pelo menos dois momentos: no conto “The Land Ironclads” (1903) e no romance Kipps (1905), centrando sua criação em ambos os casos na ideia paradoxal – logo amplamente encampada pelos futuristas italianos – que a ruidosa batalha constituiria uma espécie de sinfonia, na qual o ruído destrutivo e apocalíptico, que atiça o pavor do soldado, constitui uma espécie de nova e feroz harmonia: “Alguma coisa, vinda do alto, muito parecida com o impacto de um acidente de trens chegou aos ouvidos de todos e a artilharia shrapnel explodiu sobre nós como uma tempestade de granizo.” (WELLS, 1952) [2] Já Jünger, menos horrorizado – mas igualmente fascinado – pela maquinaria apocalíptica da guerra contemporânea, representa a guerra e os guerreiros contemporâneos dentro de uma perspectiva próxima ao mito heroico, obliterando o horror em termos individuais (o rosto e o corpo, eventualmente mutilados, dos soldados) para se debruçar no deleite da visão do horror topográfico, de cidades calcinadas que se transformam, nas fotos aéreas do período, em representações abstratas nada distantes da pintura não figurativa de vanguarda contemporânea da Primeira Guerra Mundial, um verdadeiro “anti-mundo” no qual a figura humana se acha ausente (cf. OCAÑA, 2002). Nesse sentido quase ornamental, a munição shrapnel surge com frequência, despertando um universo de sensações sinestésicas e percepções atrozes (ao corpo humano), mas esteticamente relevantes: “De tempos em tempos, subia uma lufada de fumaça de um obus, impulsionada para o ar como que por uma mão fantasma; ou a bola de um shrapnel pairava sobre a terra de ninguém como um floco de neve gigante, desfazendo-se lentamente.” (JÜNGER, 2004). [3] Nessas visões iniciais, o shrapnel surge como uma peça de um intrincado quebra-cabeça de maquinaria bélica, destrutiva: os dois autores, exemplos paradigmáticos e influentes, buscavam refletir a partir dos fatos da guerra, buscando ainda algo como um elemento de reconhecimento, uma forma de entendimento (muitas vezes ideológica e política tanto quanto estética).
Essa busca, contudo, não implicava em mimetizar algo do funcionamento de tal maquinaria destrutiva, no qual o shrapnel ocupava uma estranha posição de destaque em termos estéticos e funcionais. Para mimetizar o shrapnel e não apenas desenhá-lo em uma paisagem, seria necessário absorver algo de seu funcionamento: a atomização, o funcionamento em dois estágios, o impacto que atinge de uma forma ou de outra o que esteja ao redor de seu raio de ação. Não seria absurdo afirmar que, enquanto testava – dizem que às próprias expensas – seu novo armamento, na segunda metade para o final do século XVIII, desenvolvia-se ao mesmo tempo uma percepção narrativa da realidade com elementos análogos. O processo de fragmentação e atomização da narrativa deu passos importantes nesse mesmo período, ainda que exilado ao experimento radical demais para o grande público, objeto extremo de experiência guardado por seus autores para o momento em que o impacto direto de sua estratégia fosse melhor aceito.

II | Uma aproximação entre o artefato bélico e tecnológico e elementos da Cultura, como fizemos em um momento inicial, com certeza agradaria J. G. Ballard, um autor profundamente interessado em tornar seus textos artefatos e artigos científicos, demonstrando simultaneamente o esvaziamento dos discursos civilizacionais da Ciência, da Técnica, da Cultura. Mas, colocando de lado efeitos retóricos, a analogia entre um tipo peculiar de artilharia de fragmentação e a construção narrativa que valoriza processos de atomização, serialização e separação não pode ser considerada absurda. Na verdade, o que aproxima esses artefatos de destruição de novas invenções em termos narrativos é justamente o período em que se desenvolveram: entre 1766 e 1772 Horace Walpole, inaugurador do gótico com sua novela The Castle of Otranto (1764), elaboraria as enigmáticas narrativas de Hieroglyphic Tales. [4] Embora os contos que compõem o livro possuem certa, por assim dizer, uniformidade, a base absurda das tramas diz respeito mais imediatamente a um princípio central nos processos de fragmentação narrativa: o non sequitur, a construção não linear que segue um procedimento sequencial que sugere a livre associação de partes heteróclitas. Observemos a abertura do primeiro conto, “A New Arabian Night Entertainment”:

No sopé da montanha Hirgonqúu está situada desde tempos antigos o reino de Larbidel. Os geógrafos, que não estão aptos a este tipo de comparação, dizem que este se assemelha a uma bola de futebol a ponto de ser chutada. O que ocorreu, pois a montanha chutou o reino para o mar e não mais se ouviu falar dele. (WALPOLE, 2004)

Os nomes estranhos acentuam um clima de irrealidade, mas nada prepara o leitor para a concretização de uma metáfora absurda anunciada, nem para um final tão abrupto de uma trama que se delineia pelo clichê da apresentação lendária de um reino. Contudo, as tramas diversas que constam do livro avançam na produção de efeitos diversos advindos da fragmentação do tecido narrativo. Nesse sentido, o último conto, batizado singelamente “A true Love Story”, é exemplar: espécie de ilusão de ótica narrativa, truque de espelhos ou de lanterna mágica, divertimentos que o abastado e bem relacionado Walpole provavelmente conheceu. A trama novamente principia pelo engano da percepção esperada pelo leitor através de uma associação metanarrativa: o conflito entre grupos políticos e famílias nas complicadas relações entre as cidades italianas no período de Dante. Em conjunto com o título, essa evocação traz à mente do leitor as paradigmáticas tramas amorosas que empregam tal cenário: Romeo e Julieta, Dante e Beatriz. Surge então o casal do conto – Orondates de Milão e Azora, aparentemente uma escrava africana – possuidor de uma ressonância dos casais associados (como os shakespearianos Romeu e Julieta), que parecem jovens, apaixonados, ambos filhos adotados, separados por um complexo e infeliz jogo de conveniências da sociedade. O jogo prossegue até o climático final da trama, quando nos é informado que os dois jovens são na verdade dois cães de raças diferentes, um galgo italiano (Orondates) e uma cocker spaniel preta (Azora) (cf. WALPOLE, 2004). É bem verdade que o conjunto das Hieroglyphic Tales de Walpole teve uma série de influências decisivas – críticos enumeram, entre outras, As mil e uma noites, Decamerão, Gargantua e Pantagruel, Tristam Shandy e Rasselas, a história do príncipe da Abissínia (cf. GIOIA, 2014). Também não está inteiramente distante da verdade a afirmação de que os contos de Hieroglyphic Tales, como o restante da produção literária de Walpole, não passou de uma distração de um cortesão e colecionador de antiguidades, uma consequência parcialmente casual dos gostos de um confesso diletante (cf. CUENCA, 2005). Mas é inegável a originalidade se não da estratégia de construção narrativa de Walpole, ao menos da forma como ele a aplica para a construção de universos absurdos que, contudo, ainda se entrelaçavam com os contextos usuais das tramas romanceadas por elos metalinguísticos e metanarrativos. Da mesma forma, o autor percebeu como essa aplicação valorizava o efeito grotesco, irônico e satírico, gerando um desconforto no leitor (ao qual resta a opção de exilar os deletérios efeitos da narrativa atomizada ao campo do sonho/delírio).
Contudo, Hieroglyphic Tales não representou nenhuma revolução direta uma vez que foi publicada, de fato, muito tempo depois de sua feitura e mesmo da morte do autor. Contudo, não era apenas Walpole quem intuía os novos caminhos possíveis do fracionamento narrativo: igualmente voltado à sátira, William Blake escreveria, entre 1784 e 1788, um romance marcado pela percepção narrativa não-linear e absurda. O romance não foi terminado – sequer possuía título – e, como a coletânea de contos de Walpole, não seria publicado ou conhecido de forma integral antes do século XX, quando ganhou o título Uma ilha na Lua, “retirado da frase de abertura pelos primeiros editores, uma vez que William Blake parece não lhe ter atribuído qualquer designação” (PORTELA, 1996). Blake apresenta nessa narrativa sem título ou término um universo às avessas: o círculo de amigos de Blake que se reunia periodicamente na casa de Anthony Stephen Matthews para discutir tópicos filosóficos diversos, do progresso da Educação aos novos caminhos da Ciência. Esses tópicos são todos ridicularizados por Blake em sua fantasia, discutidos por personagens que são reconfigurações de seus colegas de discussão, refletindo sobre os problemas de uma ilha imaginária, um duplo da Inglaterra, proposta que surge logo na abertura da narrativa:

Fica na Lua uma certa ilha junto a um grande continente, ilha essa que parece ter uma certa afinidade com a Inglaterra, &, o que é mais extraordinário, os seus habitantes têm uma tal parecença, & a sua língua uma tal semelhança, que qualquer um pensaria estar entre os seus conterrâneos. (BLAKE, 1996)

O tom satírico aproxima a fábula de Blake dos contos enigmáticos de Walpole: [5] trata-se de construções satíricas, cuja função seria a destruição de perspectivas da realidade utilizando distorções e estilizações dessa mesma realidade (a Europa e a Inglaterra no final do século XVIII). No caso de Blake, a própria Inglaterra ganha um duplo lunar, que ganha corpo por processos de associação diretos, alegóricos e livres – o que novamente aproxima Walpole de Blake. A associação torna-se um processo chave na construção de uma narrativa fragmentária: a maneira como os fragmentos se organizam faz com que a trama adquira uma tonalidade mais ou menos radical e atomizada. Tais esforços pioneiros, contudo, acabaram esquecidos por décadas, ignorados por seus criadores e situados de modo geral à margem dos processos miméticos e de construção da narrativa e só seriam recuperados pelas vanguardas no início do século XX.

III | As experiências de fragmentação narrativa entre as mais radicais, como a de Walpole e a de Blake, terminaram abandonadas por seus criadores como “excentricidade”, “curiosidade” ou teste de possibilidades. Tais autores pressentiam que projetar a realidade em um espelho fragmentado era potencialmente danoso para eles mesmos – como a artilharia fragmentária, que uma vez detonada expande seus estilhaços para todos os lados possíveis, atingindo todos que estejam a seu alcance. Tendo em vista essa nova imagem, nossa aproximação da munição e certo formato narrativo torna-se menos forçado, aproximando-se mais da noção de um objeto análogo, encontrado – como nas complexas permutações estabelecidas no conhecido jogo adotado pelos surrealistas: o objet trouvé. Ou seja, segundo Dali (em texto publicado no periódico Le surrealisme au service de la révolution # 6): “Esses objetos, os quais estão adaptados a funções mecânicas mínimas, são baseados em fantasmas e representações capazes de serem provocadas pela realização de ações inconscientes.” (DALI apud BROTCHIE; GOODWIN, 1995). Através de processos de construção poética e narrativa centrados no acaso e em desencadeamentos pulsionais, as vanguardas do início do século XX retomaram a fragmentação da narrativa, desenvolvendo novas possibilidades de relações livres entre os fragmentos, novas opções à ordenação causal das partes e do todo. Curiosamente, esse processo – que não significou retomada ou mesmo inauguração de novas tradições ex nihilo, mas apropriações, estilizações, trabalho lúdico – não esteve limitado aos usuais centros de Cultura do Ocidente, eclodindo em autores e grupos situados em localidades culturalmente “periféricas” que descobriam na poética fragmentária novas possibilidades de criação. Esse foi o caso, por exemplo, do escritor argentino Macedonio Fernández (1874-1952), um dos mestres de Jorge Luis Borges, em narrativas inclassificáveis como Papeles de Recienvenido (1929), da qual reproduzimos um trecho, a seguir:

Um momento, querido leitor: por ora, não escrevo nada. Estou calado para meditar a respeito de um telegrama que leio em ‘La Prensa’ e que me assegura que não foi destruída por uma explosão a cidade próspera e antiga de Muchagente Vielemenschen, apenas levemente avariada, tampouco que se houvesse explosões de gigantescos arsenais que melhorassem as casas da cidade, esta seria uma delas. Faz uns três dias que a cidade voou – à tarde, a metade já havia reaparecido e com a outra metade ou duas metades a mais que se encontravam intactas ontem, o resultado é que cem por cento das quatro partes desfrutam da ordem estabelecida e possuem hoje mais metades que antes. Os mortos pela explosão têm de novo aonde viver e acredito que até existem mais casas: talvez uma para mim e outra para o correspondente dos telegramas (FERNÁNDEZ, 2014).

Os fragmentos usados por Macedonio Fernández têm sua origem na cidade e em elementos urbanos criados pela narrativa, trabalhados de forma matemática, num jogo de subdivisões que leva ao absurdo.
De forma semelhante, o grupo de surrealistas romenos, articulado por Dolfi Trost e Gherasim Luca em torno da editora Les Éditions de l'Oubli, buscavam construções narrativas que ressoavam em estranhos objetos/formas/representações e vice-versa: “As nove ilustrações do texto, chamadas grafomanias entópticas, resultam da ação recíproca do automatismo e do acaso. Pertencem aos processos que, negando toda a construção artística, confundem a imagem final com a operação necessária à sua própria produção.” (TROST, 1945). As vanguardas – como movimento ou em propostas de autores individuais – descobriam, portanto, a fragmentação como uma opção que ultrapassava a realização excêntrica ou a função satírica. A atomização da realidade, embora ainda inquietante, já não surgia como uma possibilidade tão destrutiva: na verdade, entendia-se que os processos de criação artística empregados pelos grupos de vanguarda, ainda que muitas vezes fracionadores, descobriam uma nova realidade (ou várias delas) e buscavam novas sínteses, uma unidade mais complexa: “Nos acusam de fazer ‘cinematografia’, uma acusação que nos faz rir por ser vulgarmente imbecil. Nós não subdividimos imagens visuais: buscamos uma configuração, ou melhor, uma forma única que possa contrapor um novo conceito de continuidade ao velho conceito de (sub)divisão.” (BOCCIONI apud CHESSA, 2012). Esta é a percepção do pintor futurista Boccioni, que se aplicava ao campo específico da criação visual e pictórica, o qual podia ser facilmente ampliado ao universo da narrativa, que buscava o mesmo aspecto de superação complexa tanto de formas unitárias do passado, vistas como problemáticas, como o efeito superficial da fragmentação, que tanta perturbação causou em autores como Walpole e Blake. Nesse sentido, os jogos surrealistas – objet trouvé, cadavre exquis, escrita automática, etc. – surgiam como metodologias sistemáticas para a desmontagem da solidez aparente da realidade cotidiana. [6]
O processo de fragmentação da narrativa, espelhando uma realidade igualmente quebrada em pedaços, persiste após a Segunda Guerra Mundial como uma retomada e/ou reformulação de certas estratégias surrealistas. Nesse mesmo período, por outro lado, passada a euforia subversiva que alimentava as vanguardas, via-se com mais gravidade que o usual os processos de fragmentação no campo da cultura: percebia-se, nestes, certo tom apocalíptico, não mais uma superação de dicotomias, mas uma desintegração, mesmo mutilação da própria realidade e de suas representações. [7] Quando o escritor norte-americano, associado aos poetas Beats, William S. Burroughs e autores franceses como Alain Robbe-Grillet retomaram as táticas surrealistas, com leituras novas, para compor um processo de construção narrativa cíclico e fragmentário, navegavam novamente por águas perigosas, escandalosas, obscenas.

IV | Uma das mais conhecidas afirmações do escritor William S. Burroughs diz que a linguagem seria um vírus do espaço sideral, cuja ação nos corpos seria devastadora, mutagênica e deformadora. Essa ação desagregadora da linguagem não pode ser captada pelos recursos usuais de expressão da linguagem e da narrativa, que estariam de certa forma dentro do “jogo” esperado da doença (ou dos alienígenas, seus inoculadores). Melhor exprimir esse novo estatuto linguístico através de um fluxo fragmentário de textos compostos por colagem: “Wittgenstein disse: ‘Nenhuma preposição pode conter a si mesma como argumento’ = A única coisa não pré-gravada em um universo pré-gravado é a própria pré-gravação o que quer dizer que qualquer gravação contém um fator aleatório.” (BURROUGHS, 1994). Os fluxos da realidade revelam-se miragens, cuja revelação exige a sucessão de choques e a desarticulação do encadeamento lógico tradicional – mas a promessa e a esperança de uma síntese, a superação possível acalentada pelas vanguardas, perdeu-se no processo. Após a Segunda Guerra Mundial, o painel da narrativa fragmentária retorna, de certa forma, ao contexto do final do século XVIII: surge como um reflexo perigoso e destrutivo de uma realidade temível. A metodologia surge como resposta, forma de articulação de sentido em um universo que carece de sentido: “Toda a escrita é, de fato, cut up. Uma colagem de palavras ouvidas por alto. O que mais? O uso de tesouras torna o processo explícito e sujeito a ampliação e variação.” (BURROUGHS, 2014). A divisão dos elementos do mundo e das palavras que a eles se referem surge, na poética de Burroughs, como uma forma de libertação messiânica, política e artística do homem. Burroughs parece não perceber que a técnica cut up apenas oblitera o jogo do acaso, nem que nossos primeiros exemplos paradigmáticos (Walpole e Blake) pareciam ter consciência de que esta (técnica cut up) estava associada a outras formas poéticas e narrativas do passado. Burroughs oblitera essa herança, optando pelas táticas de choque herdadas da modernidade ao colocar a colagem como um processo evolutivo, um salto de um ponto menos complexo a outro, qualitativamente superior.
Talvez um dos melhores exemplos da aplicação metodológica de Burroughs seja sua novela The Wild Boys: A Book of the Dead, publicada inicialmente pela Grove Press em 1971. Nesta obra há uma nítida alternância entre a metodologia cut up e momentos narrativos e reflexivos de estrutura relativamente convencional. Burroughs, à época, residia em Londres e desenvolveu alguns projetos multimídia com artistas ingleses, ao mesmo tempo em que utilizava a fascinante imagerie das culturas pré-colombianas, já que era assíduo visitante do Museu Britânico para extensas pesquisas. [8] O fascinante universo histórico e ritualístico dos povos pré-colombianos, que fora poeticamente recuperado ainda no século XIX pelo poeta brasileiro Sousândrade no épico O guesa (1871) ganhou uma nova valorização na obra de B. Traven, pseudônimo de misterioso autor, provavelmente de origem alemã, cujas narrativas se centram em aventuras de tipos saídos de romances noir nas áridas paisagens mexicanas, nas quais soçobram diante de uma cultura complexa e milenar. Esse é o caso da narrativa “O visitante noturno”, em que um protagonista, provavelmente norte-americano, descobre uma biblioteca de raros livros e manuscritos sobre os povos (astecas e chimichecas) de uma árida e inóspita região mexicana. Os códices, ricamente ilustrados, acabam por levar tal protagonista a um estado alucinatório no qual se dá o encontro com deuses e seres da mitologia local, que embebiam mesmo a paisagem natural: “A mata era como um monstro enorme de cujas garras eu não seria capaz de escapar.” (TRAVEN, 2008). Não por acaso as aventuras de Traven por esse universo entre o sonho e o delírio teriam um farto desdobramento inclusive cinematográfico graças à adaptação cinematográfica de John Huston para o romance de Traven The Treasure of Sierra Madre (O tesouro de Sierra Madre, 1948). Burroughs muito provavelmente conhecia essas obras e seu autor, como é possível inferir a partir de um trecho de The Wild Boys: “Xolotl, eu tive um sonho e meu amigo Xolotl sorria sobre a garganta do vidente Xolotl minhas pernas em cima dele e Xolotl se debatendo no céu.” (BURROUGHS, 2008). B. Traven também exerceu influência em outro autor que adotou a poética da fragmentação como arma para a construção de uma narrativa que se coloca como uma espécie de ataque aos padrões estabelecidos: J. G. Ballard, em The Atrocity Exhibition também recuperaria aquele autor. Para construir seu “personagem T”, sempre se modificando ao longo da trama, Ballard se lembraria da bem-sucedida maneira como Traven conseguiu manter sua identidade eludida:

A identidade central é Traven, um nome escolhido conscientemente de B. Traven, um escritor que eu sempre admirei por ser extremamente recluso – tão completamente que se colocava em contradição com nossa própria época, na qual o conceito de privacidade é construído a partir de materiais que circulam publicamente. Agora é praticamente impossível ser nós mesmos exceto nos termos do mundo. (BALLARD, 2006).

Em The Wild Boys, temos fragmentos atrozes que se direcionam a um grupo de guerrilheiros dispersos por localidades fora do eixo central da civilização do Ocidente, com a intenção de libertar tal eixo da “máquina policial”:

Unidades de guerrilha formaram no México e nas Américas Central e do Sul um exército de libertação para libertar os Estados Unidos. No Norte da África e de Tanger a Tombuctu unidades semelhantes preparam a libertação da Europa Ocidental e do Reino Unido. A despeito de diferenças de metas e do pessoal engajado, a clandestinidade concorda em seus objetivos básicos. Desejamos marchar sobre a máquina policial em todos os lugares. (BURROUGHS, 2008).

Os episódios se sucedem, alternando a luta dos wild boys, descrições de eventos dos marginalizados no México e em outras regiões, aventuras homossexuais e descrições na nova utopia selvagem projetada no romance. Esse último item, definido com mais clareza nos capítulos finais da trama retalhada, é fascinante – guerreiros perfeitos, os garotos selvagens constituiriam uma sociedade erótica na qual as mulheres, [9] a velhice e a morte seriam completamente excluídas, preservando nos corpos seminus dos guerreiros jovens as promessas de uma violenta existência transformada. O último aspecto mencionado da utopia dos garotos selvagens, a superação da morte, talvez seja dos mais fascinantes uma vez que parece moldado pelas ficções de horror pulp. Uma complicada mescla de ritual orgástico e tecnologia surge para a produção daquilo que Burroughs chama zimbu, um moribundo cuja alma é separada do corpo para tratamento de suas feridas. Quando a alma volta ao corpo do zimbu, uma festa orgástica marca o rito de iniciação do novo nascimento: “O pôr do Sol banhava os esguios corpos de luminosidade vermelha enquanto os garotos se preparavam para a desejada orgia.” (BURROUGHS, 2008). O próprio nome zimbu possui certa ressonância africana em sua sonoridade, embora surja como um jogo de palavras com a expressão “zumbi” (em inglês, “zombie”), o cadáver que caminha, morto-vivo que surge na literatura popular como resultado de experiências científicas e/ou de alguma maldição divina para perseguir e destruir a sociedade estabelecida pela replicação de si mesmo e pela devoração dos vivos, seus inimigos – transforma-se em arquétipo de renascimento espiritual. Assim, o plano imaginário se funde ao plano da política real e a estética pulp fornece elementos para novas utopias selvagens, plenas de ironia e contradição.
A atomização da narrativa na composição ao acaso de suas partes, entretanto, retomada por Burroughs com fervor não seria a única técnica surrealista influente após a Segunda Guerra Mundial: o fascínio pelo mundo do objeto e pela repetição cíclica ritualizada ganhariam novo impulso com o movimento nouveau roman. Para autores como Alain Robbe-Grillet ou Jean Ricardou, o universo se desdobra em repetições não exatamente idênticas: uma miniatura de brinquedo pode ressurgir como uma fortaleza cheia de soldados no Oriente; um manequim transforma-se em diversas mulheres possíveis; um encontro fortuito transforma-se em assalto sexual; uma cena de violência transforma-se em uma cena de violência ritual sadomasoquista antes de voltar a ser uma cena de violência. Nesses processos sucessivos de retomadas e reconfigurações, os personagens perdem elementos que os caracterizavam, nomes, traços psicológicos e mesmo a forma de seus corpos surge e desaparece ao sabor das sucessivas repetições, como uma materialização menos da ideia do eterno retorno de Nietzsche e mais das múltiplas repetições do planeta Terra (e do universo) imaginadas por Louis-Auguste Blanqui: “Assim, graças a seu planeta, cada homem possui durante sua existência um número infinito de duplos que vivem sua vida de forma absolutamente idêntica a ele mesmo.” (BLANQUI, 2000). A percepção de Blanqui ressurge no contexto da construção de um romance que girava em torno de possibilidades de leitura, concretização e descrição de elementos/objetos, cujos fantasmas que povoam o mundo tornam-se a referência decisiva, pois o que se buscava era uma “escrita sem álibi, sem ressonância, sem profundidade, mantendo-se na superfície, examinando sem ênfase, não favorecendo nenhuma qualidade às custas de outra” (BARTHES, 1994). A narrativa assim age diretamente sobre o objeto, mas não exercendo uma pressão excessiva, que ultrapasse as instâncias descritivas. Cada reconfiguração, cada nova evocação da coisa em Robbe-Grillet significa a recriação de um pequeno universo detalhado. Como no caso do agressivo uso da metodologia da colagem em Burroughs, a ritualização do ciclo em Robbe-Grillet visa uma realidade na qual objetos, ambientes e pessoas situam-se em relações intercambiáveis, tornando-se facilmente elementos descartáveis, eventualmente decorativos, de um cenário. Mas isso não quer dizer que um Robbe-Grillet pretendia expor, apenas, a crítica à reificação, em chave marxista, pois o autor projeta ao leitor certo deleite diante dessa objetivação universal, dessa violência repetida em um corpo (feminino) tornado objeto, retomando a antiga matriz erótica sadeana atualizada para o contexto após a Segunda Guerra Mundial.
Como no caso de Burroughs, autores do nouveau roman, como Robbe-Grillet, entendiam sua criação em termos amplos, como uma libertação ou uma quebra de paradigma: “Substituir essa ideia geradora de cronologia contínua e dirigida para um fim [...] é uma tarefa tão urgente e tão penosa como a de substituir os valores burgueses decadentes.” (ROBBE-GRILLET, 1974). Assim, na visão de Robbe-Grillet, uma visão mais engajada seria um projeto, como um esquema para a construção de um edifício ou o material que antecipa o que se espera de uma pesquisa, de um texto, de um romance. Em 1970, lançaria seu Projet pour une révolution à New York, aludindo já no título ao que pretendia, tendo em vista a cidade mais importante do país que, envolvido em uma longa e cruel guerra no Vietnã, tornava-se o alvo  primordial de uma certa consciência crítica. Mas a cidade de Nova Iorque que surge no romance não é, evidentemente, uma reprodução mimética da cidade mais populosa dos EUA, mas uma evocação dela através de índices pontuais: as escadarias de incêndio externas em ziguezague, o metrô lotado de pessoas e anúncios, os subúrbios socialmente degradados, a narrativa noir, as tramas de espionagem, a violência aleatória de gangs e indivíduos, a tensão racial, a distopia. [10] Trata-se de uma Nova Iorque de abstração, portanto; quanto à revolução, surge fantasmagórica em alguns momentos do livro: “o crime perfeito (...) seria a defloração operada à força em uma garota virgem, escolhida de preferência com pele leitosa e cabelos muito louros, a vítima sendo em seguida imolada por eventração ou degolamento” (ROBBE-GRILLET, 1974). Trata-se de um fetiche sexual ritualizado que o autor, ironicamente, oferece como forma de libertação. A revolução em Robbe-Grillet é a execução de um crime que segue certas formalidades e teatralidade, como aqueles perpetrados pelos celerados de Sade, mas sem o peso concreto da representação – afinal, os magistrados, padres e burgueses que abusam de Justine, em Sade, são personagens construídos com elementos que os distinguem uns dos outros, o que aliás vale para a própria vítima, Justine, cujo otimismo e boa consciência diante do Mal a associam à senda de personagens como Candide, de Voltaire. Robbe-Grillet anula os procedimentos que tornariam vítima e carrasco, observador e voyeur, categorias distintivas realizando um processo que aproxima, da perspectiva do leitor, o ato violento de seus objetos e de seu efeito erótico: “Contudo, não pode se tratar de um interrogatório; a boca, com efeito, que conserva longo tempo a mesma posição muito aberta, deve, sobretudo, achar-se distendida por uma espécie de mordaça” (ROBBE-GRILLET, 1974). O universo circular de Robbe-Grillet substitui a percepção histórica pelo tempo cíclico do ritual, o que talvez explique a tentação permanente que o cinema exerceu para esse autor: os fotogramas, isolados ou em movimento, possibilitam a captura perfeita, em um pequeno e controlado microcosmo, de personagens, cenário e objetos em um todo encenado como um jogo violento/erótico pronto a ser repetido quantas vezes o observador/autor quiser.



V | Herdeiro das duas tendências, J. G. Ballard em The Atrocity Exhibition (1970) coloca-se como uma espécie de ponto de convergência tanto da percepção agressiva de acaso e montagem de Burroughs, quanto das repetições ritualizadas de Robbe-Grillet. Ballard, por outro lado, realiza com o conjunto de “novelas condensadas” que constitui tal livro um movimento curioso: autor associado a um gênero de literatura de massa (a ficção científica) que ao transcender estilisticamente esse gênero acaba por projetá-lo para novas possibilidades. Contudo, o projeto de narrativa fragmentária ballardiana representa um momento de mudança nessa forma de construção: o momento da dúvida. Situando The Atrocity Exhibition em um ponto central de sua produção literária, Ballard jamais retoma – diferentemente de Burroughs e Robbe-Grillet – a produção de novelas tão radicalmente vanguardistas, embora tenha realizado sucessivas revisões do texto original nas edições posteriores. No acervo da British Library há uma demonstração clara dessa preocupação: trata-se da edição de The Atrocity Exhibition lançada pela RE/Search em 1990 com correções manuscritas do próprio Ballard (manuscrito Add Ms 88938/3/7/3). Devemos frisar, aqui, que a edição luxuosa, ilustrada, já recebera um tratamento informativo por parte do autor na forma de numerosas notas ao final de cada um dos capítulos. Assim, temos intervenções pontuais e de linguagem valorizando a síntese e suprimindo elementos que o autor via como prolixos. Mas, algumas vezes, o corte histórico, a necessidade de situar novamente a narrativa aos leitores de uma geração mais nova e mesmo o abandono de provocações norteiam as correções. Um exemplo claro disso ocorre na correção do fragmento “Tallis became increasingly obsessed”, localizado no capítulo 14, “Why I Want to Fuck Ronald Reagan”. Na correção feita por Ballard – depois adotada  nas novas edições do livro – suprime o trecho final do primeiro parágrafo do fragmento, entre parênteses: “(ef., anal-sadistic fantasies in deprived children induced by rectal stimulation)”, como um complemento do trecho, todo desenvolvido em um jargão irônico, vagamente psicanalítico, a respeito de fantasias sexuais relacionadas a campos de concentração. [11] Nota-se, nesse sentido, uma tentativa de situar os termos com mais clareza, de neutralizar ambiguidades, de centralizar a mensagem da narrativa dentro de uma chave interpretativa que evite a leitura que o autor talvez considerasse dúbia. Mas tais intervenções, por outro lado, demonstram certa insegurança do autor com a forma trabalhada, como bem percebe Philip Tew: “Contudo, as intervenções em forma de anotações minam a lógica estética original de Ballard, de uma imperfeita desordem e de uma desintegração formal que agora exigem tais coordenadas de localização e contextualizações detalhadas.” (TEW, 2012). Com todas essas devidas explicações, The Atrocity Exhibition pode integrar o fluxo de obras do autor, aninhar-se no fundo biográfico e estabelecer relações claras com outras obras ballardianas tanto para o scholar quanto para o fã egresso da ficção científica. 
Nesse sentido, talvez seja importante voltarmos à imagem encontrada que utilizamos ao longo deste texto: a munição shrapnel. Existe toda uma vasta literatura a respeito de bombas e demais artefatos de destruição que constituem quase uma semiologia dessas armas tenebrosas, mas fascinantes, que despontaram como estrategicamente fundamentais na Primeira Guerra Mundial. Nesse sentido, houve levantamento, análise e reflexão (filosófica, poética, narrativa) a partir de boa parte dos aspectos desse produto inevitável do avanço da técnica e das necessidades políticas da guerra moderna. Assim, em obras como Nada de novo no front (1929), de Erich Maria Remarque, há um longo trecho sobre os diferentes ruídos produzidos por bombas e munição de artilharia antes de atingir seus alvos. O próprio J. G. Ballard, em seu romance de ficção autobiográfica Empire of the Sun (1984), trabalha elementos como cockpits de aviões destruídos e bombardeios norte-americanos a bases japonesas em termos próximos ao mito fundador. [12] Outro exemplo possível encontra-se no filme A Espinha do Diabo (El espinazo del diablo, 2001), de Guillermo del Toro, no qual uma bomba, lançada pelos aviões da Legião Condor franquista, repousa parcialmente enterrada no solo em que caiu, bem no meio do pátio de um orfanato situado em região fiel à República espanhola. Trata-se de uma imagem poderosa: a enorme e fálica bomba, decorada com fitas nas cores da luta anti-franquista, circundada por crianças que escutam, por vezes (seria realidade ou alucinação?) o tiquetaquear do mecanismo interno ao artefato, indicação de que o detonador poderia ainda estar funcional, promessa de destruição constante de tudo e todos por ali. [13] A bomba surge, nos dois contextos que elegemos como exemplares, como objeto de metamorfose, antecipação, mudança angustiante: ela existe em um contexto dado (uma carga explosiva, carregada por certa distância dentro de um invólucro metálico, detonada a partir de um mecanismo inexorável e irreversível) apenas para se transformar em um elemento quase imaterial, o fogo e o choque resultante de sua detonação. Nesse sentido, o artefato shrapnel e seus herdeiros, as munições de fragmentação, aparecem como perfeitas antíteses: são bombas falsas, pois embora destas conservem a “aparência”, passam por um processo mais intrincado de transformação. Pois há a fragmentação – a explosão, momento ejaculatório de volúpia destrutiva e de transformação usual do artefato explosivo, é neutralizada pela necessidade da divisão em pedaços menores, eficazes para abater o maior número de seres vivos ao redor do epicentro da detonação. Algo da artilharia e da bomba sobrevive na topografia destroçada do campo de batalha, nas crateras e edifícios calcinados, uma mensagem codificada em índices da intensidade do bombardeio. O artefato shrapnel não obedece essa lógica: os fragmentos por ele gerados são de tamanhos e formas múltiplas e é impossível evocar algo de sua forma (peso, dimensão, capacidade destrutiva) apenas contemplando o espetáculo dos corpos mutilados após seu uso. É como se esse tipo de fragmento, resultado de uma explosão menor e calculada, não pudesse mais ser recuperado pela totalidade anterior do invólucro metálico.
As questões evocadas no parágrafo acima são importantes pois sinalizam com clareza que a narrativa atomizada que vemos em The Atrocity Exhibition é, de todas as apresentadas até aqui, aquela que mais se aproxima desse estranho aparato de destruição que é a artilharia shrapnel exatamente pela opção por um processo de fragmentação irrecuperável, que não se refaz como uma totalidade possível, ainda que distorcida ou deslocada. [14] Nas narrativas de Burroughs e de Robbe-Grillet, com todo o uso sistemático e experimental do fragmento e mesmo da colagem aleatória dentro do processo de criação de uma trama ou de subtramas, há um todo discernível ao final, uma possibilidade de recuperação de certa totalidade narrativa a partir de seus elementos esparsos e dispersos. Existe, em Burroughs, certa evocação constante da utopia/distopia política, representada pelo aspecto cíclico das civilizações pré-colombianas retomadas como fantasia homossexual pelos “garotos selvagens” em luta anti-imperialista. Robbe-Grillet, por sua vez, enfatiza a perversão sadomasoquista em tramas de contínuas repetições, minimamente diferentes umas das outras mas que ainda constituem um evento narrativamente organizado.
The Atrocity Exhibition não possui nenhuma dessas naturezas reestruturantes, pois não há um foco constante e uniformizante para a diversidade das micronarrativas, como podemos ver na ilustração a seguir: 



Na imagem, podemos ver como em certa continuidade abstrata e indeterminada surgem esses pedaços de intensidade narrativa e poética que são os fragmentos de The Atrocity Exhibition. Contudo, essa linha incerta e pontilhada não seria uma continuidade? Qual seria sua natureza? Poderíamos determinar o pontilhado como sendo o tempo morto, ou apocalíptico, em que se situam as narrativas fragmentadas, um tempo simultaneamente abstrato e concreto, uma vez que situado na memória da mesma forma que nos textos “neutros” da Ciência e nas matérias informativas, mas eventualmente carregadas de mentiras e manipulações que obtemos das mídias. Trata-se do passado (as memórias de “Jim” de suas terríveis experiências de guerra, com certeza, mas também a mescla desses horrores com aqueles mais recentes, das guerras coloniais) mas também do presente, da Guerra do Vietnã e das possibilidades destrutivas e/ou distópicas da Ciência. Há, nessa condensação de pequenas tramas, listagens e comparações disparatadas (ao modo inaugurado por autores como Lautréamont ainda no século XIX e eleito como método preferencial dos surrealistas); fragmentos de ficção autobiográfica (que, contudo, não foi lida dessa forma quando da primeira edição, no início dos anos 1970, embora o foco autobiográfico dos fragmentos de The Atrocity Exhibition ganhassem relevo a partir da publicação de Empire of The Sun, nos anos 1980); pedaços de ficção em forma poética; há discursos publicitários e/ou científicos subvertidos pela ironia, de modo semelhante ao realizado por Swift no século XVIII; pensamentos, máximas e reflexões esparsas sobre a Arte no século XX. Essa massa de partes e peças móveis constitui um labirinto, no qual ainda se exerce, de forma moderada e planejada, elementos de colagem burroughsiana (essencialmente na arbitrariedade alucinante das listas criadas por Ballard) e da repetição cíclica do nouveau roman. Se há personagens recorrentes (Catherine Austin, Dr. Nathan, etc.), que se repetem inclusive em termos funcionais e temáticos, isso não quer dizer que é possível seguir algum fiapo de uniformidade a partir de qualquer um dos personagens, inclusive do “personagem T”, cíclico e fundamental em qualquer uma de suas encarnações. Existe mesmo o caso de um personagem como Vaughan, o líder da seita de acidentes automobilísticos no romance posterior de Ballard, Crash, que aparece pleno e bem parecido ao seu formato final no capítulo 8 de The Atrocity Exhibition. Nesse sentido, há um radicalismo fundamental no projeto fragmentário de Ballard pois chega-se próximo ao ponto de negar qualquer tipo de estabilidade narrativa ao todo construído de forma tão instável que mesmo o tempo histórico parece-lhe avesso, com a necessidade de periódicas correções, reformulações e explicações que facilitem a legibilidade. Talvez tenha sido esse radicalismo o motivo do seu gradativo abandono em The Atrocity Exhibition por seu autor. É necessário frisar, contudo, que a abertura de possibilidades que o próprio Ballard assinala ocorrer a partir de The Unlimited Dream Company (1979) [15] surge em termos formais já com Crash (1973), romance imediatamente posterior a The Atrocity Exhibition, que adota um formato mais linear e fluido, situando as quebras eventuais (na forma de flashbacks e retomadas de ações) dentro do eixo sintagmático da trama, o que é simbolizado mesmo pela divisão dos capítulos em numerais romanos e não nos títulos complexos que vemos em The Atrocity Exhibition.
A verdade é que Ballard talvez percebesse certo desgaste na fórmula, além de uma possível falta de compreensão de uma poética narrativa excessivamente fragmentada, montada por processos de livre-associação, optando posteriormente por serem expressas em formas narrativas que valorizam, de forma sistemática, a causalidade, como o romance de formação e a autobiografia. Embora a construção narrativa por fragmentação, que batizamos aqui de poética shrapnel, não tenha perdido sua força reaparecendo em novas configurações como o romance neodecadendista In Delerium’s Circle (2012) de Stephen J. Clark – Clark, ilustrador e pintor egresso do surrealismo, utiliza intensamente em sua narrativa elementos como o object trouvé e demais jogos surrealistas – a verdade é que muitas vezes exige comentários exegéticos na forma de ensaios, manifestos, artigos, para que sua compreensão seja possível. Hieróglifo contemporâneo, a narrativa retalhada exibe de forma completa o Zeitgeist histórico – trata-se de uma representação profundamente ligada aos eventos geralmente atrozes que descreve e que, de certa forma, acaba exilada no passado junto a esses eventos.

Referências Bibliográficas
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NOTAS
1. Consultamos, no site archive.org, um manual detalhado dos artefatos shrapnel publicado em 1915, nos EUA.
2. Escrito alguns anos depois de “The Land Ironclads”, a representação do shrapnel em Kipps é ainda mais sinestésica, relacionada diretamente à busca de um harmonia para a cacofonia da batalha e do bombardeio que a precedia: “Deu-se vazão a três zurros ensurdecedores de forma a explodir a barragem de silêncio há muito estabelecida. Assemelhava-se, principalmente, a tios-avôs de trompetes, trombones gigantescos e freios de locomotivas. Soava como o pátio de manobras de trens. Bem no comecinho, o efeito foi explodir a contraescarpa ou adiantar o ataque direto ao som de um melódico shrapnel. Não havia mais ar, apenas ricochette.”(WELLS, 1922 – grifo do autor na expressão em francês no original).
3. Um pouco antes, Jünger descrevera o efeito do artefato no corpo de um seu camarada de front: “Homens da ambulância! Tivemos nossa primeira baixa. Um estilhaço de shrapnel atravessou de ponta a ponta a artéria carótida do atirador Stoker. Três pacotes de algodão ficaram encharcados de sangue de um momento a outro. Em questão de segundos, sangrou até a morte.” (JÜNGER, 2004).
4. A obra, contudo, só seria publicada em 1785, em tiragem de apenas 7 exemplares, incluindo as provas. Uma das poucas pessoas que entraram em contato essa primeira “edição” de Hiroglyphic Tales feita ainda em vida de Walpole, Madame du Deffand, comentou que a obra pertencia ao reino do delírio e dos sonhos (cf. WALPOLE, 2011).
5. Não deixa de ser curioso o fato dessas primeiras tentativas de criação de estruturas narrativas fragmentárias, articuladas por associação livre, se aproximarem do conto de fadas, sempre rico em associações complexas, não usuais, e sempre aberto ao considerado non sequitur. Como escreve Suzi Sperber: “Em vez de memorizarem, [os contadores de contos em culturas orais] combinavam frases estereotipadas, fórmulas e segmentos de narrativa, em ordens improvisadas de acordo com a reação de sua audiência.” (SPERBER, 2009). Um bom exemplo desse processo, no suporte já codificado do livro, é o conto do Barba Azul, conforme registrado pelos irmãos Grimm. Quando a filha, casada com o cruel Barba Azul, clama pela ajuda de seus irmãos, grita bem alto de uma janela do castelo: “irmãos, queridos irmãos, venham me acudir”. A janela alta e o pedido de ajuda fundam tempo e espaço, permitindo que os irmãos salvem a irmã de seu malvado marido (cf. GRIMM, 2012).
6. É necessário destacar que essa metodologia surrealista estava fortemente baseado no Objeto (texto, forma, matéria, etc.), o que a afasta, embora não de forma absoluta mas nos termos de uma poética da fragmentação, do fluxo da consciência conforme imaginado por autores como James Joyce. O fluxo joyceano especialmente em Finnegans Wake é menos uma busca de superação da dicotomia continuidade/fragmentação e mais a construção de uma continuidade sintética como um fluxo contínuo, açambarcador: “Finnegans Wake desdobra o mapa de uma mente ampla como o universo.” (SCHÜLER, 1999). Um momento exemplar desse mapa de infinitude ocorre logo no terceiro parágrafo, a queda: “The fall (bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonner-ronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!) (....)” (JOYCE, 1999). Na onomatopeia, concentram-se fusões, palavras-valise, condensações sinestésicas do conceito e da evocação de um grande estrondo em diversos idiomas. Tal construção, portanto, valoriza uma continuidade complexa, aglutinadora, contínua, cuja melhor imagem seria a do rio.
7. Para Adorno e Horkheimer – escrevendo durante e após a Segunda Guerra Mundial –, a própria linguagem estaria contaminada por elementos ideológicos alienantes, ainda quando aparentemente em oposição a tais elementos: “Não há mis nenhuma expressão que não tenda a concordar com as direções dominantes do pensamento, e o que a linguagem desgastada não faz espontaneamente é suprido com precisão pelos mecanismos sociais.” (ADORNO; HORKHEIMER, 2006). Essa conclusão levaria os autores ao uso de processos de reflexão fragmentários, não unificadores e não raro contraditórios, como o ensaio, o aforismo, mesmo a transcrição de sonhos e devaneios da vigília. É curioso notar que, em um campo ideológico oposto, a perspectiva, adotada por um Emil M. Cioran, era bem semelhante, com igual opção metodológica: “A negação é o veneno espiritual que desintoxica o universo, que lhe permite reencontrar-se diferentemente e alhures.” (CIORAN, 2011).
8. Com o artista gráfico Malcolm McNeill, desenvolveria o projeto Ah Pook is Here no início dos anos 1970, projeto no qual temas, imagens e mesmo personagens que atravessam fantasmagoricamente Wild Boys ressurgem (Old Sarge, Xolotl, The Dib, etc.). Tratava-se de um projeto que envolvia o desenvolvimento de uma narrativa gráfica de fato inovadora, antecipando procedimentos radicais mesmo para as hoje usuais graphic novels, como relata McNeill: “Comecei a criar quadros individualmente com a intenção de montá-los de uma vez quando estivessem completos. Isso levou à ideia do livro como uma única imagem, algo que estava em sintonia com os códices maias.” (McNEILL, 2012).
9. “Você pode pegar o esperma do seu namorado e levá-lo para um mercado, contatar um intermediário que vai arranjar  inseminação assistida de fêmeas inspecionadas. Nove meses depois o rebento macho será levado para uma remota e pacífica comuna atrás das linhas e combate. Toda uma nova geração crescia sem nunca ter visto o rosto de uma mulher ou ouvido a voz de uma mulher.” (BURROUGHS, 2008). Haveria muito o que dizer a respeito da perturbadora misoginia de Burroughs, ainda quando empregada para denúncia da condição muitas vezes subumana do homossexual; mas basta termos em vista o assustador projeto nazista de nome Lebensborn (“fonte da vida”), o qual provavelmente Burroughs conhecia e que emprega em sua trama para obter o efeito de Épater la bourgeoisie: “Na Alemanha nazista, o Projeto Lebensborn foi um dos diversos programas lançados por Heinrich Himmler, braço direito de Hitler e arquiteto do holocausto, destinados a provar e consolidar a teoria nazista da ‘raça pura’ – a raça ariana. Quando acabou a Segunda Guerra Mundial, soube-se que tal programa consistia na criação de residências secretas para que homens e mulheres ‘racialmente puros’ copulassem. As crianças nascidas no âmbito do programa seriam criadas e educadas pelo Estado alemão, e destinadas a formar o núcleo de uma ‘raça forte’, puramente ariana.” (Vítimas, 2014).
10. Ao representar uma cidade – na verdade, algo entre um slum e uma comunidade de vizinhos – do interior dos EUA através de marcações no chão de um estúdio na Dinamarca, Lars Von Trier não apenas retomou a peça Our Town de Thornton Wilder, mas também essa maneira de pensar o espaço de uma nação que é, com certa frequência, alvo da crítica global pelas ações tomadas em termos de política externa.
11. É necessário destacar que as edições anteriores mantiveram esses trechos, o mesmo valendo para as traduções. Assim, o trecho suprimido aparece na tradução francesa, aparecendo da seguinte forma “(Voir les fantasmes sado-anaux que provoquent des stimuli rectaux chez les enfants en état de privation).” (BALLARD, 1976).
12. Podemos citar, a guisa de exemplo, o trecho em que o jovem Jim Ballard penetra no cockpit de um avião abatido, caverna metálica e uterina: “Jim pousou seu modelo de madeira no capô do motor, subiu no para-brisa da cabine e desceu até o assento de metal. Sem o paraquedas, que fornecia um conforto almofadado ao piloto, percebia, ao sentar-se no assoalho do cockpit, encontrar-se em uma caverna de metal enferrujado.” (BALLARD, 2006).
13. No livro Guillermo del Toro: Cabinet of Curiosities, que reproduz trechos dos curiosos cadernos de anotação do diretor de cinema mexicano Guillermo del Toro, há detalhadas descrições visuais dessa bomba (cf. TORO, 2013), que ao longo do filme se transforma em objeto de culto feroz das crianças que protagonizam a trama como o paraquedista morto no romance Lord of the Flies (1954) de William Golding (adaptado para o cinema em 1963 por Peter Brook).
14. Fascinado por aviões, armas e tecnologia desde a infância, Ballard não ignoraria a imagem poderosa dos artefatos shrapnel em sua ficção. No conto “Venus Smiles” (publicado inicialmente com o título “Mobile”), um de seus primeiros (publicado em 1957) temos a seguinte imagem: “Quando eles saíram, eu e Blankett andamos juntos pelo jardim. Parecia que um artefato shrapnel explodira por ali. Torrões enormes de solo estavam espalhados por todo o lado, e a grama que não fora arrancada pela estátua estava pisoteada. Limalha de ferro jazia no gramado como poeira, uma ondulação sutil de notas perdidas exposta aos crescentes raios solares.” (BALLARD, 2009).
15. Um dos romances mais subestimados de Ballard, The Unlimited Dream Company (1979) apresenta uma interessante revisão da noção de ambiguidade do fantástico, ao apresentar Blake, um piloto que se acidenta em avião roubado e que pode ter se transformando em um messias dos subúrbios de Londres (isso é indicado por uma de suas visões) ou pode ser que esteja ferido e delirante, preso ao cockpit da máquina parcialmente destruída.



Alcebiades Diniz Miguel (Brasil, 1975). Tradutor, pesquisador, ensaísta, roteirista e contista. Seu mais recente projeto de pesquisa envolveu a tradução do romance fragmentário The Atrocity Exhibition de J. G. Ballard. Contato: alcebiades.diniz@gmail.com. Visite também seu blog: http://bibliofagia.postach.io. Página ilustrada com obras de Fabio Rincones (Venezuela), artista convidado desta edição de ARC.





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