segunda-feira, 7 de setembro de 2015

CLAUDIO WILLER | A poesia de Roberto Piva e o surrealismo


O texto a seguir foi originariamente apresentado no I Colóquio Internacional “Poéticas da Modernidade”, UNESP, campus de São José do Rio Preto, dia 11 de maio de 2011. É publicado com algumas atualizações.


Para entrar diretamente no tema, reproduzo, de Piva, o “Poema vertigem”, publicado em Ciclones, seu livro de 1997:

Eu sou a viagem de ácido
nos barcos da noite
Eu sou o garoto que se masturba
na montanha
Eu sou tecno pagão
Eu sou Reich, Ferenczi & Jung
Eu sou o Eterno Retorno
Eu sou o espaço cibernético
Eu sou a floresta virgem
das garotas convulsivas
Eu sou o disco voador tatuado
Eu sou o garoto e a garota
Casa Grande & Senzala
Eu sou a orgia com o
garoto loiro e sua namorada
de vagina colorida
(ele vestia a calcinha dela
& dançava feito Shiva
no meu corpo)
Eu sou o nômade do Orgônio
Eu sou a Ilha de Veludo
Eu sou a Invenção de Orfeu
Eu sou os olhos pescadores
Eu sou o Tambor do Xamã
(& o Xamã coberto
de peles e andrógino)
Eu sou o beijo de Urânio
de Al Capone
Eu sou uma metralhadora em
estado de graça
Eu sou a pomba-gira do Absoluto

Compararei com trechos de um texto arcaico, um hino gnóstico descoberto entre os códices de Nag Hammadi, datados do século IV d.C. É “O Trovão – Intelecto Perfeito” (a seguir, os trechos que transcrevi em minha tese sobre gnosticismo e poesia, Um obscuro encanto, publicada em livro em 2010):

Pois eu sou a primeira: e a última
Sou eu a venerada: e a desprezada.
Sou eu a meretriz: e a santa.
Sou eu a esposa: e a virgem.
Sou eu a mãe: e a filha.
Eu sou os membros de minha mãe.
Sou eu a estéril: e a que tem muitos filhos.
Sou eu aquela cujo casamento é magnífico; e a que não se casou.
Sou eu a parteira: e a que não dá à luz;
Sou consolação: de meu próprio trabalho.
Sou eu a noiva: e o noivo.
E o meu marido é quem me gerou.
Sou eu a mãe do meu pai: e a irmã do meu marido.
É ele que é minha prole. […]
Sou seu silêncio incompreensível:
E pensamento posterior, cuja memória é tão grande.
Sou eu a voz cujos sons são tão numerosos:
E o discurso cujas imagens são tão numerosas.
Sou eu a fala: de meu próprio nome.

A repetição do “eu sou” confere qualidade litúrgica a “O Trovão – Intelecto Perfeito”; a série de antinomias lhe dá valor poético.
Tal expressão através de antinomias, oximoros e paradoxos é arcaica. [1] Pode ser encontrada em hinos órficos do século IV d.C. No Asclépio, um dos livros do Corpus Hermeticum, “Deus é uma esfera inteligível, cujo centro está em toda parte e a circunferência em nenhuma”. Nessas manifestações órficas, gnósticas, herméticas e de outros cultos, o Ser perfeito – em “O Trovão – Intelecto Perfeito” quem fala é Barbelô, um princípio feminino criador do universo – se expressa ou é descrito através de antinomias por estar além do princípio lógico da identidade e não-contradição. O acesso a esse plano é através da gnose, do conhecimento absoluto, caracterizado por Layton como “entendimento não-discursivo” (Layton 2002; Willer 2010) Por isso, oximoros e antinomias reaparecem tão freqüentemente na produção de poetas-místicos ou místicos-poetas como Rumi ou San Juan de la Cruz, seguindo o pseudo-Dionísio Areopagita: “A Causa perfeita e unitária de todas as coisas está acima de toda afirmação, e a excelência dAquele que está absolutamente separado de tudo e acima de tudo supera toda negação” (Lucchesi, 1994). É a “teologia negativa”, que define a divindade ou a esfera transcendental por antinomias e negações, tal como exposta pelo Mestre Eckhardt:

Deus não é um nem o outro, como as diferentes coisas. Deus é unidade. […] Insisto: Se tomo a Deus como um ser, isso é tão completamente falso como se pretendesse que o Sol fosse pálido ou negro. Deus com efeito não é isso nem aquilo.

A expressão por antinomias é forte em doutrinas orientais, como nesta passagem do Tao-te-Ching de Lao-tsé (livro de cabeceira de Piva nos últimos anos):

O Tao que pode ser pronunciado
não é o Tao eterno.
O nome que pode ser proferido
não é o nome eterno.
Ao princípio do Céu e da terra chamo “Não-ser”.
À mãe dos seres individuais chamo “Ser”.
Dirigir-se para o “Não-ser” leva
à contemplação da maravilhosa Essência:
dirigir-se para o Ser leva
à contemplação das limitações espaciais.
Pela origem, ambos são uma coisa só,
diferindo apenas no nome.
Em sua Unidade, esse Um é mistério.
O mistério dos mistérios
é o portal por onde entram as maravilhas.

Na poesia, oximoros e antinomias comparecem desde os clássicos, passando por barrocos e maneiristas, até a poesia da modernidade, do romantismo – associada a tudo que o movimento romântico teve de crítica ao cartesianismo e ao Esclarecimento, e de rebelião antiburguesa. Em Baudelaire; há uma mudança fundamental, uma inflexão exemplificada pela proclamação da identidade de contrários em “O Heautontimoroumenos”:

Eu sou a faca e o talho atroz!
Eu sou o rosto e a bofetada!
Eu sou a roda e a mão crispada,
Eu sou a vítima e o algoz!

Comparando esses versos com “O Trovão – Intelecto Perfeito” e os demais trechos de doutrinas arcaicas e místicos aqui mencionados, vê-se a passagem do abstrato para o concreto, do geral para o particular, do sagrado para o profano. Pares de opostos como “talho” e “faca” e “rosto” e “bofetada” estão em oposição diametral com relação aos arquétipos, aos grandes princípios que regem o universo nos textos filosófico-religiosos. Isso, por Baudelaire entender o princípio hermético das correspondências e da harmonia universal não mais como relação entre o alto e o baixo, porém como uma combinatória, uma intrincada rede de relações entre todas as coisas existentes. E dessas com a subjetividade: “O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista.” (Baudelaire 1995) A “magia sugestiva” superaria, portanto, a dificuldade observada por Breton em seu prefácio para Nadja: “Subjetividade e objetividade travam, ao longo de uma vida humana, uma série de combates, nos quais a primeira costuma sair-se inteiramente mal” (Breton 2007)
Se Baudelaire transportou a antinomia da esfera cósmica para aquela do sujeito e do mundo das coisas, Lautréamont (autor matricial, notoriamente, para surrealistas e Piva) como que a arrastou pelo chão em Os Cantos de Maldoror. Por exemplo, nas séries de belo como, como nesta série ao afirmar-se, diante de sua imagem monstruosa refletida em um espelho:

[belo como] o vício de conformação congênita dos órgãos sexuais do homem, que consiste na brevidade relativa do canal da uretra e na divisão ou ausência da parede inferior, de forma que o canal se abra a uma distância variável da glande e abaixo do pênis; ou, ainda, como a verruga carnuda, de forma cônica, sulcada por rugas transversais bem profundas, que se ergue na base do bico superior do peru; […] e, principalmente, como uma corveta encouraçada com torreões! [2]

Há uma tradição da expressão através modos não-discursivos que, na civilização ocidental, tem origem em antigos cultos de mistérios, por sua vez reaparições do xamanismo das sociedades tribais (como bem exposto por Dodds) – o xamanismo tão cultuado por Piva, constantemente invocado em Ciclones. Na Antiguidade tardia, está presente em doutrinas religiosas heréticas e divergentes com relação aos grandes monoteísmos. Volta a aflorar através de místicos, para reaparecer no romantismo. A partir de Baudelaire, são imanentes, propriedades do mundo, e não mais exclusivamente de uma esfera transcendental ou entidade divina.
A essa tradição se vinculam, de modo evidente, Piva e o surrealismo. Em Breton, fundamenta uma visão de mundo: “Tudo indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios.” (Breton 2001) É uma de suas proclamações em favor do pensamento analógico, contra a lógica do discurso; porém declarando a imanência da analogia, como enfatizaria adiante:

A analogia poética difere fundamentalmente da analogia mística por não pressupor, de modo algum, através da trama do mundo visível, um universo invisível que tende a se manifestar. Ela é toda empírica em sua progressão, apenas o empirismo podendo assegurar-lhe a total liberdade de movimento ao salto que ela deve fornecer. (Breton 1975)

Não obstante a distinção entre poesia e misticismo, tal como sustentada por Breton, situam-se ambos, o surrealista e Piva, na tradição caracterizada com precisão por Octavio Paz em Os filhos do barro:

Apesar dessa vertiginosa diversidade de sistemas poéticos – isto é: no centro mesmo dessa diversidade – é visível uma crença comum. Essa crença é a verdadeira religião da poesia moderna, do romantismo ao surrealismo, e aparece em todos os poemas, às vezes de uma maneira implícita e outras, em número maior, de maneira explícita. Denominei-a analogia.

Vanguardas e movimentos inovadores efetuaram a recuperações de tradições; criaram suas próprias tradições. Atração pelo pensamento mágico, pelos mitos arcaicos, por decorrência pelo esoterismo que procurou perpetuar magia e mitos: aí está algo partilhado por Breton e Piva, que subscrevia de modo irrestrito o apelo ao esoterismo em Arcano 17:

Os grandes poetas do século passado o compreenderam [ao esoterismo] admiravelmente, desde Hugo cujas relações muito estreitas com a escola de Fabre d’Olivet acabam de ser reveladas, passando por Nerval, cujos sonetos famosos referem-se a Pitágoras, a Swedenborg, por Baudelaire que notoriamente vai buscar nos ocultistas sua teoria das “correspondências”, por Rimbaud cujo caráter de suas leituras nunca seria acentuado suficientemente, no apogeu de seu poder criador – basta remeter à lista já publicada das obras que toma emprestado à biblioteca de Charleville –, até Apollinaire, em quem alternam a influência da Cabala judia e a dos romances do Ciclo de Artur. Mesmo não sendo do agrado de certos espíritos que só se sentem à vontade na imobilidade e no óbvio, na arte esse contato não cessou e não cessará de ser mantido. Consciente ou não, o processo de descoberta artística, embora permanecendo alheiro ao conjunto das suas ambições metafísicas, não é menos enfeudado à forma e aos meios de progressão da alta magia. Tudo o mais é indigência, é banalidade insuportável, revoltante: cartazes publicitários e versinhos.

Os infortúnios da recepção do surrealismo pela crítica brasileira merecerão exame atento, na ocasião oportuna (além do que já escrevi a respeito). Como item ou tópico dessa má recepção, observaria a recusa a identificar Piva ao movimento encabeçado por Breton. Isso, por representantes de um pólo da relação simpática com Piva e idiossincrática com o surrealismo – por exemplo, Pécora: “[…] anoto que se fala um bocado sobre o “surrealismo” de Piva […] sua poesia evidentemente não quer produzir a recusa de uma significação banal para entregar-se a uma outra, banalíssima, na qual a ausência de sentido é apenas uma regra estética [etc.]” (em Piva 2005) – e de outro pólo da adesão sectária ao surrealismo e da relação idiossincrática com relação a Piva, representada por Lima (por exemplo, em Löwy 2002).
Sem disfarçar a intenção de polemizar com as duas facções, adianto que discutir se Piva “é” ou “não é” surrealista me parece aristotélico – e cartesiano. Interessa discutir relações, para além daquela mais evidente, que consiste em Piva ter sido, por cinco décadas, um leitor do surrealismo, conforme evidenciado através do que escreveu. E não apenas por sua adoção de imagens poéticas, por sua poesia onírica, pela prodigalidade em matéria de epígrafes, citações, menções e alusões, por vezes de modo frenético – e de valiosas indicações de leitura aos amigos, conforme posso atestar. Já observei em outra ocasião (Willer 2010-b) que destacar o Piva leitor é importante em um país com índices tão altos de analfabetismo funcional e tão baixos de leitura de livros. Foi manifestação de inconformismo sua recusa a ser fácil e discursivo; navegou contra a correnteza ao apresentar-se como erudito, de uma erudição não-curricular, nada acadêmica. Ter sido um poeta-leitor o torna um permanente convite ao comparatismo literário, o que de modo algum conflita com seu modo de escrever, sempre espontâneo, movido pela inspiração, criando através da escrita automática (tenho acesso a seus manuscritos: aqueles que rasurou foram os que desistiu de publicar). A propósito, menciono a notável contribuição de Riffaterre à melhor compreensão da escrita automática em surrealistas – especialmente em Peixe Solúvel de Breton –, sempre mostrando como, nas criações mais delirantes e à primeira vista menos inteligíveis, há um sub-texto, um “inconsciente do texto”, como diz esse semiótico, que é um intertexto – um rastro mnemônico de leituras, presumo.
É evidente a amplidão do intertexto de Piva, dos clássicos aos contemporâneos, passando por românticos, simbolistas e vanguardistas. Mas, como sua relação com o surrealismo já foi objeto de dúvidas – mesmo expressamente reafirmada, por exemplo ao intitular um dos poemas de seu último livro, Estranhos sinais de Saturno, de “Os Grandes Transparentes”, em alusão ao “novo mito” proposto por Breton em seu derradeiro manifesto –, volto a observar que a demora, que pode ser medida em décadas, na compreensão e recepção da sua obra, e de Paranóia em especial, resultou da surdez para o não-discursivo na crítica brasileira. Há um recalque brasileiro do surrealismo, que pode ser associada às alternativas aceitas por nossos letrados: a criação mais cerebral, seja buscando a clareza do sentido, seja pelo caminho da experimentação formalista.
Em Ciclones, a propósito de leituras de surrealistas, a citação precisa de Aragon, algumas de René Crevel, autor de sua predileção, e de Malcolm de Chazal, mestre da analogia através dos epigramas de imagens poéticas, inclusive aquela na qual esclarece de onde veio o título do livro: “”A volúpia está no centro do ciclone dos sentidos”, retirada de Sens-plastique.
Avancemos, através de outro poema de Piva em Ciclones, intitulado “A oitava energia”, com dedicatória “para Malcolm de Chazal & sua poesia oscilatória; para Raymond Abellio, Câmara Cascudo, Mircea Eliade, Julius Evola & a tradição iniciática”:

Que você conheça
a estrela da loucura
Na sua verde boca animal
A paisagem mineral
rói o olho do peregrino
que procura seu Deus com chifres
Amo os garotos que cospem o sangue
das amoras
pelos lugares ermos, praias habitadas
por escamas de peixe, montanhas
& matas onde o anjo é um pau
duro no poente
Que você conheça o relâmpago
chamado mundo sombrio
Estremecendo na folha do seu
coração
Que você conheça este relógio sem nuvens
chamado morte
dependurado no planeta
como volúpia secreta
Que você conheça manguezais
& realidades não-humanas
que são a essência da Poesia
Que você conheça o sussurro do Sol
Na água ferruginosa dos seus olhos

Não resisto à comparação do Piva de “Que você conheça este relógio sem nuvens / chamado morte” com o Breton de “A morte, cujo relógio feito de flores campestres, relógio belo como a minha pedra sepulcral erguida ao alto, voltará a andar, na ponta dos pés, para cantar as horas que não passam” em O amor louco. Sincronias. Valho-me da minha condição não só de amigo mas de interlocutor para afirmar que, sendo leitor de O amor louco de Breton (na década de 1970 ele me avisou que a edição portuguesa, na tradução da poeta Luiza Neto Jorge, estava em livrarias de São Paulo), nem por isso teve a intenção de parafrasear, sintetizando-a, a bela imagem de Breton.
Chamo a atenção para a epígrafe, com esse arrolamento aparentemente arbitrário ou caótico de autores: um surrealista, um etnógrafo, dois ocultistas, um estudioso de mitos e história das religiões. Comparo-a com outro trecho de Breton, ao rejeitar o alinhamento em partidos políticos: “Mas, se a minha própria linha, bastante sinuosa, admito, mas quando menos minha, passa por Heráclito, Abelardo, Eckhardt, Retz, Rousseau, Swift, Sade, Lewis, Arnim, Lautréamont, Engels, Jarry e alguns outros?” (Breton 2001 – também citado em Willer 2008-a) Assim Piva e Breton: produziram antecedentes, forçosamente distribuídos, pela diversidade, em “linhas sinuosas”, sempre heterodoxas.
Mas do que trata o poema que li, “A oitava energia” de Piva? De muita coisa, certamente. Da ogdóada dos gnósticos e místicos, da esfera superior que, em sua poesia e sua poética, se confunde com o mundo. Da gnose, do conhecimento total, equivalente à síntese do sujeito com o objeto do conhecimento, como indica o refrão “Que você conheça”.
Piva, um gnóstico? Fez questão de não deixar dúvidas sobre sua simpatia por aquele monoteísmo às avessas, aquele dualismo de adeptos que aspiravam radicalmente à reconquista da unidade, ao escolher como epígrafe do volume 1 de sua Obra reunida a observação de Alexandrian sobre “gnósticos modernos”:

A palavra Gnose é imortal e serve para designar, ainda hoje, uma tentativa de vanguarda. […] Os gnósticos modernos são também aqueles que procuram os pontos de concordância de todas as religiões, que reivindicam uma moral anticonformista, uma tomada de consciência das instituições do pensamento mágico, enfim, todos os que propõem um método de salvação aos seres que se sentem “estrangeiros” neste mundo.

Mas que relação teria essa doutrina arcaica, o gnosticismo, com surrealismo? Com a palavra Breton, que finaliza seu derradeiro manifesto com o elogio à “intuição poética”: “Somente ela nos fornece o fio que nos conduz ao caminho da Gnose,enquanto conhecimento da realidade supra-sensível, ‘invisivelmente visível num eterno mistério’” (Breton 2001)
Ou, de modo mais detalhado em “Flagrant délit”, seu ensaio de 1947 que denunciou uma fraude de Rimbaud:

[…] os gnósticos estão na origem da tradição esotérica que consta como tendo sido transmitida até nós, não sem se reduzir e degradar parcialmente ao correr dos séculos. […] todos os críticos verdadeiramente qualificados de nosso tempo foram levados a estabelecer que os poetas cuja influência se mostra hoje a mais vivaz, cuja ação sobre a sensibilidade moderna mais se faz sentir (Hugo, Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, Jarry), foram mais ou menos marcados por essa tradição. Não, é certo que se deva tê-los por “iniciados” no sentido pleno do termo, mas uns e outros pelo menos foram submetidos fortemente à sua atração, e nunca deixaram de testemunhar-lhe a maior deferência. [3]

Torna-se evidente, através do percurso já feito pela história das antinomias e imagens poéticas na poesia, que ambos, Breton e Piva, vinculando-se a uma tradição, ao mesmo tempo a inverteram, ou subverteram sua premissa fundamental, o dualismo, e sua hierarquização do cosmo. O elo com o gnosticismo – e ao mesmo tempo entre ambos, Breton e Piva – pode ser percebido com maior clareza através desta citação de Hans Jonas, estudioso notável do gnosticismo:

Os expoentes gnósticos exibiam um pronunciado individualismo intelectual, e a imaginação mitológica do movimento como um todo era incessantemente fértil. Não-conformismo era quase um princípio da mente gnóstica, intimamente ligado à doutrina do “espírito” soberano como fonte de conhecimento direto e iluminação.

É evidente – e isso também é atestado por suas epígrafes, alusões e citações – que o universo de leituras de Piva vai muito além dos autores especificamente surrealistas. Fazem parte desse “muito além” suas leituras de Dante Alighieri, reiteradamente lembradas, inclusive no posfácio de 20 poemas com brócoli, ao rememorar “os três anos de 1959 a 1961, quando participei do curso sobre a Divina Comédia dado pelo saudoso professor Edoardo Bizzarri […]”, e que teriam inspirado aquele série de poemas:

Foi repensando Dante Alighieri & relendo o Inferno & o Paraíso […] que surgiram, numa síntese caligráfica & na eletricidade de uma manhã paulista de 1979, estes 20 poemas com brócoli  […] Foi freqüentando uma sauna de subúrbio que inventei o molho propiciatório para este casamento do Céu e do Inferno.
As pequenas estufas de vapor para duas pessoas nessa sauna me deram a imagem paradisíaca das bòlgia onde os danados de Dante sonham eternamente. Mas os garotos de subúrbio são anjos…

Em outra ocasião já fiz a comparação entre os vapores das saunas de Piva e as nuvens em Breton: nos dois casos, proporcionando momentos privilegiados de encontro de subjetividade e objetividade. Em O Amor Louco, Breton e sua companheira sobem ao Pico de Teide, nas Ilhas Canárias, e vêem o a montanha ser encoberta por uma nuvem, levando-o a argumentar que nuvens são um lugar do encontro entre desejo e realidade: “levantar os olhos daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, é a melhor forma de interrogar nossos mais íntimos desejos” (Breton 1971). É perceber que “toda a questão da passagem da subjetividade à objetividade se encontra aqui implicitamente solucionada”, através da “fusão do natural e do sobrenatural no seio de um mesmo objeto”. Leonardo da Vinci, lembra Breton, pedia a seus alunos que olhassem as manchas em uma parede e copiassem as formas que viam desenhar-se nelas. As nuvens de Teide ou manchas na parede são as telas em que se projetam imagens do desejo; a projeção do desejo molda a realidade. Ainda Breton: “Onde poderei eu estar melhor que no seio de uma nuvem, para adorar o desejo, único impulsionador do mundo, o desejo, único rigor que o homem deve se impor?”
Como já observei em outras ocasiões, indagando sobre a possibilidade de uma crítica surrealista (Willer 2008-a; Willer 2006), o surrealismo é um instrumento de leitura; um meio para enxergar mais em outros autores, independentemente desses serem expressamente vinculados ou não àquele movimento. Inclusive para enxergar mais em Dante, como já o sugerira Breton no Manifesto do Surrealismo, ao abrir a série de atributos surrealistas em predecessores: (“Mallarmé é surrealista na confidêmcia. Jarry é surrealista no absinto. Nouveau é surrealista no beijo.” etc): “Numerosos poetas poderiam passar por surrealistas, a começar por Dante e, em seus melhores momentos, Shakespeare” (Breton 2001) É o procedimento de Piva com relação a Dante, invertendo-o, transformando o Inferno em Paraíso.
Para completar, apresentarei mais um poema de Piva, de sua derradeira série de poesias, Estranhos sinais de Saturno, intitulado”Mostra teu sangue, mãe dos espelhos”:

o mistério lunar da menina
lésbica
linda como um nenúfar
com seu nome de pássaro
levando na mochila
AS CANÇÕES DE BILITIS
uma coruja no ombro
& no sangue os gritos
dos náufragos de outrora

Piva relatou-me a gênese desse poema. Viu no metrô as duas moças abraçadas, uma delas com a coruja tatuada no ombro e o livro de Pierre Louïs na mochila. Imediatamente, escreveu o poema. Ficou muito satisfeito por sua inclusão em uma antologia de poesia brasileira dos primeiros anos deste século (Pinto, 2006).
É a “iluminação profana” do Piva “flâneur”, que sabia muito bem que “nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade”, como havia dito Benjamin (citado, entre outros lugares, em Breton 2007). Como tal, sincrônico com o Breton de Les pas perdus: “A rua, que eu acreditava capaz de entregar a minha vida seus surpreendentes desvios, a rua, com suas inquietações e seus olhares, era meu verdadeiro elemento: lá eu recebia, como em nenhum outro lugar, o vento do eventual.” (Breton 1974) E com o Aragon de O Camponês de Paris, epigrafado com precisão em Ciclones. Tanto Piva quanto Breton, Aragon e demais surrealistas nisso integraram uma tradição, aquela de Baudelaire, o primeiro, no dizer de Benjamin, a transformar Paris em tema de poesia lírica – contudo, como já bem mostrou Flávia Nascimento, a tradição da deambulação urbana precede Baudelaire (Nascimento 2002 e 2006).
Talvez a presente argumentação apenas esteja detalhando o que o próprio Piva – que nunca se animou a escrever ensaios, textos de crítica literária, mas se mostrou pródigo em matéria de entrevistas –observou, inclusive em suas derradeiras entrevistas:

O surrealismo está presente em toda a minha obra. A linha mestra da minha poesia passa pelo surrealismo, contudo não podemos esquecer do futurismo italiano e do futurismo português, sobretudo Fernando Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros. (Vasques 2009)

Por isso, nunca pôs restrições a ser incluído em antologias e outras publicações especificamente surrealistas, como aquelas organizadas por Floriano Martins (Martins 2001 e 2008); e inúmeras vezes lembrou que a primeira resenha de Paranóia havia saído em uma publicação surrealista, La Brèche (em fevereiro de 2005), então dirigida por Breton.
Isso não impede observar limites ou apontar aspectos em que Piva e surrealismo se distanciam ou divergem, como o faz Eliane Robert Moraes no posfácio do volume 2 da Obra Reunida de Piva:

[…] ainda que haja uma forte inspiração surrealista na escrita de Piva, sua voz poética sempre se particulariza quando comparada à matriz francesa, a começar pelo efetivo abrasileiramento do imaginário surreal que ele deixa transparecer. Não bastasse isso, seria preciso aludir à vocação “anarco-monarquista” declarada pelo poeta, em franca oposição às simpatias de Breton e seus companheiros pelo marxismo, sem esquecer ainda o diferencial do homoerotismo, rejeitado de forma categórica pelos idealizadores do movimento.

Sim – mas nem tanto. Todos os poetas surrealistas importantes tiveram uma voz poética particularizada. Aqueles não-franceses incorporaram sua formação à “voz poética” – basta lembrar o quanto Aimé Césaire, outro poeta da predileção de Piva, era surrealista e negro antilhano. E, embora seja fato a homofobia bretoniana (mas não dos “idealizadores” do movimento – certamente não de Aragon), fizeram parte do surrealismo René Crevel e Cesar Moro, entre outros. E Piva, por décadas, declarou-se marxista. Observei, em outras ocasiões que o Piva a escrever crônicas na imprensa alternativa na década de 1970 chamando os militares então no poder de “fascistas” e apresentando-se publicamente como “comunista” e aquele que resolveu lembrar-se que freqüentara monarquistas em 1958 e passou a investir contra a esquerda, denunciando estalinistas (como no poema “A bengala alienígena de Artaud”, em Piva 2008) é o mesmo rebelde: mudou o restante. Com acerto, a essa labilidade de Piva já foi aplicada a categoria do “nomadismo” de Deleuze e Guattari. Reciprocamente, a partir de 1940, Breton abandonaria de modo evidente o marxismo (mais a respeito em Luis, 1957)
Onde se pode marcar alguma distância de Piva com relação ao surrealismo seria em nunca haver integrado um grupo surrealista como tal, a não ser muito tangencialmente; de não haver-se filiado. Isso, por seu individualismo e nomadismo; e pelas vicissitudes da constituição de tais grupos ou movimentos no Brasil. Contudo, grupos surrealistas são manifestação de algo mais essencial, bem assinalado por Floriano Martins: “[…] o Surrealismo introduziu, no âmbito da poesia moderna, a idéia da criação poética como um bem comum” (Martins 2008). Grupos foram a manifestação do que Lautréamont havia proclamado: “A poesia deve ser feita por todos, não por um”. E, em matéria de coletivização da poesia através de procedimentos surrealistas, Piva nos deixou suficientes poemas coletivos, “cadáveres delicados” e escritas automáticas (publiquei algo daquilo de que participei, cf. Willer 2004).
Mas associar Piva tão fortemente ao surrealismo não seria ao mesmo tempo indigitá-lo como anacrônico? Afinal, esse movimento é classificado nos manuais como uma das “vanguardas”, dos movimentos modernistas das primeiras décadas do século XX. E mais, como “última das vanguardas”. [4] Contudo, por sua persistência (da qual a poesia de Piva é apenas um de inumeráveis exemplos), o surrealismo resiste a ser classificado como um dos “ismos” que antecederam ou sucederam imediatamente a Primeira Guerra Mundial, a exemplo do futurismo e seus correlatos em tantos países, inclusive aquele que se apresentou no Brasil através da Semana de Arte Moderna de 1922. Lembro que, através da sua produção e suas manifestações, o surrealismo desempenhou um papel importante na década de 1930, período de internacionalização e crescimento da sua atuação, e de participação ativa nos debates que antecederam a Segunda Guerra Mundial. No pós-guerra, nas décadas de 1940 e 50, foi cultura de resistência ao questionar e ultrapassar a dicotomia imposta pela Guerra Fria, a opção entre stalinismo e macarthismo, regime soviético ou sociedade capitalista. Nesse período, associou-se a um novo ciclo vanguardista, estimulando-o; passou a representar o que, em outras ocasiões, classifiquei como “segunda vanguarda” (Willer 2006; 2009); utilizando um termo aplicado, especialmente, ao surrealismo de Portugal, e que, por extensão, vale para surrealismos nos Estados Unidos, em outros países dos continentes americanos e outras partes do mundo. Identificar dois ciclos vanguardistas, um deles entre 1907 e 1924, outro entre 1945 e alguma data na década de 1960, corrige um vezo disseminado, de rotular movimentos – surrealismos mais recentes, geração beat – como vanguarda tardia, e assim descartá-los como anacronismo, continuação de algo datado. Têm o mesmo sentido rótulos como tardo-surrealismo etc., através dos quais a rebeldia é desqualificada.
É certo que a formação do surrealismo faz parte do ambiente vanguardista do começo do século XX: partilha com outros movimentos o espírito antiburguês, a descoberta de novos modos de expressão e a assimilação do que havia de mais inovador e subversivo no simbolismo. Reflete um espírito de época marcado pelas mudanças na representação de mundo trazidas por avanços científicos, ao mesmo tempo em que recebia a influência de doutrinas esotéricas; e, especialmente, por crises e pela guerra, pela constante iminência da catástrofe.
Mas, sob a ótica surrealista, as demais vanguardas teriam discutido questões formais, ligadas à expressão artística e literária. Já o surrealismo estaria voltado para a vida, o homem em sua totalidade e a transformação do mundo. Piva chegou a comentar comigo a passagem do André Breton, par lui même de Alexandrian na qual esse argumentava que, enquanto o futurismo e demais vanguardas haviam buscado a libertação das palavras, o surrealismo havia buscado a libertação da voz interior. Como bem sintetizou Octavio Paz, em seu “André Breton ou a busca do início”: “o surrealismo é um movimento de liberação total, não uma escola poética” (Paz, 1972). Algo que, algumas décadas antes, Julio Cortázar já havia observado:

Higiene prévia a toda redução classificatória: o surrealismo não é um novo movimento que sucede a tantos outros. Assimilá-lo a uma atitude e uma filiação literárias (melhor ainda, poéticas) seria cair na armadilha em que malogra boa parte da crítica contemporânea do surrealismo. Pela primeira vez na linha dos movimentos espirituais com expressão verbal, uma atitude resolutamente extraliterária prova que a profecia solitária do Conde e do vagabundo se cumpre cinqüenta anos após sua formulação.

“Liberdade cor de homem”, trecho de um poema de Breton, serve como epígrafe geral do surrealismo. A produção artística e literária foi o modo de expressar o ímpeto transformador. É um paradoxo estimulante o surrealismo ter sido, no panorama de movimentos, grupos e manifestações do século XX, o que mais recusou o confinamento nas artes e literatura, e haver-se mostrado tão produtivo nesses campos, provocando o que Cortázar (no texto citado) designou como “dilúvio lírico que só as fichas bibliográficas continuam chamando de poemas ou romances.”
Por isso, é incorreto referir-se a uma “forma” ou “estética” do surrealismo. Além de seus propósitos irem além das questões formais e do campo da estética, quando examinado de perto o surrealismo é o reino da diversidade. O que Piva partilhou com o surrealismo foi, em primeira instância, o “inconformismo absoluto” proclamado por Breton no final do primeiro Manifesto do Surrealismo (Breton 2001), em um parágrafo que termina com a paráfrase de Rimbaud, inspirador de ambos, Breton e Piva, de que “a verdadeira vida não está aqui”.


NOTAS
Agradeço a Gustavo Benini, sucessor de Piva, pela autorização para aqui reproduzir seus poemas.
1. Conforme observo em Um obscuro encanto e tenho pesquisado ultimamente.
2. Lautréamont, 2005.
3. Abri meu Um obscuro encanto (Willer 2010) com essa citação de Breton.
4. Os paradoxos da atividade editorial: a coletânea O Surrealismo, na qual abro meu ensaio questionando a vinculação do surrealismo às vanguardas históricas, abre com um breve prefácio dos organizadores, intitulado “O Surrealismo: a última das vanguardas”

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Claudio Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta e tradutor. Traduziu livros de Jack Kerouac, Allen Ginsberg e Antonin Artaud, bem como a obra completa de Lautréamont. Contato: cjwiller@uol.com.br. Página ilustrada com obras de Zuca Sardan (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.






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