sábado, 19 de setembro de 2015

FLORIANO MARTINS | Cruzeiro Seixas - O horizonte sob desmedida



FM | Por onde começas: pelo verso ou pela plástica?

CS | Pelo verso, pois não sei outro caminho.

FM | Escreveu Fernando Matos Oliveira: “Em Breton, como em Cesariny, o Surrealismo é uma ética. Ao passar à escrita, esta traduz-se historicamente numa estética e num estilo.” Seria possível dizer o mesmo em relação ao Cruzeiro Seixas?

CS | Mesmo que o desejasse dificilmente a minha obra teria a ver com uma estética, sendo como sou muito pouco dotado de habilidade manual, de memória visual e de técnica, e sendo ainda completamente desorganizado, muito raramente há a submissão a um projeto. A folha de papel ou a tela foram para mim sempre um fato inesperado.

FM | Tua obra plástica não se baseia em uma dissolução de formas mas antes em uma instauração de novas formas. Está correto o Rui-Mário Gonçalves quando diz que não vê nela a presença de “corpos desfeitos, mas refeitos”. Para refazê-los, no entanto, como tu convives com os corpos existentes, as formas canônicas?

CS | Estou muito longe da genialidade, e assim parece-me excessivo ver no que faço “novas formas”. A minha obra é apenas um testemunho ou um depoimento, que só por ínvios caminhos terá a ver com a obra de arte. A minha convivência com os corpos foi feita intensamente no amor, mas um corpo para mim nunca foi somente um corpo, mas um lugar de conjunção de todos os infinitos.

FM | Tendo em conta um erotismo muito presente em tua obra (impressiona-me uma tela como “Estudo de uma palavra”), é quando menos curioso observar que o grupo em torno de Breton era muito ingênuo em relação ao tema. Mas não o era Artaud, banido do grupo. Pensando justamente em Artaud, de que maneira em Cruzeiro Seixas “o sonho devora o sonho” (Artaud)?

CS | O sonho só existe para ser devorado, ou intensamente possuído.

FM | Há uma imagem em um poema teu que me é muito fascinante: “palavras roídas de ferrugem”. De que maneira a poesia deixou-se oxidar pelo tempo?

CS | Não há nada que o tempo não oxide e enferruje. Contra isso cabe-nos lutar amando loucamente, libertando as palavras da sua escravatura.

FM | Risques Pereira chegou ao grupo de vocês indicado pelo António Maria Lisboa, mas antes havia estado ao lado de António Pedro em outro grupo. Risques declarou certa vez que as dissidências entre os dois grupos eram meramente de ordem pessoal. Contudo, se lemos as cartas de António Maria Lisboa, percebemos o quanto lhe preocupava questões tanto éticas como estéticas. E dava um acento especial aos riscos da ortodoxia. Como avaliar esta situação hoje? E até que ponto o Surrealismo em Portugal teria sucumbido à ortodoxia?

CS | O Risques Pereira pertenceu desde sempre a “Os Surrealistas”. Julgo que de entre nós o único que passou pelo grupo por demais acadêmico do Antonio Pedro foi o Cesariny, até constatar que o Surrealismo ali era principalmente uma estética. Não me vejo a fazer a história do Surrealismo em português, mas julgo que não “sucumbo à ortodoxia”, mas se de alguma forma sucumbo isso se deu por não ter o Cesariny querido, podido ou sabido prolongar o espírito da exposição de 1949. verdade que, quando se começaram a pressentir certos desencontros eu me retirei para África, onde permaneci numa outra aventura, apaixonante, cerca de 14 anos; e o Mário Henrique Leiria percorreu o mundo, regressando apenas em 1980 para morrer; e ainda pior, faleceu o António Maria Lisboa em 1953, apenas com 25 anos. Na fotografia oficial que circula estamos presentes 8; pois hoje, estranhamente, só restamos o Cesariny e eu!! Parece haver quem agora prefira por a hipótese de que o Surrealismo em português se tornou “individual”, mas isto não é inteiramente verdade; um certo apagamento, uma certa hesitação, um certo mal-estar aconteceram, e por certo advieram da ausência de uma figura de proa que unisse, e não dispersasse.

FM | Um outro aspecto a ser considerado, tomando por base uma observação do brasileiro Carlos Felipe Moisés, é que “o Surrealismo em Portugal, desde o início, se vê isolado e marginalizado, acuado pela esquerda e pela direita, condenado a ser movimento de resistência em duas frentes simultâneas”. Antes de ser condenação, esta era uma condição do Surrealismo, uma de suas mais consistentes afirmações, malgrado a adesão do grupo francês ao Partido Comunista. De que maneira as ideologias eram tratadas então?

CS | Julgo que essa luta seria o que de mais estimulante nos poderia ser ofertado aqui, pois nunca acreditei em vitórias indiscutíveis. As vitórias são um fim, e o que sempre me apaixonou foi o ato de caminhar. Baseado na experiência do Grupo de Breton afastei-me tanto quanto possível dos políticos, acreditando que antes de construir a sociedade é necessário construir o homem. Será pela didática que isso poderá acontecer. Assim julgo que, ao fazer um quadro ou um poema, é didática que se está a fazer. Nesse sentido sonho ainda com diversas exposições (sejam elas surrealistas ou apenas do Surrealismo), percorrendo o mundo, mas estou por demais só, e já não sinto as necessárias forças para essa enormíssima luta. Por exemplo, há muito alimento o sonho de uma exposição do Surrealismo brasileiro que nos visitasse, enquanto uma outra do Surrealismo daqui se deslocaria ao Brasil…

FM | Disse o mexicano Octavio Paz que o século XX seria lembrado muito mais como o século do Surrealismo do que do Marxismo. Até que ponto estaria correto em tal afirmação?

CS | Todas as idéias são necessárias ao homem; o Marxismo e o Comunismo são hoje por certo injustamente confundidos com o stalinismo. O Surrealismo é evidentemente uma minoria, mas que parece neste momento bem viva, em todos os recantos do mundo.

FM | Graças ao espanhol Perfecto Cuadrado e ao inglês C. B. Morris há uma certa recuperação, ao menos em plano histórico, das atividades surrealistas em Portugal e na Espanha. Nos dois casos, o assunto tem sido tratado por estrangeiros, o que remete a uma curiosidade: de que maneira o surrealismo é visto pela crítica em cada país de atuação. No caso português, como reage ainda hoje a crítica ao assunto?

CS | Depois do 25 de abril quase se extinguiu a crítica em Portugal; e além disso toda uma geração tomou como seu princípio que o mundo teria começado nos anos 60! E ainda além disso deu-se uma surpreendente supremacia do dinheiro, em personagens os mais inesperados; nessa obstinação alguns se perdem. E há a circunstância de se tratar de um pequeno país, com uma difícil posição geográfica. E a tudo isto há que acrescentar uma certa maneira de ser dos portugueses, que desde sempre preferiram sonhar a realizar. As dificuldades têm-se avolumado, chegando-se por vezes a um difícil entendimento de português para português. Tenho 83 anos, mas cada vez o mistério me parece mais denso. Sei que já não vou ver como vai ser possível sair deste beco, mas lembro-me de ter escrito algures que, no último momento por certo se vão lembrar do Surrealismo. Não aspiro à presciência mas sim à sensibilidade, e àquilo que tem sido uma muito dura experiência da vida. Sei que no homem mais desesperado uma centelha de esperança sempre persiste.

FM | De que maneira poetas e artistas como Luís Miguel Nava e Mário Botas significam um desdobramento do Surrealismo em Portugal? Quais outros nomes poderiam aqui ser lembrado?

CS | Tanto com o Mário Botas como com o Luís Miguel Nava se estabeleceu comigo uma certa proximidade. Alguns trabalhos em comum (“cadavres-Exquis” e pinturas coletivas) o atestam no caso do Mário Botas. E de uma longa carta do Luís Miguel Nava transcrevo: “as suas palavras parecem tocar o essencial não lhe sei dizer de quê, mas o essencial tout court, (…) creio que na linha do que o Artur refere quando diz que ao verbo ‘evoluir’ sempre contrapõe ‘aprofundar’, sendo assim remetidos para um outro grau de realidade, um outro estado, onde a verticalidade da consciência se sobrepõe à horizontalidade dos percursos”. Creio que tanto um como o outro não tiveram relacionamento aprofundado com o Cesariny. O Mário Botas acabou escrevendo referências destruidoras do Surrealismo daqui, por certo perturbado pela tragédia da sua doença e da sua morte prematura, que inflectiram o seu caminho. Não referes o Raúl Perez, que me parece ser, como pintor, autor de uma muito notável obra, que seria merecedora de reconhecimento para além desta tão apertada fronteira. Também me parecem dignos de uma palavra, mesmo que por demais apressada, os talvez não mais de 10 desenhos de Júlio dos Reis Pereira (1902-1983), que mereceriam reconhecimento universal. Quem pára é porque já morreu. Tentemos nós morrer em pleno voo.


[A tua boca adormeceu]

A tua boca adormeceu
parece um cais muito antigo
à volta da minha boca.

Mas as palavras querem voltar à terra
ao fogo do silêncio que sustém as pontes
perdidas na sua própria sombra.

E há um cão de pedra como um fruto
que nos cobre com o seu uivo
enquanto pássaros de oiro com mãos de marfim
transplantam as árvores transparentes
para o ponto mais fundo do mar.

As lágrimas que não chorei
arrependidas
fazem transbordar a eterna agonia do mar
como um lençol fúnebre
com que tivesse alguém coberto o rosto metafórico
dos cinco continentes que em nós existem.

Assim é ao mesmo tempo
que sou eu e não o sou
aquele relógio das horas de oiro
que além flutua.
  


[Há um mês navegam no espaço]

Há um mês navegam no espaço
estes pianos estéreis
pendurados pela cauda uns nos outros
sem remorso
semeando chaves e velhos tecidos de linho
sobre o terreno coberto de cabelos macios
que a electricidade anima.

Os farrapos da cortina tombam
sobre os braços decepados
mas eles voltam como as andorinhas.

Embora as cortinas de fumo persistam
não há qualquer dúvida
mergulham fundo nos números.
De um lado há faróis em Dezembro
e do outro lado
ao fundo da escadaria
há punhais de ouro.


[Andam descalços os peixes]

Andam descalços os peixes
circulam dentro do seu mar interior
vestidos de brocados
agitando no ar campainhas de oiro.

Não mais haverá teatro
quando os guindastes
descobrirem o seu próprio sexo
de aço.

Atravessem embora os namorados os aquedutos,
sejam ainda cinzentas as nuvens no ventre das águias
navios líquidos se reproduzirão
por toda parte.
E por sobre as tempestades
navegarão
rumo ao porto mais distante
indestrutíveis palavras sem nexo.


EPITÁFIO

Atravessam os ciprestes
bicicletas
com cidades velozmente antigas
na memória.

Descem as escadas de caracol em mármore
que há por dentro de todos os ciprestes
outras paisagens
tão longas quanto transparentes
e indecifráveis.

A hora indefinida
tem um lago em cada face
e para lá da linha esticadíssima do horizonte
há túmulos esventrados até ao infinito.

As palavras são verdes
e as horas esperam o luar
imitando as fontes.


[Pinta o céu de verde]

Pinta o céu de verde pintor
inventa um céu como um trigal
faz as árvores chorar
mares de cristais quebrados
quando com a noite eu der o nó
quando frutos de barro germinarem
aquecendo o meio-dia.

Vibra o verde veneno no ocaso
quando te despe o Vento marinheiro
e com planetas e anéis preciosos
nos encontrámos perdidos
nos juncais.

Ciprestes e palavras maduras habituais
chaves para abrir as nuvens
e por entre as marmóreas colunatas
no vento levados para a eternidade
o turbilhão dos velhos jornais.




***


Entrevista realizada em outubro de 2003.

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