segunda-feira, 7 de setembro de 2015

LETÍCIA RAIANE DOS SANTOS | A vida como vertigem: aspectos surrealistas em O agressor, de Rosário Fusco, e O anjo, de Jorge de Lima


Herdeiro do Dadaísmo, o Movimento Surrealista tem início em 1924, com a publicação do Manifeste de Surréalisme, de André Breton. Em sua primeira fase, há uma influência da psicanálise freudiana. Por isso, o sonho, nessa etapa inicial, é tomado como um dos principais meios de acesso ao instinto e ao inconsciente humanos, que são elementos essenciais para a construção da linguagem artística surrealista.
A arte, no Surrealismo, surge em meio a uma crise de valores causada pelo período pós-guerra e aponta para uma necessidade de introspecção humana, na busca de, por meio do sonho, ir de encontro ao que há de mais profundo e livre das amarras da racionalidade no homem. Nesse primeiro momento, a escrita - no caso da literatura – e a pintura automáticas, a análise dos sonhos e a livre associação tornam-se procedimentos básicos na composição de obras artísticas surrealistas. Já em 1930, com a publicação do Segundo Manifesto, assinado por Breton, Salvador Dalí, Tristan Tzara e pelo cineasta Luis Buñuel, dá-se o que se pode chamar de uma segunda fase do Movimento, na qual ocorre uma adesão de diversos artistas a questões de conscientização política e social e ao materialismo marxista (FORTINI, 1980).
Pretendia-se explorar, de modo geral, a força criativa do subconsciente, valorizando os ambientes oníricos, o antirracionalismo. Em virtude disso, em todos os campos artísticos que estiveram vinculados ao Surrealismo – como a escultura, a pintura, o desenho, a literatura, o teatro e o cinema – houve uma tentativa de ruptura com o tradicionalismo vigente. A princípio, foi na pintura, devido ao caráter profundamente imagético que o Movimento apresentou, que as suas ideias puderam ser expressas da melhor forma. Tomando como ponto de partida a tela e as tintas, os artistas deixavam sua imaginação fluir livremente no decorrer de cada pincelada e construíam uma série de imagens que, muitas vezes, não possuíam uma relação clara entre si ou com a realidade empírica.
No campo das artes plásticas, o Surrealismo subdivide-se basicamente em duas formas do fazer artístico: a primeira, figurativa, cujo principal representante é Salvador Dalí, trabalha-se com a distorção e a justaposição de imagens familiares ao público; já a segunda, abstrata, os artistas buscaram libertar a mente e dar vazão ao inconsciente, sem nenhum tipo de controle da consciência ou relação com a realidade material. Dessa última, temos como representantes as obras de Max Ernst e Joan Miró, que apresentam muitas formas curvas, linhas fluidas, com bastantes cores.
Já no cinema surrealista há uma quebra do tradicionalismo cinematográfico. Os cineastas dedicaram-se a criar um novo olhar sobre a composição e estruturação do filme. Há, nesse tipo de cinema, uma visível despreocupação com o enredo, pois o que importa não é a linearidade ou o sentido lógico das cenas, mas as imagens que são evocadas. A produção cinematográfica, além de tudo o que já foi mencionado, também é o espaço para o combate a determinados ideais burgueses, para a presença do sonho e dos desejos não racionais do homem. De acordo com Hellmann (2012):

O cinema surrealista é de difícil interpretação uma vez que envolve enigmas simbólicos, metáforas desafiantes, provocando sempre dúvidas no expectador. O faz refletir, pensar sobre os processos acerca do fazer artístico e do próprio conceito da obra cinematográfica.

Dois importantes cineastas surrealistas que podemos mencionar aqui são: Luis Buñuel que, em parceria com Salvador Dalí em 1928 e 1930, respectivamente, produziu Um Cão Andaluz e L'Âge D'Or; e Jean Cocteau. Este último foi poeta e um dos primeiros cineastas que fez uso da concepção do fazer artístico surrealista na construção de suas obras. Foi dele a famosa Trilogia Órfica, composta por Le Sang d’un Poète (1932), Orphée (1950) e Le Testament d’Orphée (1960). Uma das propostas do cinema no Surrealismo era apresentar diante do público o conhecido mundo do inconsciente e o nebuloso universo do inconsciente e suas múltiplas possibilidades:

[...] o Movimento Surrealista no Cinema surge com a proposta de alcançar uma realidade absoluta, através da mediação entre o mundo consciente e o mundo inconsciente. Para tanto, vale-se da reprodução de situações circundadas por uma lógica onírica, tomando como referência uma interpretação da teoria do sonho de Freud, baseada na ideia de escrita automática proposta no Manifesto Surrealista, de André Breton. (LUCINDA & ALVARENGA, 2015)

No que diz respeito a um teatro surrealista, sem dúvidas, Antonin Artaud é um dos grandes expoentes. Valorizando a performance em detrimento do diálogo, ele mostrava uma postura contrária ao modelo dramatúrgico do Naturalismo francês, devido ao seu caráter extremamente retórico e de subordinação ao texto, realizando um Teatro como vertigem ou pulsão, onde os corpos dos atores são como templos transcendentais, que aproximam os espectadores do mundo divino e dos rituais sacros aos quais as primeiras encenações realizadas na Grécia antiga estiveram ligadas (NOGUEIRA, 2015).
Artaud propunha uma compreensão das cenas apresentadas para além das transmissões tradicionais de significados as quais a plateia estava acostumada. Para ele, o texto, embora não devesse ser descartado, não se configurava como o principal componente do espetáculo, mas como um dos elementos presentes no seu processo criação. Sendo assim, não seria necessária somente a palavra ou o corpo, mas a junção de ambos na composição da cena.
Na literatura, especificamente, um dos principais representantes é o próprio fundador do Surrealismo, André Breton. Criando importantes obras tanto no campo da poesia quanto da prosa, o autor não só deu as diretrizes teóricas e ideológicas desse movimento de vanguarda, como também inaugurou na prática muitos dos elementos que se fizeram cruciais para a criação e o desenvolvimento de obras no âmbito literário. Além dele, outros autores franceses como Paul Éluard e Jacques Prévert, na poesia; e Louis Aragon, com obras poéticas e em prosa; contribuíram para a consolidação da literatura surrealista francesa e inspiraram prosadores e poetas modernos.
No Brasil, as primeiras manifestações de obras surrealistas ou de aspectos surrealizantes dão-se entre os autores que estavam vinculados ao Movimento Modernista de 1922. De acordo com José Niraldo de Farias (2003), “as projeções do surrealismo no Brasil se iniciam desde a Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade”. Não obstante o próprio autor fosse refratário a essa ideia, Farias (2003) ressalta que já no título da obra pode-se observar uma noção de “irracionalismo e de explosão do inconsciente” (idem).
Dentre os autores modernistas, de diversas gerações, que, de certo modo, abraçaram ideais surrealistas, destacam-se Murilo Mendes, Jorge de Lima, Rosário Fusco e até mesmo o João Cabral de Melo Neto de Pedra do sono (1942). Inclusive, em 1925, como afirma Robert Ponge (2015), Prudente de Moraes, neto, e Sérgio Buarque de Holanda começaram a trocar entre si cartas surrealistas, seguindo a receita de Breton.
Octávio Paz (1983) ressalta que o Surrealismo é um dos frutos da nossa época e que, apesar deste não ser invulnerável ao tempo, ultrapassa o sentido das obras que produziu, pois ele não se trata de uma poética e muito menos de uma escola literária, mas de uma atitude do espírito humano. Nesse sentido, sua concepção sobre o Surrealismo aproxima-se bastante da de Aldo Pellegrini (2013), que retrata o movimento como uma concepção de mundo e não como um mero fazer artístico engessado e demarcado.
Muito embora não se possa falar de escritores que dedicaram suas produções literárias, de forma mais veemente, à consolidação do Surrealismo no Brasil antes dos anos 60, com grupo surrealista de São Paulo/Rio, nem por isso podemos deixar de lado que, anteriormente, houve sim importantes manifestações surrealistas no interior do Modernismo brasileiro. Tendo em vista a circulação de ideias do Surrealismo no Brasil durante a década de 20, neste ensaio, pretendo discorrer sobre os principais aspectos do Movimento, principalmente no campo da prosa, e refletir sobre a presença de traços surrealizantes em O Agressor, de Rosário Fusco, e O Anjo, de Jorge de Lima.

Colocando o Movimento Surrealista, assim como outros autores, a exemplo de Guillermo de Torre (1967) e Franco Fortini (1983), como um herdeiro do Dadaísmo, Aldo Pellegrini (2013) vai um pouco mais além e afirma ser esse tipo de fazer artísitico muito mais do que uma atividade criadora ou um movimento engessado, cujo principal objetivo fosse justamente a quebra de toda e qualquer estética. O Surrealismo seria, para ele, antes de tudo, uma concepção de mundo e a sua preocupação central não estava na arte ou no tensionamento da arte, mas no homem concreto, no seu ser e estar no mundo, na sua necessidade de se conhecer, nos seus sonhos e paixões, enfim, em tudo aquilo que era parte indissociável dele. Por causa disso, os artistas ligados a ele sacralizam a vida humana e empreendem uma luta contra tudo aquilo que tende a desvalorizar o homem e o que há de humano nele, na tentativa de explorar todas as possibilidades e liberar todas as potências da vida.
Ainda de acordo com Aldo Pellegrini (2013) o Movimento é, ainda, “uma mística da revolta”, e se põe contra as estruturas fossilizadas da sociedade convencional e seu falso sistema de valores; e a condição mesquinha humana. Além desse caráter de rompimento com certas estruturas estratificadas ontológicas e sociais, teve-se em alta conta o amor, pois se via nele a capacidade da união entre o físico e o metafísico, o material e aquilo que faz parte da essência do próprio homem.
Ao comparar as produções literárias francesas declaradamente surrealistas, como as pertencentes àqueles que estiveram ligados a Breton, a exemplo de Jacques Prévert, Paul Éluard, Louis Aragon, René Crevel, Benjamin Péret, Robert Desnos e Michael Leiris, observa-se que há uma tendência maior para a poesia. Alguns desses autores, ao longo da vida, dedicaram-se apenas à escrita em verso, já outros, seguindo o mestre Breton, além de poemas, publicaram textos em prosa ou até mesmo prosa poética.
Foi justamente na poesia, graças ao maior desprendimento da sintaxe que essa forma permite na construção de imagens, que o Surrealismo pode atingir seu ápice. Como afirma Nogueira (2004), esse Movimento “nunca esteve circunscrito nem à escrita automática nem à mera criação artística de uma atmosfera onírica”. É justamente o trato diferenciado em relação às imagens e metáforas, segundo a autora, que o caracteriza.

A prosa surrealista francesa tem como principal expoente André Breton. Desse autor, temos três importantes romances: Nadja (1928), O Amor Louco (1937) e Os Vasos Comunicantes (1938).  Além desses escritos, podemos destacar também: La Mise à Mort (1965), Blancheou l’oubli (1967), de Aragon; Meu Corpo e Eu (1925) e La Mort Difficile (1926), de Crevel. É comum entre essas obras um caráter, muitas vezes, autobiográfico.

Em Nadja, André Breton expõe, logo de início, que deseja construir um escrito “antiliterário” e sem nenhuma preocupação com o estilo. Para esboçar melhor a veracidade das situações que se apresentam a ele, o autor lança mão de diversas fotografias de momentos vivenciados, dos locais pelos quais andou, dos desenhos feitos por Nadja e de retratos de pessoas que conheceu. Abrindo mão da escrita automática, Breton constrói toda a obra permeada pelo que ele mesmo denominaria como “acaso objetivo”, definido por Rebouças (1986) como a “escrita automática do destino” ou até mesmo “o lugar geométrico das coincidências”.

Em meio ao acaso objetivo circulam premonições, revelações, encontros inesperados ou insólitos e coincidências perturbadoras que podem acontecer na vida humana. Motivados principalmente pelo desejo, que ainda segundo a autora, é “a chave mágico-circunstancial para o acaso”, certos acontecimentos se desenrolam no interior da narrativa bretoniana.

Em Nadja, bastava o espírito de Breton inclinar-se a desejar algo que, logo, ele se materializava. Durante um de seus inúmeros passeios, o autor e também narrador da obra menciona que sempre teve o desejo de encontrar, alguma vez, à noite, “uma bela mulher nua” (BRETON, 2007) e, com o tempo, relata que, de fato, chegou a encontrar uma dama nessas mesmas condições, coberta apenas por um casaco. Além desta, ao longo da obra, outras situações também ocorrem de acordo com o que o protagonista passa a ambicionar. Contudo, é a partir do momento em que ele encontra Nadja, que dá nome a sua obra, que esse acaso objetivo torna-se ainda mais evidente. Ele passa a pressentir prováveis encontros com essa mulher avassaladora e, do mesmo modo, ela parece conhecer bem todas as suas aspirações do espírito, como se pudesse, de fato, mergulhar em seus pensamentos:

 

Diante de nós derrama-se um chafariz cuja curvatura ela parece acompanhar. "São os seus pensamentos e os meus. Olha de onde eles vêm, até onde se devam, e como é mais bonito ainda quando caem. Logo em seguida se fundem, se refazem com a mesma força, e recomeça esse arremesso que se despedaça, essa queda ... e assim indefinidamente." Fico assustado: "Mas, Nadja, como isso é estranho! Onde é que você foi buscar justamente essa imagem, que está expressa quase da mesma forma num livro que você não pode ter conhecido, e que acabei de ler?". (BRETON)

 

Mesmo sem possuir um acesso aparente aos desejos de Breton e às suas pretensões, Nadja parece antever seus passos. Em um de seus encontros, a moça chega a sugerir que o próprio André escreveria, um tempo depois, um romance sobre ela e sugere-lhe algumas coisas para a provável obra:

 

[...] André? André?... Você vai escrever um romance sobre mim. Garanto. Veja só: tudo se esvai, tudo desaparece. É preciso que reste algo de nós ... Mas isso pouco importa: você arranja outro nome: que nome, quer que eu diga, isso é muito importante. Tem que ser um pouco o nome do fogo, pois é sempre o fogo que aparece quando se trata de você. A mão também, mas é menos essencial que o fogo. O que vejo é uma chama que começa no punho, como aqui (com o gesto de fazer uma carta desaparecer) e que faz com que a mão se queime e desapareça num piscar de olhos. Você vai encontrar um pseudônimo, latino ou árabe. Promete. É indispensável. (BRETON)

 

No decorrer da narrativa, Nadja também começa a agir de acordo com alguns textos poéticos que Breton havia escrito, fazendo-o compreender na prática certas imagens que ele mesmo afirmava não ter ideia do que se tratavam antes. Há uma conexão tal entre ambos na qual, por muitas vezes, um parece fazer parte do outro e ela, não raramente, confunde-se com as imagens poéticas produzidas pelo autor em outras obras. É como se Nadja fosse a síntese do poder criador do protagonista e de todos os seus anseios instintivos que, racionalmente, não eram postos em prática.

Nadja configura-se quase como uma força da natureza, arrebatadora, forte, desmedida, de gênio livre. Ela é o Surrealismo personificado, feito em corpo de mulher e converte-se nas próprias disposições de espírito do poeta. Seus mistérios, encantos e até mesmo seus desvarios são para André Breton, na obra, irresistíveis e inevitavelmente atrativos.

Além do acaso objetivo, temos temas muito caros ao Surrealismo e bastante elogiados no Manifesto de Breton: o amor e a loucura. O primeiro pode ser encontrado no próprio envolvimento entre Nadja e o autor, que a idealiza e não consegue livrar-se das amarras do sentimento que o liga a esta mulher. Em O Amor Louco, esse tema volta a ser retomado e também a noção de uma beleza convulsiva, tal como também possuía a própria Nadja; e, juntamente a isso, retorna, nesse outro livro, da mesma forma, a ideia do acaso objetivo.  Já a segunda temática surrealista presente na obra, encontra-se na própria insanidade da moça, revelada nas últimas partes do livro, que a leva para sempre para o mundo da total irracionalidade. Ao fim, ela se desconecta de uma vez por todas do mundo material e lógico, entregando-se totalmente ao delírio.

Na literatura brasileira, não foi sem resistência que as ideias surrealistas adentraram. Não é novidade que o Surrealismo aqui, principalmente no período das suas primeiras incursões literárias, foi um movimento à margem. No entanto, também é verdade que essa tal “margem” era o espaço ideal, onde ele, não só aqui, como também no seu país de origem e em outros, pretendeu circular. Fez-se margem para explorar o que havia de mais profundo no homem e ir contra todo tipo de regra limitadora. Contudo, paradoxalmente, não pôde livrar-se totalmente de algumas amarras que lhe impôs o marxismo, nem da marca de, um dia, ter se vinculado a ele.
É certo, como já foi dito, que não foi sem dificuldade que as ideias surrealistas adentraram na literatura brasileira. Entretanto, José Niraldo de Farias (2003) nos propõe um exame mais atento da presença do Surrealismo no Brasil e afirma que o Movimento “influenciou nossa literatura muito mais do que usualmente se pensa”. Porém, Gilberto Mendonça Teles (1996 apud NOGUEIRA, 2004) afirma que durante o início do Modernismo, momento este, segundo Farias (2003), da entrada e circulação das ideias do Surrealismo; não se pode, ainda, falar de influências surrealistas na nossa literatura. Para o autor, isso só é possível a partir de 1928.
Como já mencionei anteriormente, muito se tem discutido, ao longo dos anos, sobre a presença ou a ausência de um Surrealismo aqui antes da década de 60. Com efeito, não houve um Movimento organizado no país antes dessa data, mas esse fato não anula a presença de obras, antes dessa data estipulada, que dialogassem com os ideais surrealistas ou tivessem certos traços surrealizantes. O fato de termos publicações com esses aspectos mais esparsas e menos articuladas entre si desde o início do Modernismo, diferentemente do que aconteceu na França, não invalida ou anula a presença do Surrealismo no Brasil antes de 1960.
O nosso Modernismo foi, de certo modo, ideologicamente fracionário. De um lado, Mário de Andrade e o grupo de autores e artistas que se ligaram a ele, que defendiam uma obra estritamente nacional, que valorizasse a cor local e tivesse como principal objetivo a construção de uma arte, de fato, brasileira, desvinculada, o máximo possível dos padrões europeus. Das vanguardas, aproveitava-se apenas o que fosse interessante para a construção de uma produção artística totalmente nossa. Contudo, por outro lado, temos Oswald de Andrade, que em seu Manifesto Antropofágico menciona diretamente o Surrealismo e a psicanálise de Freud. Seu romance Serafim Ponte Grande (1933) é, inclusive, apontado frequentemente como um romance que possui traços surrealizantes.
Nada mais alheio à ideia de cor local defendida por Mário que o Movimento Surrealista, que em essência, independentemente das diversas posturas políticas que Breton e muitos dos seus seguidores tomaram, preocupava-se em mostrar o que havia de mais profundo no inconsciente humano. Para isso, era preferível desvincular-se, o máximo possível, da realidade material.
 Seguindo uma linha um pouco distinta do Surrealismo francês, que defendia a resistência a toda e qualquer religião, principalmente a que nasce a partir dos ensinamentos de Jesus Cristo; Murilo Mendes e, em certo sentido, Jorge de Lima vinculam-se ao cristianismo e constroem obras que dialogam ao mesmo tempo com a mística cristã e com ideias surrealistas de valorização do sonho, do delírio e da construção de imagens, a priori, absurdas. Desse autor, podemos destacar as obras O Visionário (1941), As Metamorfoses (1944) e Mundo Enigma (1945), escrita em parceria com Jorge de Lima. A obra deste último não se detém unicamente num estilo ou movimento, muito pelo contrário, dialoga com temáticas religiosas, com o Surrealismo, o Expressionismo da obra de Portinari e o Movimento Modernista brasileiro. Por isso, ao mesmo tempo em que vemos obras dele a exemplo de O Anjo (1934), podemos observar também Essa Nega Fulô (1929), que nada tem a ver com a linguagem ou o modo de construção literária surrealistas.
Na poesia, assim como na prosa, Jorge de Lima segue estritamente um modelo formal mais rigoroso. Os aspectos surrealistas de sua obra estão, no entanto, nas imagens poéticas construídas, na valorização da imaginação e do mágico. Invenção de Orfeu (1952), último livro publicado em vida do autor, é uma espécie de epopeia lírica, dividida em cantos compostos por algumas poesias metrificadas e rimadas, outras de metro livre e branco e diferentes formas poéticas, como, por exemplo: sonetos, oitavas camonianas, baladas e poemas de forma mais livre.
Não há um tema específico que acompanhe todo o desenrolar dos cantos. Talvez o tema central de Invenção de Orfeu seja a própria poesia e suas múltiplas faces. Não há uma unidade visível entre os dez cantos. Cada um deles é composto por uma série de poemas que também são fragmentários entre si e poderiam constituir, um por um, poemas independentes sem grandes perdas de seu significado. De alguns poemas que compõe Invenção de Orfeu fica apenas a sensação, a atmosfera mágica e o sentimento de evasão poética. Dialogando com a Eneida, a Divina Comédia, Os Lusíadas e até com a própria Bíblia, o autor nos convida para uma viagem que, a princípio, parece ser pelo mar, mas que, na verdade, é pelo universo mágico da poesia, do encantamento, das sensações, daquilo que há de mais profundo no próprio homem.
Além de Murilo Mendes e Jorge de Lima, vale a pena ressaltar aqui também uma das contribuições do romancista e poeta Rosário Fusco, reconhecido como um importante autor modernista brasileiro. O autor d’O Agressor (1943) fora apontado por Antonio Candido, em um ensaio para o livro Brigada Ligeira, como um raro exemplo do Surrealismo no Brasil (CARDOSO, 2008).

Assim como Afrânio Coutinho, muitos críticos ressaltam que a presença do Surrealismo no Brasil se deu de forma tênue, superficial, atingindo, apenas, algumas publicações dispersas. Contudo, José Niraldo de Farias (2007) conclui que, ao se fazer um exame mais detalhado da literatura brasileira, pode-se constatar que essas afirmações são, até certo ponto, discutíveis. Segundo ele, desde o lançamento da revista Estética, em1924, por Prudente de Moraes, neto, e Sérgio Buarque de Holanda, o Surrealismo incutiu-se na cultura brasileira. A partir desse momento, ainda de acordo com o autor, iniciam-se na nossa produção estética alguns focos que indicam uma preocupação com o caráter irracional da criação e com “a liberação dos princípios coercitivos que envolviam a produção literária até então”:

Estética representou, em menor grau, para o modernismo heroico, o que o surrealismo representou para o dadaísmo. Uma das primeiras preocupações da revista foi o anúncio da superação da fase demolidora, de combate e de invocações puramente formais (Leonel, p. 37). A própria caracterização externa do periódico, destituída de grandes inovações, relembrará La Révolution Surréaliste, que, contrariando o espírito de revolta absoluta presente nas vanguardas anteriores, apresenta uma capa bastante simplificada. (FARIAS, 2007)

Um aspecto importante do Movimento Surrealista, de modo geral, é a sua permanente tentativa de não afirmar-se como doutrina ou escola, mas sim como uma corrente de espírito. Sendo assim, suas ideias poderiam transitar mais livremente e sem as amarras temporais e formais impostas pela ideia de escola literária e artística. Desse modo, ele está aberto tanto aos ditos surrealistas ortodoxos, quantos aos dissidentes.
 José Niraldo Farias (2007) classifica Jorge de Lima como um autor brasileiro que “abraça o surrealismo sem declarar filiação estilística subserviente aos pressupostos da poética bretoniana”. Para começar, o Surrealismo nesse autor dá-se muito menos na forma que no conteúdo. Dono de uma escrita de caráter mais formal tanto na prosa, quanto na poesia, na qual adota não raramente a metrificação e formas clássicas, Jorge de Lima cria uma obra de um caráter surrealizante que se realiza muito mais na liberação da imaginação e na construção da imagem.
Classificado como novela, O Anjo, de Jorge de Lima, foi publicado pela primeira vez em 1934. A narrativa contra a história de Herói, que, em meio às suas divagações acerca da aparência dos seres angelicais, encontra Custódio, a quem atribui o caráter de anjo. Ao longo do enredo, ele converte-se num verdadeiro anjo da guarda para Herói, segue-o por toda a parte e cuida de seu bem estar físico e emocional.
Em O Anjo, Herói sonha com algumas coisas como a aparição de um anjo, encontrar a Bem-Amada, dentre outras, e elas vão, paulatinamente, realizando-se. Não se sabe se isso ocorre por mágica ou mero acaso do destino. Não se pode afirmar ao certo se Custódio é de fato um ser celestial, se a Bem-Amada existe, de fato, ou se tudo aquilo é verdade apenas na cabeça de Herói:

O Anjo foi compreendendo que aquilo ia dar numa encrenca roxa, disse no ouvido do Herói:
- Você está louco, não beba mais! Pare de beber!
E depois principiou a operar grandes passes de mágica. Mas como grande parte da assistência se achava mais ou menos embriagada não percebeu a formidável técnica do Anjo. O esquisito prestidigitador transformou num segundo o álcool do pessoal em Rubinat, pôs dois jovens chorando sem querer, outro catando insetos na roupa, sacou ovos de várias senhoritas e introduziu camundongos e baratas em senhoras histéricas. Conseguiu coisas mais extraordinárias mudando o vestuário dos senhores que de repente se viram trajando combinações, porta-seios e calças rendadas, assim como algumas velhas foram encerradas com a roupa pelo avesso dentro dos armários do Café. (LIMA,1998)

No trecho citado acima, não se sabe se os “passes de mágica” de Custódio aconteceram mesmo ou se Herói e os demais presentes imaginaram aquilo devido ao estado de embriaguez. Esse clima de incerteza domina muitos trechos da obra. Não se pode afirmar com certeza absoluta a existência ou inexistência de alguns eventos que supostamente estariam no campo da magia ou do milagre.
Observa-se que, nessa narrativa, os traços surrealistas não estão na forma, pois a escrita é tradicional, mas sim no conteúdo lúdico e no modo como os acontecimentos se desenrolam. Há em O Anjo um recurso muito semelhante ao utilizado por Breton em Nadja: o acaso objetivo. Alguns fatos, que pareciam fazer parte de uma simples causalidade, participam, na verdade, de uma verdadeira rede de associações. Um aparente acaso desencadeia uma série de ações e uma ação puxa a outra.
Além da incerteza de algumas questões, como, por exemplo, a natureza de Custódio, há na obra um estado de magia, no qual seres aparentemente encantados e que fazem parte, em boa parte, do imaginário cristão, aparecem e influenciam no destino de Herói, que está na narrativa muito mais para um anti-herói do que para um herói de fato. Uma atmosfera de sonho, também bastante cultivada pelo Surrealismo bretoniano está presente no desenrolar da trama. Outro aspecto caro ao movimento presente em O Anjo é a valorização do amor (PAZ, 1983), por meio da busca e idealização da Bem-Amada.
Já Rosário Fusco, louvado pela crítica como o “menino-prodígio” do Modernismo no Brasil, publica pela primeira vez, em 1943, O Agressor, uma das obras mais emblemáticas não só dentre suas demais escritas por ele, mas também no âmbito da literatura brasileira. De início, a leitura desse livro causa um profundo impacto e estranheza, pois há um descompasso entre o mundo que se apresenta à volta do protagonista e como ele o percebe. Além de tudo, não raramente, os delírios do personagem confundem-se no decorrer da narração com a realidade material.
O Agressor conta a história de David, que é contador em uma chapelaria há dez anos. Sua rotina, do início ao fim da obra, não varia tanto: ele sai da pensão onde mora para ir ao trabalho e de lá retorna para o local onde reside. Dentre os personagens que se fazem mais presentes no seu dia-a-dia estão seus patrões – Franz e dona Frederica –, Amanda – a quarteira que frequentemente leva-lhe comida e visita-o em seu quarto – o porteiro do prédio vizinho e a proprietária da pensão. Além destes, outra personagem, de forma mais indireta, circunda o protagonista: Clara. Essa, casada com um homem que quase nunca se vê, mora no apartamento que se localiza justamente em frente ao quarto de David.
Dividido entre uma rotina de trabalho repetitivo e monótono, a observação assídua da rotina de sua vizinha e a preocupação relativa a certos telefonemas, o protagonista praticamente não observa mais as demais coisas que acontecem ao seu redor, limitando-se, quase sempre, a dedicar-se a essas três ações. Durante toda a obra o personagem crê piamente que está sendo perseguido por muitas pessoas, mas principalmente por seu patrão e por Nicolau, homem casado que possui algum tipo de envolvimento com Amanda.
Num dia normal de trabalho, David escuta um barulho que vem do depósito e vai conferir. Acreditando que seriam gatos os causadores daqueles ruídos, ele chega a perguntar se havia esse tipo de animal lá e uma voz, por trás da porta responde positivamente. De imediato, o contador aceita a ideia de que ali se encontravam, de fato, gatos, contudo, pouco tempo depois, percebe que não é algo próprio dos felinos a fala, mas dos seres humanos. Começa, nesse momento, um dos grandes conflitos do personagem: aquela resposta havia sido um delírio seu ou pertencia à sua patroa, que, por ventura, poderia estar naquele local transando com o marido? Esse é um dos mistérios da obra que não são resolvidos para o leitor e muito menos para ele. É a partir do episódio dos gatos que David começa a desconfiar das boas intenções de Franz e acredita estar sendo perseguido por ele. Desse instante em diante, um profundo medo de ser morto a qualquer hora toma conta do personagem.
Com o passar do tempo e das observações, David conclui que sua vizinha Clara possui algum interesse nele e passa a interpretar suas aparições na janela ou nos locais onde ele também estava como sinais disso. Até mesmo quando ela envia um bolo com seu nome e cinco velas, o contador, apesar de saber que havia um garotinho de cinco que essa mulher conhecia também chamado David que morava muito próximo ao seu quarto, interpreta esse fato como um indício cabal do desejo de Clara por ele. A partir desse momento, o protagonista passa a nutrir sentimentos por essa misteriosa mulher, acreditando ser tudo recíproco, e a acompanhar boa parte dos seus passos, contando com informações que costumava tirar do porteiro do prédio onde ela residia.
No caso de Amanda, segunda figura feminina marcante na obra, sua presença, para David, soa, de certo modo, estranha e incômoda. Ao que se entende por meio da narração, seus encontros com ele, que se dão com muito mais frequência no quarto onde o contador reside, são estranhos para ambos e causa um estranhamento até mesmo para o leitor. Nessas ocasiões, há pouca ou quase nenhuma conversa e, geralmente, Amanda fica apenas parada, observando-o.
Mesmo as ocasiões que parecem mais claras ao leitor, David interpreta-as de maneira invertida, distorcendo palavras e ações de pessoas ao seu redor. Parece haver um ruído entre o modo como as coisas se dão e como o personagem as percebe. No momento em que Franz mostra ter interesse em promovê-lo a sócio, o contador, imaginando ser aquilo mais uma tentativa do patrão para matá-lo ou desmoralizá-lo, revela em público todas as suas desconfianças, confessa tê-lo denunciado à polícia e acusa-o de querer assassiná-lo. Logo em seguida, Franz morre aparentemente de um ataque cardíaco fulminante. Contudo, ao invés de considerar que as suas palavras teriam causado aquele tipo de reação no chefe, David reage como se nada tivesse acontecido ali e toma a morte dele como parte de um plano terrível para prejudicá-lo.
No penúltimo capítulo, intitulado Mudança, o fio de racionalidade que liga o protagonista ao mundo mostra-se ainda mais comprometido. Ao encontrar, novamente, Amanda no seu quarto, ele dialoga com a moça, mas além deles evidentemente não se entenderem, as palavras de David saem entrecortadas e dirigem-se não à pessoa com a qual o contador está dialogando, mas a outras:

 E resmungando:
– Neste... (quarto)... não... (posso)... mas no que aluguei... (mandarei um automóvel buscá-la)... no lugar combinado... (Porém, antes que me esqueça)... que espécie de música é essa valsa?
Amanda perguntava:
– Que música?
– A valsa. Não se recorda? (David estava falando com Clara.)
– Não.
David prosseguia:
– Estas... (informações confidenciais que os Bancos forneceram)... servem... (para provar a tentativa)... de suicídio... Eis aqui: os negócios dele vão de mal a pior... (Para o seu caso, a melhor solução é o desquite)... se não morrer... (A senhora Frederica)... deve estar sendo roubada... (no meu tempo, esses depósitos eram bem mais altos)... quero falar somente da valsa e das rosas. Ouve?
Amanda, sobressaltando-se, timidamente voltava-se para David:
– A valsa?
– Não foram rosas, não.
– Como não foram? – Protesta David.
– Ora, senhor David, então não conheço dálias? Pois fui eu quem as pôs no seu quarto.
– Digamos que as dálias se transformaram em rosas. Tenho assistido a várias transformações.
– Acredito, fez a outra. (FUSCO, 1976)

No entanto, apesar de claramente não haver uma comunicação entre ambos, visto que a moça não o entende e ele, muitas vezes, não se refere a ela, a quarteira age como se compreendesse tudo o que estava sendo dito e nada fora do normal estivesse acontecendo. Os demais personagens da narrativa também não parecem perceber tanto os estranhos comportamentos dele.
Ao longo da narrativa, a onisciência do narrador confunde-se, muitas vezes, com a percepção de mundo de David, o que dá à obra um caráter ambíguo. Há sempre uma dúvida que permeia toda a história. Não se pode afirmar ao certo se determinados fatos tem uma existência real ou se são apenas delírios do personagem. Por exemplo, ao fim, quando supostamente o contador, num ataque de fúria, molesta Amanda, essa ação é negada por ele mesmo e posta em dúvida pelo próprio narrador.
Nesse romance, como o próprio título já sugere, os acontecimentos se desenrolam para a chegada de um dito agressor. Contudo, contrariando todas as possíveis expectativas criadas no decorrer da leitura do texto, esse indivíduo perigoso, previamente anunciado, não é nenhum dos potenciais “perseguidores” de David, mas ele mesmo que, num aparente estado de loucura, tira a roupa e agride a proprietária da pensão.

Além de uma atmosfera ambígua e de profunda estranheza que permeia tanto O Anjo, de Jorge de Lima, quanto O Agressor, de Fusco, o delírio, de forma mais ou menos velada, também é um fator em comum entre essas duas narrativas e as aproxima da concepção literária surrealista. Fora isso, a veneração por uma figura feminina e a mistificação do amor, tal como em Nadja, de Breton, é outro elemento presente nas obras que são muito caras ao Surrealismo.
No entanto, um aspecto presente n’O Anjo e ausente n’O Agressor que aproxima essa narrativa de Jorge de Lima das bretonianas é o acaso objetivo. De acordo com as disposições de espírito de Herói, as ações magicamente desenvolvem-se. No caso de David, há uma tentativa do protagonista, algumas vezes meio forçada, de estabelecer uma ligação direta entre acontecimentos exteriores a ele e prováveis futuras ocorrências ou a fatos concretos de sua vida.
É importante ressaltar aqui, mais uma vez, a grande importância da imaginação surrealista na literatura, pois, ao contrário do que acreditavam muitos críticos anteriormente, o Surrealismo não está ausente na arte moderna e modernista, muito pelo contrário. Mesmo não estando manifesto diretamente em algumas obras literárias, faz-se presente, seja em relação às técnicas de escrita que propôs, seja na postura ante o fazer literário que inaugura.


***

Letícia Raiane dos Santos (Brasil). Mestranda em Teoria da Literatura pela UFPE. Contato: le_09876@hotmail.com. Página ilustrada com obras de Zuca Sardan (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.






Nenhum comentário:

Postar um comentário