sábado, 14 de novembro de 2015

GRACCHO BRAZ PEIXOTO | De viés, de Mário Montaut


Vivemos tempos nublados, onde não se vê na paisagem um horizonte cordial ou mesmo uma pequena utopia que nos permita repousar do cansaço gerado por conflitos, pelo movimento incessante de eventos de toda natureza, de tanta informação que não temos como absorver, minimamente. Parece que, para além de ideologias e credos, o mundo tornou-se um grande holding de comunidades transnacionais de consumidores, caixa de Pandora de onde as coisas vão se desmanchando no ar, saturado de revoluções.
Mas, se depois do mote vem a glosa, houve algum período de concórdia? Certamente o Tempo diria que não, que tudo dá corpo à História e é fonte para criação; afinal, é da matéria existência que a arte se alimenta. Por isso, cabe aqui lembrar uma frase de Igor Stravinsky: “O fenômeno da música foi-nos dado com o único fim de instituir uma ordem nas coisas, incluindo - e principalmente - uma ordem entre o homem e o tempo”.
Tudo nos leva a crer que o genial compositor russo não se referia somente ao tempo musical, mas também ao pulso musical, que estabelece íntima relação com emissor e receptor. Da música erudita - constituída por harmonia, melodia e ritmo - desviaremos nosso curso para uma pauta mais prosaica, mas não menos ilustre, que inclui a letra, o versejar, quarto e fundamental elemento para falar das canções, essas cápsulas sonoras de breve duração, com poder de nos transportar para um outro tempo, além do tempo realidade. Queremos saudar De Viés, o quarto disco do “cantautor” paulistano Mário Montaut.
Poderíamos abordar o álbum sob vários aspectos, mas seria mais coerente começar pela canção que abre o disco, a que nos deu a deixa para o primeiro parágrafo: Bela Humana Raça. Regravação que deu título ao disco inaugural, lançado em 1999, a canção, que valoriza os substantivos como cores a compor um quadro onírico, simboliza aquele travesseiro surreal em que podemos nos aconchegar, onde os males do mundo são anistiados por uma graça superior e tudo está em ordem.
Entoada de forma circular, o autor puxa o fio de Adão, como a evocar algo primordial para sublimar os senões e nos dar alento: Nada há que nos faça / Represar o mel /Cresça humana raça / Puxe o carrossel. A seguir, tinge de forma delicada | um traço constante e relevante de sua artesania musical | um universo fadado a procriar e dar à luz os desígnios do “fogo imperial”:

Choraminga a goela da menina mantra menta humana usina explode em música cristal / Renova aquarela comichão da primavera gera graça e humor no clã do velho Adão/ Lá na esquina espoca Zoroastro rei menino novo astro meu canário redentor/ Hálito celeste sopra e bate na remela do olho azul que ali no berço despertou…

É quando uma canção, simples, se veste de algo sagrado que emana da força da poesia, substância fundamental para o trabalho de Mário Montaut. Pois, na verdade, se trata aqui do poeta inspirado seduzido pela música. Vale citar a última estrofe, onde assonâncias e aliterações dão um brilho especial às sílabas cantadas:

Carne céu costela vida estala e se constela no barraco da favela e arranha-céu / Flui qual garoa ao sol chuvisco na canoa que flutua no amazônico esplendor / No vale ou montanha na Bahia ou Alemanha criancinhas sentinelas matinais / Bandos de cegonhas mais e mais barrigas prenhas tochas lenhas artimanhas de uma flor.

Diz Ortega Y Gasset em A desumanização da arte: “A relação de nossa mente com as coisas consiste em pensá-las, em formar ideias delas. A rigor, não possuímos do real senão as ideias que dele tenhamos conseguido formar para nós”. Eis aqui um dado essencial para a arte, pois, na verdade, nossas ideias em relação às canções andam um pouco viciadas. Não vivemos mais aquelas várias décadas em que a música popular exercia um protagonismo inquestionável como meio de fruição e veiculação de questões relevantes. E, quando entre a ideia e o resultado há espaço para a singularidade, o artefato é uma boa medida, quando resulta naquilo que achamos de valor.
Castelo, outra faixa do disco, possui melodia barroca e versos de uma imaginação fértil. Fruto de uma forte ligação com o Surrealismo de André Breton e sua trupe, Mário tem gosto pelo mistério, pela sinestesia, a mistura de percepções de natureza sensorial distintas. Em várias situações ao longo das 16 faixas, as melodias servem de apoio para seu espírito lúdico, quase infantil. Resulta que para algumas dessas peças poderíamos cunhar o termo OMNIs - objetos musicais não identificáveis. Elas pousam fora do desenho padrão das canções, pedem ao ouvinte outra audição, uma abertura para se curtir os neologismos de seu projeto de canções que agem no âmbito das sugestões, das fantasias. Vejamos um trecho de Jardins Floríbulos, construída com base em proparoxítonas:
Los Los Los Los / Jardins floríbulos /Dos negros ídolos / E verdes óvulos / Dois doidos índios apaixonados / Há séculos e séculos … Céu e oráculos / Sol e tentáculos… Distinta das outras faixas, De tua lembrança é uma daquelas que emanam da tradição, no caso a tradição das toadas do interior de São Paulo e Minas Gerais. É como se a canção existisse desde sempre, como se já conhecêssemos a melodia, tivéssemos sofrido junto com ela.
O disco tem a colaboração decisiva do músico Roberto Gava. Compositor e produtor, Gava, além de executar violões e guitarras fez trabalho esmerado nos arranjos, tarefa árdua, pois, quando se tem tudo à disposição nos estúdios por meio de programações é mais fácil se perder do que achar o recurso apropriado. De Gava, merecem também destaque os arranjos que fez para as duas vinhetas que mudam repentinamente a sonoridade do cd. Executadas por programações, frases de naipes de metais trazem ao disco uma atmosfera divertida.
Ana Lee, com afinação e voz límpida dá apoio aos vocais, presença que se incorpora à essência do cd. Ricardo Stuani cuida dos ritmos com bateria e percussão. Músico e pesquisador, Stuani foge à regra da percussão como mero apoio. As ilustrações, aquarelas que valorizam os cenários das canções são de Regina Izumi Hasegawa. Todas as faixas são de sua autoria, mas em duas delas Montaut tem como parceiros Vicente Thiné (Álven Jérra) e Ozias Stafuzza (Cadáver Delicado).
Como dito acima, vivemos tempos em que não temos tempo para sorver sem rapidez e fragmentação a miscelânea das linguagens massificadas, a atomização das identidades. Neste cenário, De Viés é um disco de autor nômade, no contexto da miríade de mídias que respiramos. A abundância de discos, de suportes, e o universo infindável de segmentos passageiros são algo, ainda, de difícil análise.
Caudatários daquela que talvez seja a mais rica produção da cultura brasileira - sua música popular (curiosamente apesar de não termos tradição de ensino musical), hoje somos trovadores eletrônicos de pequenas vilinhas digitais. Não estamos começando tudo de novo, mas tudo é ainda muito novo depois que se formou esse supercontinente, a Pangea on-line. Porém, se o espaço público tornou-se o território do consumo, das relações líquidas, uma coisa não se perde: a autonomia do espaço íntimo. E nessas novas aldeias e vilas digitais Mário Montaut segue com seu quarto disco, na terceira margem das canções.

O SOM IMAGINÁRIO DAS PALAVRAS | O uso do “e-mail”, no âmbito da imprensa, trouxe uma alteração na forma de se fazer entrevista. Se antes era feita no calor da hora, no encontro pessoal entre o jornalista e seu alvo, onde pergunta e resposta eram um bate-bola que proporcionava outras colocações inusitadas, muitas vezes surpreendentes, hoje é realizada por e-mail, fato que vai das publicações culturais mais à margem da mídia a revistas como a Veja. Porém, se perde no ritmo da fala, do fraseado mais espontâneo e circunstancial, ganha na cadência do pensamento, da articulação construída para uma resposta mais substancial. No caso do compositor Mário Montaut, a resposta escrita resvala facilmente para digressões e reticências, sugestões, o que, naturalmente, dá à “conversa” um sabor mais incomum. Formado pela Escola de Comunicação e Arte | ECA, da USP, Montaut está divulgando seu quarto CD, “De Viés”, em que põe a rodar a sonoridade própria de suas 16 canções. Neste espaço generoso, Mário fala da morte da canção, de sinestesia, de ídolos, infância, parceiros…  É nosso convite para leitura e audição de uma voz singular nesse território que costumamos chamar de MPB.

GBP | Vê-se, claramente, em suas letras, uma afinidade com o Surrealismo. Talvez seja algo tão forte que já soa como um processo inconsciente. Refiro-me em especial aos cenários oníricos que emanam das canções, você escrevendo no âmbito das sugestões, o que deixa sempre uma margem virgem para outras fruições. Pode comentar um pouco sobre isso?

MM | Isso que você chama de Surrealismo é para mim, com as mais loucas sinestesias, o espaço-síntese de todos os conflitos, de todos os paradoxos, e quando crio a coisa não é apenas emotiva, pensamenteira, sensorial.  Dessa enigmática instância acolhedora de tudo o que foi tocado pelo desejo, a inspiração, é que pode se abrir uma margem virgem para outras fruições, como você diz. Impossível a criação se não estiver ativada essa região. Agora, o Surrealismo, que para mim é essencialmente isso, realiza-se ganhando forma musical em tempos, velocidades bem diversas, quando vira música, em princípio. Uma música que já prevê, aguarda palavras, e que composta ao violão e voz, piano e voz, só ao instrumento ou a cappella, pode chegar música pura, ou com palavras, sonoridades que inspirem o verbo, e neologismos que mesmo desafiando a razão se impõem com seus sentidos misteriosos. Então, quando inicio a letra já existe todo esse processo, toda essa explosão, e a ela ouvindo, reouvindo, faço a letra. É um Caos. E natural que dessa complexidade às vezes surjam versos absurdos. Natural e inevitável (risos). Existe nessas composições algo de sugestivo, como você coloca, e de imperioso, inexplicável também para mim. Se pudesse explicar, não sei se faria.

GBP | No novo filme do Jean-Luc Godard, “Adeus à Linguagem”, há a seguinte frase logo na abertura: ” A realidade é o refúgio dos que não têm imaginação”. O que você acha de tamanho aforismo, vindo de quem vem?

MM | Você sabe que não acompanho tanto assim o Godard? Retenho imagens belíssimas dele, de alguns filmes, e de certos filmes que nem vi inteiros, mas fico sedento por imagens novas dele, e esse aí é em 3D, não é? Um homem, uma mulher, um cão… e você lembra de “Je vous salue Marie”? Aquela menina recitando Baudelaire. E o bigodudo do Sarney censurando o filme logo após o término da censura? A pedido de Marly Sarney, a primeira dama que virou tema de carnaval daqueles jornalistas que criaram o bloco “Je vous salue Marly”? É um convite de passeio pelo tema, o aforismo. Oscar Wilde tinha outro: “A ação é o último recurso dos que não sabem sonhar”. Sarney, Antonio Carlos Magalhães: homens de ação, de atitude. “E assim adormece esse homem que nunca precisa dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo do que sua terra, não há”. Surrealismo de Dorival Caymmi. Borges: “As pessoas aceitam facilmente a realidade talvez por suspeitarem que ela não exista”. Lorca: “Não é sonho a vida. Alerta! Alerta! Alerta!” Novalis: “A vida não é um sonho, mas pode chegar a ser um sonho”. Décio Pignatari achava que o Surrealismo não pegou tanto por aqui porque o Brasil já é surrealista. “Em qual mentira vou acreditar?”, entoavam os Racionais em “Sobrevivendo no inferno”, e esse é um título dantesco! Caetano Veloso: “Antonio Carlos Magalhães é quentinho, sexy e carinhoso”. O aforismo de Godard após um telejornal da Globo em ritmo de golpe produz essas digressões: “Bela Humana Raça!” (risos). “Dali de Salvador”, cantava a Blitz. “Um homem que para se referir a uma enxada precisa dizer enxada merece mais é pegar nela” (Wilde). Gabriel García Márquez quando sentia medo da realidade procurava fazer trabalhos manuais. Para tudo isso deve haver uma solução de continuidade. Lula e Dilma sabiam de tudo, mesmo?

GBP | Geralmente, com nossas influências, vamos encontrando compositores que nos inspiram de diferentes formas. Alguns, se podemos colocar desta forma, se enquadrariam sob aspecto mais cerebral, informativo; outros já repousariam perto do coração, por conta de vivências, emoções que eu diria quase míticas. Você concorda? Pode dar exemplos?

MM | O Paul McCartney certa vez falou algo assim: “Here, there and everywhere era pra ser supostamente uma canção dos Beach Boys, porém, você não sabe disso, nada disso está na música, o que me influenciou está na minha cabeça, você não precisa saber, e é assim que vejo a diferença entre influência e cópia”. Algo aproximado, com o qual me identifiquei. Posso lhe garantir que no processo de determinada composição sei onde se dá um toque de Benjor, de Debussy, Kandinsky, Keith Richards, de Heidegger, e claro, você não precisa saber disso (risos). Dito assim, parece até niilismo, inexistência quase total de evidências (risos). Fico parecendo um personagem de Borges. A artista plástica Fayga Ostrower, em seu livro “Criatividade e processos de criação”, repete em estilo acadêmico o que o Paul disse com mais clareza e contundência: que a influência mais elaborada se torna reconhecível praticamente só pelo artista. Creio que a influência vem dessa quarta região inspirada, da qual emana o fogo-síntese, e onde ocorrem as transfigurações de tantas linguagens, onde um parágrafo de Heidegger, uma tela de Kandinsky, não me instigam menos do que uma canção de Chico Buarque ou dos Beatles. Como exemplo, vou mencionar o sonho em que Jimi Hendrix faz um solo de guitarra que se projeta no céu de Vulcânia  (ilha onde foi construído o Náutilus, do 20.000 Léguas Submarinas, de Julio Verne) num arco-íris com muito mais de sete cores, e que pode me lembrar tons do Kandinsky que revi na recente exposição do Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo,  sonho que resultou numa obra puramente musical, “Brincando em Vulcânia”. Será que lembra Hendrix (risos)?

GBP | Uma deixa para você fazer duas consagrações: fale de Beatles e de Dorival Caymmi.

MM | Infância, proximidade da origem, arquétipo. Quantas canções dos Beatles vêm de arquétipos. “The fool on the hill’, “Eleanor Rigby”, “I’m the walrus”, “Hello Goodbye”, “The Long and winding road”, “For no one”, “Help”, “I’ve got a feeling”, “Let it be” (em que muita gente, até o John Lennon, vê a Virgem Maria, mas que Paul jura ser a mãe dele)… E  esse mar de ondas arquetípicas quando quebra na praia é bonito, é bonito, como diz Caymmi, que como os Beatles, tem nas letras uma coloquialidade genial. Caymmi é infância puramente marota, sensual, com aquela malemolência, aquele violão das canções praieiras. Debussy compôs “La Mer”, mas é Caymmi quem o desvela pelas praias em que também pescam e se banham os Beatles.

GBP | Um comentário recorrente entre autores e músicos diz que a MPB perdeu sua força, sua representatividade, seu alcance. Concorda com isso? Sei que é uma questão complexa, que não se esgota numa entrevista, mas queria sua opinião.

MM | “O vento que faz cantiga nas folhas do alto do coqueiral, o vento que ondula as águas, eu nunca tive saudade igual, me traga boas notícias daquela terra toda manhã, e jogue uma flor no colo de uma morena em Itapoã”… Se vejo as coisas dessa praia, que é sonho onde brincam Chico, Beatles, Dalí, Breton, Alberto Caeiro, todo o resto é brincadeira de mau-gosto. Isso do Chico dizer que a canção morreu é apenas a revelação teórica de algo que ele já prenunciou em “Olé Olá”, em que vaticinava o futuro do canto, do samba: “o sol chegou antes do samba chegar, quem passa nem liga, já vai trabalhar, e você minha amiga já pode chorar”.  Na globalização da Ditadura Econômica, da Tecnologia Totalitária não sobra espaço para se brincar, pensar, cantar. Henfil já dizia que a tecnologia é a morte do sonho, e a morte do Sonho, parece, é a morte da canção. Paul McCartney, em “Jenny Wren”, acredita que a canção irá renascer. Eu apenas sei que por enquanto há muita singularidade possível e compartilhável.

GBP | Talvez a mesma pergunta feita de outro modo. Tivemos movimentos e movimentações de uma criatividade muito forte, uma produção hoje consolidada. Ao longo do tempo, grandes cantores e compositores que surgiram com a Era do Rádio, os craques da Bossa Nova, que fundaram uma nova linguagem, com repercussão internacional; a Tropicália, alguns grupos e artistas com tanta coesão que ficaram conhecidos como o Clube da Esquina, o Pessoal do Ceará, Geração Nordeste, o pessoal do Lira Paulistana, o rock da década de ’80. Que visão tem do cenário atual?

MM | Delícia lembrar 1980, quando a canção que eu mais ouvia nas rádios de São Paulo era “Noturno (Coração Alado)”, a de maior sucesso e uma das mais emblemáticas dos compositores do Ceará. Bem na época do “Lira Paulistana”, e curiosamente também em 1980, um debate na Faculdade de Música da ECA-USP, com a presença de Arrigo Barnabé, Mário Manga, Hélio Ziskind e uma diversidade enorme de compositores, na qual os movimentos que você menciona estavam mais ou menos representados. Ainda não haviam decretado sua morte, mas quase todos ali concordavam que a canção se encontrava em profunda atonia. O Arrigo se mostrava até meio indignado dizendo que tinha tocado na questão com o Valter Franco, e que este via aquela leva de canções com muito bons olhos. Mas eis que com a lembrança de “Noturno”, sua e do Caio, e esses fatos instigantes você traz de novo o tema que tanto nos seduz pelo mistério: a morte da canção. Por certa crítica que vê em Chico Buarque De Hollanda um sinônimo da canção, e também de certa esquerda no Brasil, ele foi eleito o grande ícone do fenômeno. Quando em julho de 2011 lançou “Francisco”, um crítico da revista Veja afirmou que “seu último espasmo criativo” se deu em 1993, em “Paratodos”. Chico estava então sem gravar desde 1989, ano em que lançou “Morro Dois Irmãos”. Logo após o lançamento de “Paratodos”, ele declarou numa entrevista que se a crise criativa pela qual vinha passando crescesse em termos geométricos, o próximo disco sairia só dali a dezesseis anos. Na realidade isso ocorreu em 1998, com “As cidades”, que deu ensejo a uma matéria da Veja intitulada: “A crise criativa de Chico Buarque”. Os críticos que participaram da reportagem nem falaram tão mal assim da obra, só tentaram aprofundar o assunto que o próprio Chico propusera. Sinto, Graccho, que este é o cerne da pergunta, e já que não dá mesmo para responder apenas prossigo nessa perspectiva que vou achando cada vez mais atraente. “Carioca”, “Sonhos Sonhos São”, “Subúrbio” e “Querido Diário” são para mim as mais significativas composições de Chico nos três últimos discos, e cuja riqueza é maior a cada audição. Com algumas faixas de “Chaos and creation in the backyard”, de Paul McCartney, essas certamente estão entre as músicas que mais ouço nos últimos anos, e sobre as quais gostaria de conversar com outros músicos, que para minha surpresa revelam um desconhecimento quase total desses trabalhos. Parece que resta em nossa contemporaneidade a graça singular, e ela pode ser partilhada, mas em outro nível. Dificilmente você diz: “Essa é a nossa canção”, relembrando Joyce, que já brincou com a ideia da morte da canção na revista “Bundas”, do Ziraldo, ano 2000.

GBP | Fale um pouco do processo de gravação de seu disco “De Viés”. Sei que várias músicas ficaram fora, apesar das 16 faixas. É doído definir o repertório?

MM | Sim, é mais que doído. Agora, eu me lembro de Noé. Quando Deus lhe disse que iria mandar o dilúvio, ele salvou um casal de cada espécie na arca. Bem, sem tamanhos avisos e sem aquele aguçado faro de escolha, mas a meu jeito, quando sinto que vou acabar perdendo a maior parte das muitas coisas que crio, seleciono algo que represente um pouco de cada etapa, de certos ângulos de minha criação pelo tempo, e coloco na arca de Montaut (risos), e nem sei se são as melhores músicas, mas são escolhas possíveis, que representam possibilidades que me habitam, e mesmo que muita coisa fique de fora, sinto-me aliviado antes que o temporal leve embora, e você sabe que na condição precária dessa existência de artista que não vive de sua arte, a questão se torna ainda mais delicada. Tento trazer para cada disco exemplares de várias épocas e composições realizadas numa proximidade relativa à feitura do disco. É quase impossível lançar um álbum em menores intervalos de tempo, então, tem sido assim até agora. Trabalhei essas composições desde 2010 com o Roberto Gava (produtor, arranjador e instrumentista no álbum), com a Ana Lee (cantora, minha mulher e musa), com o Ricardo Stuani (percussionista em várias faixas do álbum), Vicente Thiné e Ozias Stafuzza (queridos parceiros). E durante esse tempo gravei muita coisa nova, material para iniciativas futuras.

GBP | Como se deu sua aproximação com a música?

MM |  A banda no coreto de Serra Negra, perto dos três anos de idade. O rádio tocando “A Canção do Marinheiro” (“qual Cisne Branco”) e “Hava Nagila”, entre outros cantos e vozes de  Serra Negra, e já de volta a São Paulo, aos quatro anos, uma canção no rádio que nunca mais ouvi, e que me chegou com o tempero fabuloso de uma das tantas histórias que minha avó Alice contava, enquanto eu ouvia e olhava pela janela um navio sumindo. Um mapa infinito de tantas ruas.  Aos oito anos, de férias em Serra Negra, ouvi melodias dos Beatles, sem saber que eram elas, executadas por orquestra nos alto-falantes de um cinema.  Aos onze anos o violão, e logo as primeiras composições, Caymmi, Chico Buarque, Tchaikowsky, Chopin, Beethoven, Roberto Carlos, Beatles. Mais tarde o piano, e as namoradas, as turmas no colégio e em casa. Coisas bem antes do que conto e que não vão acabar.

GBP | Sabemos que algumas experiências com as artes, como pura fruição ou mesmo no ato da criação podem ser algo de elevação espiritual. Você teve algo assim com a música?

MM | Você fala em elevação espiritual, e eu atento para o termo. Espiritual. Tão desprezado na atualidade, como se nossa consciência fosse resultado unicamente de neurônios, de redes neurotransmissoras. Kandinsky, que sempre teve o Espiritual em grande apreço, “procurou na alma dos objetos as manifestações espontâneas de seus sons interiores”. Participou de movimentos xamanistas na Mongólia, também nome de um filme de Salvador Dalí.  Você me faz  pensar ainda em Christian Dunker (psicanalista amigo de Vladimir Safatle e de Maria Rita Kehl), que em dezembro de 2012 escreveu para a revista Cult um belíssimo texto sobre a Alma. Música é Alma, leva-me ao êxtase, para mim, a forma maior de conhecimento, que para muitos pode ser “irrealidade”, mas esse universo musical se insere na realidade de modo mais determinante que certos padrões aceitariam (risos).  A audição de uma música, ou a lembrança dela (que com o tempo costuma ser um tipo mais frequente de experiência, aquela audição interna), pode ser arrebatadora, e produzir essa “elevação espiritual”. Quanto ao ato de criar, é também um êxtase diferente, na região em que se processam as alquimias e sínteses que geram a forma. Ali, esta pessoa que agora fala se apresenta em proporções mais adequadas.

GBP | O que é uma canção?

MM | A forma concomitantemente rítmica, melódica, harmônica, verbal… Você foi ao ponto.  Algo que se cante entoando palavras, talvez. Ocorre que tradicionalmente a canção é o que Noel, Chico, Caymmi, os Beatles fizeram, com muita comunicabilidade a guiar outros impulsos. De um bom tempo pra cá, repetimos essa forma à exaustão, hoje coisa diluída, profunda atonia, ou então a inovamos um pouco e ela já não é  amplamente entendida. No meu caso penso que faço algumas canções, poucas, e muitos objetos sonoros não identificáveis como você uma vez bem os chamou. Sinto nelas algo que requer uma partilha bem diversa. A música me exige um tipo de letra não muito fácil de ser assimilado, e, portanto, de ser cantado facilmente por aqueles que as ouvem de imediato. Ao mesmo tempo em que são marcantes que já às primeiras audições. Bela Humana Raça, Castelo, Álven Jérra, De Tua Lembrança, Ondíssima Visão, Satã De Boi, Cadáver Delicado, Quando eu canto pro meu bem… Curioso o conjunto desses dezesseis títulos em “De Viés”, e sua pergunta me põe mais em desejos de refletir do que em condições de responder.

GBP | Pra terminar nossa conversa, uma provocação: quem é Mário Montaut?

MM |   O que me inspira, como a Manoel De Barros, é mais aquilo que ignoro, que essencialmente desconheço e desconhecerei. Por mais instigante que seja o que de nós conhecemos, é mais aterrador e divino o que ignoramos, o que pode nos dar medo e ímpeto vital, como esta nossa conversa, de dois parceiros musicais pela trama cósmica.



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GRACCHO BRAZ PEIXOTO (Brasil, 1955). Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP (2004), compositor e jornalista. É autor da canção “Noturno” (Coração Alado), em parceria com o compositor e arranjador Caio Silvio Braz. Possui mais de 80 gravações de suas músicas, por diversos intérpretes, no Brasil, Europa e EUA. Contato: gracchos@gmail.com. Página ilustrada com obras de Egon Schiele (Áustria), artista convidado desta edição de ARC.






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