segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

MAX HARRIS | Comentário sobre a poesia australiana


O princípio de qualquer poesia ou pulsão poética válida na Austrália data deste século. Anteriormente, o processo de urbanização que resultou do declínio dos dias da corrida do ouro, com seu influxo populacional gerou uma atmosfera de “clube” literário nas cidades do Leste da Austrália. As “baladas sertanejas” (“bush-balladry”, no original) desse período não eram, de forma alguma, reação espontânea e dramática ao meio ambiente selvagem do sertão australiano. Pelo contrário, eram nostálgicas e pelo tom, senão pela temática, parte integrante do romantismo esfrangalhado dos tempos vitorianos. Assim como muitas canções sobre cowboys são, sem dúvida, obra de compositores comerciais de Nova York, também esse florescer das baladas “sertanejas” era de tom europeu e artificial em sua temática.
O país só produziu poesia de primeira categoria quando um escritor australiano retomou um romantismo espontâneo e reconheceu as influências técnicas do corpo contemporâneo do método poético europeu. Era o saudoso Christopher Brennan, que, acima de tudo, foi profundamente influenciado em sua imagética e visão pelos simbolistas franceses.
Este pequeno fato da história literária é enormemente relevante para qualquer quadro que se queira pintar da poesia australiana contemporânea. Isso porque a situação na Austrália exibe contornos bastante bem definidos de três escolas poéticas distintas, operando com um grau de intensidade jamais visto nesta terra tão notavelmente inculto e apoético. São elas a dos poetas nacionalistas, a dos poetas “Reportage” e a dos “Pinguins Irados” (“Angry Penguins”), ou modernista. Os poetas nacionalistas proveem organicamente do romantismo “baladeiro sertanejo”, com a diferença de que cada um dos diversos grupos agita sua bandeira nacionalista política com diferentes graus de fervor. São escritores altamente urbanizados, organizados em clubes ou assemelhados, que produzem um romantismo decadente que se assemelha à nostalgia pela mata australiana e pelos aborígenes, por um lado, e, por outro, encara com desgosto o arcabouço social capitalista e os valores urbanos. (Valores humanos, como o amor, enquadram-se no padrão intelectual de alguma maneira subsidiária, mas não surgem como material poético). Uma dessas escolas cercou o Movimento Australia-First (o equivalente local ao seu par americano, o falar irlandês). Ela incluía, entre outros, escritores Nacionalistas Extremistas como Ian Mudie, Rex Ingamells e outros membros do “Jindyworobak Club.” Em Queensland, um movimento mais forte e mais válido surgiu atrás de Clem Christesen e o órgão do grupo, o “Meanjin Papers,” é um jornal forte, com um programa cultural ostensivamente liberal. Os valores de seus escritores são mais verdadeiros e menos decadentes do que os de “atavismos” como Rex Ingamells, ou Flexmore Hudson, editor de “Poetry”, mas ainda se pode perceber uma perspectiva irreal da função da poesia, assim como o pior de todos os erros, a morosidade linguística. Não produziram poetas poderosos, nem comoventes.
A escola “Reportage School” é a menos definida dentre as forças atuais da poesia australiana. Opera, quero crer, principalmente numa insularidade geográfica de Sydney e se reflete no “Southerly”, o jornal da English Association. Seus escritores guardam a mesma relação com os “Angry Penguins” que os colaboradores da “Chicago Poetry” com a escola inglesa de Treece e Tambimuttu. Não há em seus escritos nada da atual preocupação com o personalismo, reflexões sociológicas os permeiam, e percebe-se um vigoroso esforço para incutir reação personalizada e iluminadora sobre os campos da experiência social. Penso que os dois poetas americanos aqui presentes, Karl Shapiro e Harry Roskolenko, compartilham desse idioma, mas sua reportagem é bem sucedida ao emergir do braseiro de uma linguagem fortemente pessoal, em vez da visão pessoal. Na Austrália, os dois poetas mais fortes do tipo são Muir Holburn e Elisabeth Lambert. Em um poema de fôlego e bem sucedido “Courthouse,” Elisabeth Lambert transmite sentimento sociológico intenso e válido; o movimento e a fluidez do humor são, a um só tempo, sinuosos e sutis; e, ainda assim, procura-se em vão por uma imagem clara, original, iluminadora; não se encontra linguagem memorável. O todo é poesia significante vigorosa e quase bem sucedida, apesar da linguagem. As forças da imaginação não mais dominam por meio da linguagem e, com esses autores, retornamos à visão de Auden, mas em uma versão empobrecida e disciplinada.




O romantismo é obra dos poetas da escola modernista, ou “Angry Penguins”. Falo, aqui, não como crítico, mas como expositor e defensor. Espero que, nesta edição, vejam exemplos do trabalho de Ern Malley, do saudoso D. B. Kerr e de Geoffrey Dutton. A escola australiana moderna tem origens bastante autônomas e, portanto, são notáveis seu paralelismo com os, e suas distinções em relação aos, autores ingleses mais jovens, os apocalipsistas e os personalistas. O movimento em direção a uma poesia romântica pessoal e vigorosa estava bem encaminhado quando a poesia de crítica social de Auden atingiu seu auge. Estava bem adiantada uma formulação intelectual da função do mito.
O poeta Ern Malley veio a este país depois da última guerra, junto com a mãe e a irmã. Aqui, cresceu anonimamente. Aos 14 anos abandonou a escola e tornou-se mecânico em uma oficina em Taverner’s Hill, Sydney. Aos 17 anos, deixou abruptamente o emprego e foi para Melbourne, e pouco se sabe de suas atividades ali. Viveu nas favelas de Melbourne, ganhando algumas libras como vendedor de seguros e relojoeiro. Até esse ponto, não se sabe se demonstrou grande interesse em literatura ou cultura. Quando eclodiu a guerra destes dias, foi convocado para um exame militar que revelou que sofria de doença de Graves. Uma operação o teria curado, mas o jovem solitário e anônimo recusou qualquer tratamento.
A doença de Graves é uma disfunção da tiroide, uma das piores e mais debilitantes doenças que há. Seu efeito é fazer a máquina humana operar cada vez mais rapidamente, até explodir e parar, por assim dizer. Seus efeitos podem ser adiados com doses de iodo em quantidades crescentes, até que cesse a eficácia. Malley faleceu em maio de 1943. Durante seus meses finais, temos uma descrição do caos que a doença infligiu sobre sua personalidade, da tensão diabólica, a irritabilidade nervosa do aflito tudo consome. A desintegração do indivíduo é quase certa. É à luz desses fatos e da terrível natureza de sua morte que o experimento de Malley com a morte pode ser examinado. Ciente de que encarava a morte quase certa antes de seu 25º aniversário, Malley debruçou-se sobre seu experimento. Ao longo de três ou quatro anos, acumulou um corpo diverso, mas maravilhosamente integrado, de erudição, de tal sorte que sua poesia é dotada de impressionantes riqueza e amplitude de vocabulário. Abandonou quase tudo que pudesse enfraquecer sua luta para produzir uma interpretação fria e desapaixonada do conflito entre sua mente e sua visão e do prospecto da morte imediata. Deixou Melbourne e uma jovem por quem estava apaixonado. Ao morrer, deixou para trás um manuscrito de 16 poemas intitulado “The Darkening Ecliptic”, com o seguinte subtítulo:

“Não fale de assuntos secretos em um campo repleto de pequenas colinas...”
—Antigo Provérbio.

Os dezesseis poemas são predominantemente autobiográficos. Trazem um estranho desligamento e, mesmo naqueles escritos cerca de um mês antes da morte, um tipo de humor pacato, como quando o autor fala do

“Direito inalienável do homem de estar triste no próprio funeral.”

Os poemas apresentam uma unidade formal e técnica que refletem a atitude do autor de que um poema é um ato de existência completo e autônomo. Sua imagética forte e definida mostra um senso infalível para a linguagem. Ao ler a série como uma experiência singular, o leitor adquire uma compreensão mais ampla de sua importância e sua meta. São principalmente um ato, um desejo de visão, e por meio da própria pureza dessa visão da relação da mente com a morte, sugere-se ao leitor o conflito titânico subjacente. Está tudo ali, e de forma tão criativa que o incomunicável também se comunica. O experimento do autor com a morte é também encarado como um experimento com a verdade.
Donald Bevis Kerr, que foi morto na Nova Guiné em 1942, foi, creio, o primeiro poeta notável do movimento moderno. Um de seus poemas foi incluído aqui. A incidência lírica de determinadas experiências que Kerr utiliza passa por uma ampliação da implicação através de sua filosofia amarga e elegíaca. Todos os valores dos sentidos se realizam em termos trágicos ao longo do tempo e na memória. A unidade que é o indivíduo como um todo preda aquilo que Blake chamaria de “mínimos detalhes” (“minute particular”). Essa atitude surge com vigor em um poema que encontrei entre seus escritos, intitulado:

EPICENTRUM

The silent thunder which applauds
The daffodils destroys them,
The humor kindled in the sea
For death goes breaking later.

So is the rotten water harbor of the lily,
And the body a delight for the raven,
And apprehension born in rented poverty,
Which sees the purple bones a beggar shot.

Here is that adulteration we seldom fear,
The check in the circle, the urgent arc.
Yet less than that comfortable eunuch, freedom,
We devour beauty when most we need it.
EPICENTRUM

O trovão silente que aplaude
O narciso que os destrói,
O humor gerado no mar
Que depois a morte quebra.

Assim a água podre é o berço do lírio,
E o corpo o jantar do corvo,
E a apreensão nascida da pobreza de aluguel,
Que vê os ossos roxos que um mendigo lançou.

Eis a adulteração que raro tememos,
A quebra do círculo, o arco urgente.
E ainda menos que o amável eunuco, a liberdade,
Devoramos a beleza quando mais precisamos dela.

Kerr enxerga símbolos no mundo real símbolos que representam suas trágicas transmutações internas. Com isso, escreveu sua obra maior, um dos melhores poemas deste país “Oration for Austrália.” Nele, toda a tipografia desta terra torna-se uma alcunha diversa, que tudo abrange, para a estrutura nervosa e psíquica do próprio Kerr.
O último poeta que desejo mencionar é Geoffrey Dutton. Sua linguagem é mais forte, mais apaixonada e mais febril do que a de qualquer poeta contemporâneo que eu conheça. Ele ainda não é capaz do nível sustentado de iluminação que denota controle sobre a própria linguagem. Às vezes lhe escapa a fortuna com a linguagem, mas ele ataca as linhas complexas de sua visão com bravura linguística. E mais, tem algo muito raro entre os poetas, o brilho técnico. Seus ritmos e sua entonação pirotécnicos são muito mais sadios do que a competência domesticada de muitos de seus pares australianos.
Finalmente, gostaria de acrescentar que a virilidade e a independência do movimento poético contemporâneo na Austrália proporciona um nível de realização, uma força, no nível do que hoje se escreve internacionalmente. Ficarei satisfeito em ver uma ligação mais forte entre os mundos culturais dos dois países. Nesta terra, não há acesso a jornais de poesia americanos.



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MAX HARRIS (Austrália, 1921-1995). Poeta, ensaísta, editor e agitador cultural, responsável pela difusão do Surrealismo na Austrália. Artigo originalmente publicado na revista Voices (Vermont, EUA), Número 118, Verão de 1944. Tradução de Allan Vidigal. Página ilustrada con obras de los niños mágicos del Arte Amigo (Costa Rica), artistas invitados de esta edición de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 23 | Janeiro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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