segunda-feira, 5 de junho de 2017

EMMANUEL NOGUEIRA | A necessidade da poesia


Há uma sintomática impressão que há mais poetas do que leitores. Não pelo fato dos poetas continuarem desempregados, sem importância para uma sociedade que cultua outros valores, mas, e principalmente, porque os leitores começam a desaparecer. Uma frase rebuscada, uma palavra que não se escute na televisão e já não há mais leitores, por sua vez, a poesia navega numa longa estiagem de pouca criatividade ou descoberta. Mas quem se preocupa com isso? Quem se deteria a ler uma matéria sobre poesia se há os seios de Carla Perez e da Xuxa para se pensar? É melhor se deleitar na ode dos simulacros do que na aridez e tragédia dos poetas.
Talvez isso justifique que raros poetas não permitam a completa extinção da espécie. Floriano Martins é um desses raros escultores da palavra. Um poeta atento e ético, apegado desde cedo à leitura; a uma descoberta do mundo pela formalidade e criação da linguagem. Em seu novo livro Alma em chamas, uma obra que levou dez anos para ser construída, Floriano revela o zelo com a linguagem, comportamento típico de um diletante profissional.
A poesia não pode ser considerada sua morada, pois o poeta vive de aventura, de caminhadas por mundos recônditos e íntimos. Alma em chamas revela uma aventura em reconstruir a visceralidade da escrita poética, fugindo dos temas conjunturais e penetrando em problemas da linguagem e do homem moderno.
E se você leitor conseguiu atravessar esses íngremes parágrafos, dê chance a você mesmo, leia algo desinteressante como poesia, como a entrevista que vem logo a seguir. Assim, quem sabe, a gente passa a deixar de lado tanta coisa que interessa, mas que não tem a menor importância. [EN]

EN Você teve desde cedo o contato com os livros e em seguida o distanciamento da sua geração. Para o exercício do poeta é preciso esse isolamento do senso comum?

FM Não sei se é necessário. Pode haver condições benéficas ou não. Tudo depende muito de que circunstâncias vive a geração. Às vezes, se tem a sorte de viver numa geração riquíssima e isso pode lhe trazer muitos benefícios, mas também se tem verdadeiros empastelamentos, momentos de transição, então não há muito a oferecer. De qualquer forma as duas coisas são importantes: o distanciamento teve uma importância pelo fato de ter permitido ler muitos livros e a minha geração não tinha muito o que oferecer. A minha geração é dos anos 70, no qual vivíamos toda aquela celeuma em torno da geração mimeógrafo, que é na verdade um brutal retrocesso. Embora muitos críticos tenham ressaltado aquilo como um ponto a mais, um momento de salto na literatura, na verdade tudo ficou empastelado. Passados mais de vinte anos, percebe-se que não ficou nada daquela geração. Sabe-se que alguns nomes funcionam como falsos mitos, mas em termos de obra literária não há nada de substancial originado por aquela geração.

EN No seu caso o distanciamento e a leitura demarcaram uma trajetória importante para o aparecimento do Floriano poeta. É possível ter uma ideia de que é feito a textura da poesia. Ou cada poeta tem sua forma, seus mistérios?

FM A poesia é tão diáfana, que talvez a sua substância venha exatamente dessa diafanidade, quase que invisível, ininteligível, intocável. Essa é a sua grande substância. Mas é evidente que vem também de leituras, vem de diálogos com o mundo, de experiências, mas nada que possa pensar como sendo uma coisa sobre a outra.

EN No seu livro, Alma em chamas, qual a substância que o constitui?

FM O Alma em chamas reúne todo o desdobramento do fazer poético que aprendi durante esses últimos anos. Evidentemente essa obra não está aí no sentido de encerrar círculo ou ser testamento poético ou coisa do gênero. Nesse livro eu jogo todo o manancial de experiências que colhi durante esses anos, daí o fato de ser um livro não só extenso, mas complexo na sua tessitura. Apresenta-se como cinco livros reunidos, mas pode ser lido como um poema único, dividido em cinco capítulos e cada um abrangendo uma circunstância diferente. Mesmo porque, por traz desses poemas existem sempre uma preocupação em recuperar a linguagem poética no sentido de ligação com uma linguagem lírica e uma linguagem trágica, o que, portanto, nos remete a uma recuperação da linguagem épica.

EN Quando você atesta que há complexidade inerente na tessitura desse livro você está se referindo basicamente a que?

FM Me refiro àquelas duas coisas indissociáveis na poesia: a forma e o conteúdo. Em “Alma em Chamas” há uma complexidade formal, no sentido que o livro trabalha, em um mesmo capítulo, uma série de ousadias formais. Na mesma composição de capítulo, você tem décima, terceto, soneto, prosa poética mesclada a diálogos; tem a presença de personagens; trechos confessionais; trechos líricos; trechos de abordagens trágicas; trechos que lembram peças de teatro. Aliado a isso, encontra-se também uma complexidade conteudística, pois, não há nenhuma abordagem circunstancial sobre determinando assunto e sim todo um encadeamento de situações que querem discutir a dimensão humana.

EN O tempo ajudou na arquitetura dessa complexidade, afinal, foram dez anos mexendo, aprimorando, o fazer poético para que surgisse Alma em chamas?

FM São acumulações de experiências, mas o livro não é uma coletânea de textos soltos, escritos ao longo dos anos, como é, por exemplo, a obra “Crisantempo”, do Haroldo de Campos. Na verdade foram poemas pensados numa trajetória. Os três mais antigos foram publicados porque surgiram circunstâncias editoriais que permitiram publicações em livretos individuais [que são os três últimos trechos do livro], mas eles não foram pensados isoladamente, para posteriormente constituir uma coletânea, uma miscelânea, que depois de montada você pode desvelar uma poética. Pode-se perguntar: “por que tanto tempo?” Foi o necessário para se chegar ao término dessa aventura poética.

EN Você faz uma crítica veemente à poesia brasileira, chegando a afirmar que desaprendemos a fazer poesia? Você se refere a uma época específica ou é uma crítica generalizada?

FM Abranger a literatura como um todo seria demasiado extenso. Um dia estava lendo uma resenha do jornalista Nilton Santos, da Gazeta Mercantil, na qual ele comenta nove romances que tinham sido publicados nos últimos meses. A razão de juntar todos os livros numa única resenha, dizia o jornalista, é porque nenhum deles mereceria uma resenha isolada. Existe tamanha fragilidade na tessitura do romance que se faz hoje no Brasil que chega a preocupar os críticos e até jornalistas.

EN Há alguma explicação para a ausência de criação na linguagem poética?

FM Grosso modo, não nascem bons poetas a cada dia, nós ficamos muito aflitos, principalmente num final de século que somos tomados por novas formas de tecnologia. Nos afligimos diante da história como se fôssemos uma parte isolada da história, quando somos um todo. A história é um tecido único. Assim é natural que tenhamos períodos de baixa, afinal, não surgiram poetas como Eliot, Pound, Pessoa, aos montes. Vivemos um período de baixa e não se sabe por quanto tempo isso dura.

EN Nessa sociedade que vive sob a égide do sucesso, parece que o poeta não está mais desempregado, como em outros períodos, mas em via de extinção?

FM Vendo a produção poética pelo ponto de vista da necessidade, diria que o poeta vive um feliz ostracismo e nunca como uma condenação. Evidentemente que a poesia é absolutamente desnecessária. Só não sei até que ponto a necessidade pode ser situada como algo positivo e a desnecessidade como um valor negativo. Acho que o básico da discussão é saber até que ponto a necessidade é realmente o que interessa. O poeta terá sempre que ser um arrimo de família, pela simples razão de que poeta, a partir da descida em sua própria intimidade, sai estabelecendo elos com a intimidade de toda a humanidade e é daí que ele pinça as coisas trágicas. Enfim, as coisas que teriam que ser corrigidas. O poeta de volta da sua viagem não traz nenhuma boa notícia, por isso nunca é bem recebido.

EN Falemos de sua aventura. De um criador que se define numa aventura estoica, na qual a ambição é o reconhecimento de si mesmo. Qual o lugar do leitor nessa aventura.

FM Cabe ao leitor encontrar um lugar no interior da obra. Aqui voltamos àquela velha questão: a título de que e para quem se escreve? Em função do leitor, da mídia, de uma circunstância editorial? O que orienta essa escrita? Acredito que se escreve em função de duas coisas: da vivência e da escrita.

EN Tem-se então que acrescentar aí um dado ético seguido de estético.

FM O poeta tem que ter um compromisso declarado com a linguagem. O poeta não pode usar a poesia em benefício de outra situação. Se você pegar qualquer escrita de um grande poeta, observa-se um diálogo com o mundo, expressado e determinado a partir de uma linguagem, na qual se pode observar todas essas situações reunidas com muita coesão, sem preocupação de natureza moralista, esteticista, as coisas funcionam como um todo.



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Entrevista concedida a Emmanuel Nogueira. Originalmente publicada no Caderno 3, do Diário do Nordeste. Fortaleza, 21/11/1998. EMMANUEL NOGUEIRA (Brasil). Jornalista do Diário do Nordeste.
Colagens reproduzidas nesta página:
1999 O pecado refeito
2003 Abuso metafísico
2005 Cinzas minuciosas
2005 De volta à estrada

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Organização a cargo de Márcio Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado | Floriano Martins
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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