quinta-feira, 10 de agosto de 2017

JOSY TEIXEIRA | Era uma vez Belchior e seu tempo


1. O CASO BELCHIOR E ELIS: A RELAÇÃO SIMBIÓTICA ENTRE O COMPOSITOR E A INTÉRPRETE | Em 17 de março de 2015, aquela que é considerada a maior cantora do Brasil, Elis Regina, teria completado 70 anos de vida. Em homenagem à data e em memória à carreira da artista, falecida em 1982, ocorreu uma série de lançamentos. Dentre eles, a biografia “Elis Regina – Nada será como antes”, assinada por Julio Maria; o primeiro site oficial, que reúne informações biográficas e os trabalhos feitos pela cantora; e um longa-metragem com direção de Hugo Prata, que aborda a segunda metade da vida da artista, a partir da chegada ao Rio de Janeiro. Para comemorar com música a efeméride, dois shows em São Paulo reuniram parceiros da cantora, como Fagner, João Bosco, Gilberto Gil, Ivan Lins e Renato Teixeira.

Ao ver essas atividades em torno da comemoração dos 70 anos de nascimento de Elis, eu não pude deixar de pensar justamente na relação entre a intérprete e os compositores lançados e gravados por ela. É sabido que, na história da música brasileira, a própria cantora saía em busca dos novos e desconhecidos compositores e “garimpava” o melhor de suas produções, como já relataram muitos desses “escolhidos”.

Agora, com a comemoração dos 70 anos de Belchior, penso no encontro entre o artista cearense e a cantora Elis.
Segundo o próprio compositor, depois de ter gravado em 1972 a canção “Mucuripe”, foi Elis quem o convidou para ir à casa dela, ocasião em que Belchior a apresentou “simplesmente” a totalidade de sua obra até então. Com o ouvido especial que tinha, naquela noite dos primeiros anos da década de 70, Elis escolheu para gravar as canções “Como nossos pais” e “Velha roupa colorida”, que compuseram o repertório do show e do disco “Falso brilhante”, de 1975 e 1976, respectivamente. No contexto do imenso sucesso obtido por “Falso brilhante”, essas duas canções também foram gravadas por Belchior exatamente no ano de 1976, naquele que se tornaria a obra-prima de Belchior, tanto junto à crítica, quanto no que se refere à difusão junto ao público, o disco “Alucinação”.
Essa simultaneidade de ações é bastante significativa, pois ao mesmo tempo em que o nome Belchior se apresentava na música brasileira como “compositor” de Elis Regina, ele também instituía de forma paralela sua carreira de cantor e de compositor, iniciada em disco dois anos antes com o LP “A palo seco”, que não teve grande repercussão com o público, talvez por seu viés extremamente literário e concretista.
É óbvio que Belchior é e será extremamente grato à Elis pela difusão que a cantora deu à sua obra. Paradoxalmente, a força de Elis na interpretação de “Como nossos pais” foi tamanha, que deu origem ao seguinte fato: Elis impregnou de tal forma a canção de Belchior com uma marca autoral dela, como intérprete, que a autoria do compositor Belchior nessa canção ficou de certa forma escondida se considerarmos o conhecimento pelo grande público da música brasileira.
Na área musical, o que se constata, no que diz respeito à relação entre a figura do intérprete e a do compositor, é que desde o instante em que a canção é apresentada ao público, independentemente do “fracasso” ou do “sucesso” que a canção terá ao longo dos anos, é principalmente o nome do cantor que ficará e restará associado àquela música, por mais que o texto verbal e musical “canção” seja uma forma que para existir necessite do trabalho de muitos agentes (compositor, intérprete, músicos etc.). E é exatamente por isso que uma grande parte do público ouvinte acredita que a canção “Como nossos pais” é “a canção da Elis Regina”, sem se lembrar do nome do verdadeiro autor da canção, Belchior. Se a Internet simboliza o apagamento da autoria de modo geral, o fenômeno também atinge a música brasileira. Qualquer pesquisa rápida na rede mostrará, equivocadamente (?), que “Como nossos pais” é uma música de Elis Regina.
Mas para além dessa ocultação da autoria, bastante comum na música brasileira, com relação à parceria entre o compositor Belchior e a intérprete Elis, coloco as seguintes questões:

1) Até que ponto a cantora consagrada deu voz ao desconhecido compositor?
2) Até que ponto o desconhecido compositor alimentou a voz da cantora consagrada?

A interação entre os papéis de Elis e de Belchior só pode ser entendida por meio de uma simbiose na qual e pela qual essas duas instâncias (intérprete e compositor) vivem juntas e imbricadas e se beneficiam mutuamente. Nesse sentido, o reconhecimento de Belchior à Elis é plenamente compreensível, pois de fato a dicção singular da cantora deu a Belchior “a oportunidade e o direito de se manifestar, ou de continuar se manifestando, enquanto autor” na música brasileira.
Mas por outro lado, Belchior também deu à Elis “a chance de aquela cantora, e nenhuma outra, poder cantar e mostrar primeiro um universo igualmente singular”, qual seja, um mundo até então novo na música do País, que só pode ser apreendido pelo conjunto da obra de Belchior, autor de mais de 300 composições lançadas em 11 discos autorais e inúmeros outros trabalhos. E Elis Regina sabia disso. Ao escolher “Como nossos pais” (e também “Velha roupa colorida” e “Mucuripe”), Elis percebeu toda a força que aquela canção possuía, potência essa que a interpretação da cantora só veio a intensificar, gerando a partir daí uma das maiores “arquicanções” da música brasileira de todos os tempos.
Assim, não foi novidade nenhuma a divulgação pelo Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) em 2015 de um ranking mostrando as canções interpretadas por Elis mais tocadas nos últimos anos, no qual “Como nossos pais” aparece como a primeira da lista.
Elis Regina soube disso desde que ouviu a canção pela primeira vez. Belchior sabia disso desde que a compôs.

2. SE VOCÊ VIER ME PERGUNTAR POR ONDE ANDA “O BELCHIOR”…  “– Olá, professora, alguma notícia do Belchior?”. Essa é a pergunta que ouço desde a divulgação pela grande mídia do “desaparecimento” de Belchior. Em 23 de agosto de 2009, o Programa semanal “Fantástico” contou a todo o Brasil o que as pessoas mais próximas a Belchior já sabiam havia alguns anos. “Belchior tinha sumido!”.
Depois da matéria da Globo, procuram-me frequentemente, como pesquisadora do cancioneiro do artista, querendo saber por onde anda Belchior. São “tête-à-têtes”, telefonemas e e-mails de diferentes pessoas de várias partes do Brasil e até de outros países: jornalistas e radialistas dos meios mais prestigiados aos menos difundidos, fãs, curiosos e interessados em geral pela obra de Belchior.
Considerando o seu afastamento social, é plenamente compreensível esse reiterado interesse sobre o paradeiro ou sobre o percurso atual de um dos artistas mais importantes da música brasileira.
Pensando em como responder à indagação de “onde está Belchior”, reflito aqui sobre “quem é Belchior”, entendendo a “identidade” do cantor e compositor cearense numa acepção bem geral encontrada em Houaiss, como o “conjunto de características que distinguem uma pessoa e por meio das quais é possível individualizá-la”.
A compreensão daquilo que intitulamos “o Belchior” pode ser visualizada pela relação entre três papéis (segundo nos ensina o teórico francês Dominique Maingueneau em “O discurso literário” de 2006, livro que descreve as diversas instâncias constituintes da figura do autor).
O primeiro deles refere-se ao “compositor” Belchior enquanto sujeito que definiu uma trajetória profissional na música brasileira; aquele que compôs uma das canções mais emblemáticas da MPB, como é o caso de “Como nossos pais”;
O segundo papel refere-se aos diversos “eus personagens” presentes no interior dos textos das canções de Belchior; todos aqueles que representam por exemplo a trajetória de milhares de nordestinos que deixaram seu lugar natal em busca de melhores condições na cidade grande, o que encontramos em “Fotografia 3x4” e “Tudo outra vez”;
O último refere-se à “pessoa” Belchior, enquanto ser dotado de um estado civil e de uma vida privada, ou seja, aquele jovem que abandonou a faculdade de Medicina na Universidade Federal do Ceará para seguir a carreira de músico no eixo Rio-São Paulo.
Esses 3 elementos que formam “o Belchior” não podem ser isolados, pois cada um deles está atravessado pelos outros. Isso implica que o ato de compor uma canção só é possível porque um dado indivíduo (“a pessoa Belchior”) se posiciona como fazedor de canções (“o compositor Belchior”) e para tanto se vale da vida de “seus personagens”.
A partir dessa classificação, pode-se considerar então que tanto “o compositor Belchior”, quanto os seus “eus personagens” permanecem presentes cada vez que um de nós canta ou ouve qualquer uma das mais de 100 músicas gravadas nos 11 discos de carreira de Belchior, de “A palo seco” a “Baihuno”. Afinal, será impossível fazer desaparecer da história da música brasileira o percurso fundado pelo artista que ficou conhecido no Brasil inteiro como um dos principais integrantes do Pessoal do Ceará, junto com Fagner e Ednardo, bem como não há como extinguir de nossas vidas sujeitos que tanto nos identificam, como “o rapaz latino-americano sem dinheiro no banco” ou “aquele que tem medo de avião”.
Se Belchior continua presente enquanto compositor e em cada um dos personagens criados em suas músicas, nesses dois sentidos “o Belchior” nunca desapareceu. No entanto, nós continuamos querendo saber por onde anda aquele cantor de vasto bigode, que cantava de forma fanhosa e que dançava nos palcos; onde está aquele que tinha a mesma energia ao cantar para poucos ouvintes ou para milhares.
Isso significa que, na constituição do “todo Belchior”, falta um forte elemento, que se refere ao homem real, de carne e osso, à pessoa de Belchior, ao Bel: aquele que descansava em uma pousada do Uruguai e que caminhava pelas ruas de Porto Alegre; aquele que ria gostosamente e que falava apaixonadamente; aquele que contava piadas, que falava várias línguas e que sabia tudo de literatura universal; aquele que adorava um bom vinho e que não dispensava uma rúcula com tomate seco; aquele que era viciado em quadros e dominava todos os assuntos; aquele que…
É desse Belchior também que muitos sentem falta. E é exatamente a ausência desse Belchior que faz com que seus admiradores (os íntimos e os mais longínquos) sintam um enorme vazio, mesmo que suas canções possam estar e continuar sempre presentes.
Por isso, ecoando o sentimento de todos aqueles que me perguntam regularmente se tenho novidades sobre “o Belchior” e que gritam em uníssono “Volta, Bel!”, eu digo:
– Sim, Belchior, nós nos importamos! Todos estão esperando “o fim do termo saudade como um charme brasileiro de alguém sozinho a cismar”.
Enquanto Belchior silencia, cada um dos seus admiradores e amigos está cantando: “Agora eu quero tudo. Tudo outra vez…”

3. “NOTÍCIA DE TERRA CIVILIZADA” – UMA CARTA | Oi, Belchior, hoje, 26 de outubro de 2016, dia do teu aniversário de 70 anos, te escrevo para te parabenizar. Como vai a vida? Espero que estejas bem!
Já que tu andas um pouco distante, aproveito para te contar as novidades.
Nossa, em Fortaleza muita coisa tem acontecido desde aquele show da Concha Acústica e da exposição do Aldemir Martins no Museu da UFC. Foram lindos demais aqueles eventos, lembras? E o pessoal do Ceará está com muitas saudades. Para amenizar a falta que tu fazes por lá, a nova (e a anterior) geração da música cearense tem te homenageado muito, como é o caso de Jord Guedes, Lidia Maria, da Banda Renegados e de tantos outros artistas, que têm feito trabalhos cantando tuas composições. Os ídolos dessa turma sempre serão os mesmos: tu, Fagner, Ednardo, Rodger, Téti… Tu terias adorado o tributo a ti, Fagner e Ednardo que a Orquestra Filarmônica do Ceará realizou em 6 de outubro do ano passado no Theatro José de Alencar, no Projeto “Grandes Clássicos da MPB”.
Já começando a falar do lado profissional, depois de meu mestrado na UFC, que tu já conheces, resolvi continuar a pesquisa sobre tua obra, com um projeto mais denso. E seguindo o percurso que tu mesmo fizeste, decidi partir do Ceará para São Paulo, dessa vez num pau-de-arara moderno e sem descida forçada em Salvador, como aconteceu contigo (risos). Mas nada de conhaque no avião. E foi assim que, “pelas ruas de São Paulo, por entre os carros”, andei e passeei, enquanto escrevia a tese do doutorado na Universidade de São Paulo, cuja proposta foi analisar aquelas polêmicas entre a tua obra, Chico, Gil, Caetano, Roberto, Raul etc. Certamente tu lembras bem a agitação que causaste naqueles primeiros anos entre Rio e Sampa, não é mesmo? Quando tu dizias que estava “chegando com teu trabalho, dialeticamente”.
A tese ficou imensa, Bel. 690 páginas, que, apesar de enorme, não chega nem perto da complexidade do teu cancioneiro. Queria te contar que, na defesa do doutorado, a obra “do Belchior” (a tua) foi destacada pelos professores da USP, a maior universidade do Brasil, como uma das mais importantes na MPB. (Lembrei aquele gracejo que tu mesmo fazias, de que é um dos maiores nomes da MPB, pois, claro, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernnandes – risos). Eles consideraram o trabalho como de grande alcance dentro das Ciências Humanas, unindo pesquisas de domínio verbal e não verbal e indicaram para a publicação. (Espero que tu apareças para o lançamento do livro!). E fiz questão de dizer, na defesa, te parafraseando, que a tese era a de uma nordestina na cidade grande. Ela está dedicada a ti, claro.
Falando da “terra da garoa”, o pessoal de lá mandou lembranças. Tu soubeste que a Banda Radar reuniu-se no dia 20 de outubro de 2013, no Centro Cultural São Paulo, para o concerto “Banda Radar canta Belchior”? Tava todo mundo lá, Bel. O Sérgio Zurawski, o João Mourão, o Monsieur Parron e o Roger Carrer. Foi muito bom encontrar os teus amigos, o Ednardo Nunes e o Jorge Mello e muitos outros. E também o jornalista Silvio Atanes, teu grande admirador.
Por falar em fã, o poeta Heldemarcio Ferreira também sempre pergunta por ti. Ah, a Mona Gadelha e o Tavito, que encontrei dias depois no Conjunto Nacional, também mandaram um abração pra ti. E foi muito interessante ver e ouvir tuas canções modernamente tocadas pelos DJs da festa “Calefação Tropicaos”, no dia 18 de abril de 2014. Eles fizeram uma brincadeira e deram descontos para o público que fosse de bigode, “nível Belchior” (risos). Teve ainda o espetáculo “Achamos Belchior”, que aconteceu em São Paulo em maio de 2010, comandado por João Cabral e Banda.
Já ia esquecendo que mais recentemente teve o show “Por onde anda Belchior?”, realizado em 23 de janeiro de 2014 em Recife por Samuel Luna e a Banda caruaruense Nove Luas. Como vês, Bel, todo o Brasil, de uma ponta a outra, quer se aproximar de ti, cantando tua obra. Foi por isso que fizeram o CD “Belchior Blues”, em 2012, de releituras das tuas canções. Quando ouvi o disco, fiquei pensando que tu dirias que “um tango argentino é tão bom quanto o blues”. Ah, em 2013, a querida Amelinha abriu o show “Janelas do Brasil”, no Sesc Pinheiros, com a música “Galos, noites e quintais”. E ao final, ela fez um pedido de “Volta, Bel”.
E ainda falando dos artistas que cantam tuas músicas, que bonita a interpretação da Ana Carolina para “Coração selvagem”! Mais uma mulher na tua vida e obra, somando-se à Elis Regina, Vanusa, Vânia Bastos, Margareth Menezes, Lúcia Menezes, Márcia Castro, Zélia Duncan, Maria Rita e Sandy.
Como tu mesmo e Newton sabem, “o que pesa no Norte, cai no Sul, grande cidade…”. E foi assim que, de Sampa, eu fui morar no Pampa. De lá, o jornalista Juarez Fonseca também sente saudades. É verdade que tu estás morando em POA? Tu deveria ter assistido o show que os Latinoamericanos fizeram no Opinião em junho passado cantando tuas canções. Sim, no mesmo palco que nosso Dylan tocou em 1998.
Como tu não tem aparecido muito, ainda bem que os gaúchos podem sempre te escutar na FM Cultura de Porto Alegre, rádio da qual sou apresentadora agora. Lembras daqueles dias de Rádio Universitária, em Fortaleza? Tempo bom, né? O Nelson Augusto continua com o belo trabalho de divulgação da boa música aos cearenses.
Falando dos teus 70 anos, estamos fazendo juntos este ano na Web Rádio Nelsons a análise de todos os teus discos autorais, de “A palo seco” a “Baihuno”. Tem programa todo dia 26, se puderes ouvir!
Bel, tu sabias que estive no Uruguai? Atravessei a ponte de Jaguarão. Uma emoção, não é? Tu também passaste por lá ou foste pelo Chuí? Em Montevidéu, ouvi muito o Carrero, o Larbanois, a Laura Canoura e um monte de artistas maravilhosos. Entendi porque tu gostas tanto daquela terra, de gente querida, boa comida e vinhos fantásticos. O poeta Elder Silva também perguntou por ti. E me mostrou uma entrevista tua memorável, dada a um amigo de vocês em comum. Tu falas muito bem espanhol, ein!
Tenho de te contar ainda outra novidade boa, Bel: “Que há tempo, muito tempo, que eu estou longe de casa”. Nos últimos anos, tenho passado temporadas de estudos e de trabalho na França. É, na França de “Tudo outra vez”!! Há alguns anos vim para Paris para fazer uma parte do doutorado, na Sorbonne e na Paris XII. E atualmente estou fazendo o pós-doutorado, de novo na Cidade Luz. Acreditas que vi os teus ídolos McCartney e Dylan pessoalmente? Depois te conto os detalhes. Agorinha mesmo, te escrevo a alguns passos da casa de George Brassens. Estou morando no XV arrondissement de Paris, bairro cheio de memórias desse grande cantautor francês, que viveu no número 42 da Rue Santos Dumont (sim, o nosso conterrâneo), e que tem tantas semelhanças contigo.
Sobre meu trabalho aqui, gostaria que soubesses que a obra “do Belchior”, junto com a dos maiores escritores e artistas do mundo e de todos os tempos, agora é estudada na Europa, nas universidades, e apresentada em instituições culturais. Aqui, uso “minha fala nordestina para falar o francês”. E quero que saibas que tem muitos admiradores, tanto na Terra da Luz, como na Cidade Luz.
Por enquanto é isso, Bel. Sei que, na era do twitter, a carta ficou um pouco grande, mas é que depois de tanto tempo, né…
Aproveita teu aniversário! Muita saúde! Não vejo a hora de ler a tradução da “Divina Comédia”!
E vê se não somes!
Dessas “ilhas cheias de distâncias”, saudades!

P.S.: Recebi no ano passado um e-mail de um israelense falando que era muito teu fã. Fiquei pensando como a língua portuguesa também ultrapassa fronteiras. Para a carta não ficar maior, te contarei da próxima vez.

4. BELCHIOR, QUE COMPLETA 70 ANOS, FEZ DE CANÇÕES UMA 'ARTE DA FUGA' | Em agosto de 2009, a notícia na grande mídia do “desaparecimento” de Belchior pegou muita gente de surpresa. Jornalistas e radialistas, fãs, curiosos e interessados pela obra do cantor e compositor cearense não falavam em outra coisa.
Apesar do burburinho provocado pelas possíveis motivações de seu afastamento, o próprio Belchior, que desde 2006 cortara laços com empresários, produtores e a família, declarou que tinha se isolado em uma pousada de um povoado remoto no Uruguai para finalizar o trabalho de tradução para o português da “Divina Comédia”, de Dante Alighieri. Desde então, não se tem notícias sobre as atividades do músico, que, nesta quarta (26), completa 70 anos.
Se Belchior, tal qual Rimbaud, transformará seu autoexílio em ato de criação, ainda não se sabe. Mas é fato que o tema da evasão da sociedade está fortemente presente em diversos pontos de sua obra, do primeiro ao último disco autoral, já indicando ao público um percurso de fuga que ele próprio pudesse vir a seguir, considerando que o elemento autobiográfico perpassa a totalidade do cancioneiro do autor de “Apenas um Rapaz Latino-americano”.
Além de retratar grupos marginalizados pela sociedade (pretos, pobres, estudantes, índios, nordestinos, retirantes, prostitutas, lista na qual ele faz questão de incluir os artistas), Belchior acumula em suas letras referências ao desejo das pessoas de serem ativamente “gauches”, de ficarem à margem das práticas sociais.
Na música “Passeio”, do disco de estreia, “Mote e Glosa” (1974), o sujeito que está rodeado pelos prédios de São Paulo afirma querer fugir dali num disco voador. Em “Todos os Sentidos” (1978), a canção “Até Amanhã” deixa bem claro que um reencontro pode não acontecer porque talvez não haja o dia seguinte.
Em “Seixo Rolado”, de “Objeto Direto” (1980), o próprio título converge com o conteúdo da música que descreve um indivíduo que “tudo o que tem é seu corpo” e que cai na estrada feito pedra rolante.
A ideia de “ir embora sorrindo, sem ligar pra nada” se expressava já em 1982, na canção “E que Tudo Mais Vá para o Céu”, do álbum “Paraíso” (1982), como se antecipasse a atitude do próprio compositor, que botou o pé no mundo, deixando documentos e objetos pessoais para trás.
Se uma desistência repentina dos limites sociais estabelecidos poderia ser qualificada como irresponsável na idade madura, não seria diferente em se tratando de um jovem aventureiro que abandona a escola.
É o que narra na letra de “Rock-romance de um Robô Goliardo” (de “Cenas do Próximo Capítulo”, de 1984): “E não me chamem irresponsável/Para que, levar a vida, assim tão a sério?/ Afinal, a vida é, mesmo uma aventura da qual não/ sairemos vivos”. Como o personagem da canção, o jovem Belchior tinha largado a faculdade de Medicina no quarto ano.
Também os dissabores da marginalização, tematizados de forma detalhada e irônica em “Jornal Blues (Canção Leve de Escárnio e Maldizer)”, de “Melodrama” (1987), coincidem com as próprias dificuldades que ele enfrentou ao morar na rua, quando chegou ao Rio de Janeiro, no início dos anos 1970: “Não, não quero contar vantagem, mas já passei fome com muita elegância”.
Nessa correlação entre a obra do autor e a vida da pessoa Belchior, duas músicas mostram-se particularmente reveladoras do distanciamento do artista.
Em “Arte Final”, o personagem da canção expressa seu desejo de não ser perturbado: Desculpe qualquer coisa, passe outro dia,/ Agora eu estou por fora, volto logo,/ Não perturbe, pra vocês eu não estou.
Seguindo esse percurso de retirada, “Até Mais Ver” é a canção-despedida de Belchior: “Qualquer distância entre nós, tornada em nada,/ só assinala um novo encontro pra depois”.
Não por acaso, essas declarações encerram os dois últimos trabalhos discográficos de Belchior. Em “Elogio da Loucura” (1988) e “Baihuno” (1993) o artista conclui a sua obra e se despede do público, comprovando a frase do poeta e autor de canções Pierre Jean de Béranger (1780-1857): “Minhas canções sou eu”.


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Rádio Nacional | 1979 www.youtube.com/watch?v=z36_2900C-8


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Josy Teixeira é professora de linguística, radialista e pesquisadora da USP, com mestrado e doutorado sobre a obra de Belchior.
Artista convidado | Belchior (Brasil, 1946-2017)
Caricatura © Genildo Ronchi
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Graco Braz Peixoto, Jorge Mello e Josy Teixeira
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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