quarta-feira, 20 de setembro de 2017

RICARDO BEZERRA | Hermeto Pascoal, o Mago Mor


O primeiro contato, ao vivo e a cores, foi na sua casa em Bangu (RJ), em 1976. Tinha ido com o Fagner convidá-lo para os arranjos do Maraponga. O interior da casa nada se parecia com uma casa normal, digamos. Era um misto de estúdio e, ao mesmo tempo, um depósito do que parecia centenas (ou seria milhares?) de instrumentos musicais, dos mais tradicionais a uns bem singulares... Tinha uma aura mágica pairando no ar. Afinal, era a casa de um mago da música mundial.
Para nossa alegria (e surpresa), ele aceitou o trabalho...! De repente, começaram as gravações no estúdio da CBS, na Praça Tiradentes no centro do Rio.  Chegava sempre na hora trazendo o Itiberê, seu fiel baixista, e o seu personal batera (que não recordo o nome). Um dia, ele chegou com um rabo de cavalo na sua farta barba branca e fez todo mundo rir e se alegrar com seu gênio brincalhão.






 Suas partituras eram um caso à parte. Escritas com caneta Futura preta, sua caligrafia musical era tão intensa quanto sua música. Umas notinhas minúsculas sobre as linhas, que ele lia a uma distância mínima da vista, quase roçando o papel nas suas faces rosadas. Quando fazia correções, riscava riscava riscava, até ficar uma mancha preta que quase varava para o outro lado do papel. E ali, naquelas grandes folhas de papel pentagramado, rabiscadas e garatujadas, estavam os seus fantásticos arranjos para sopros e cordas além da linha harmônica para o piano e o baixo.
As gravações, com ele comandando o estúdio, corriam, ao mesmo tempo, macias, geniais e intensas... Sua presença criava uma atmosfera prodigiosa irradiando sonoridades musicais por todos os poros do ar, encantando produtores, músicos e cantores... todos em completo estado de graça.
Tocava, regia, ouvia, repetia, tocava de novo, até ficar no seu agrado e no de todos, pois sempre queria opiniões: um maestro genial plenamente democrático...
Dessa experiência, o mais incrível que nos aconteceu, naquele estúdio, foi a gravação de Cavalo-Ferro. O Fagner mostrou a música no violão uma única vez. Ele deu um sinal que tinha compreendido e se encaminhou para o piano desaparecendo por trás de uns biombos. Não podíamos vê-lo. A música seria gravada direta, como se fosse ao vivo. 
De repente, ouvimos surpresos um trote perfeito de cavalo, depois, uns sopros como numa boca de garrafa (ele arranjou uma na hora...) e então entrou o piano numa introdução de arrasar... Mas isso, era só a introdução da introdução... Deixa que suas 'deixas' eram tão claras, que sabíamos exatamente onde iniciar a cantar e onde silenciar para o piano fazer seus intermezzos geniais.
E daí pra frente, amigos, foi tudo pura feitiçaria musical. Terminada a gravação, nada mais havia a declarar! Ao ouvirmos, decisão unânime, é essa mesmo, tá pronta, morreu, fica assim, tá bom demais... Tínhamos acabado de presenciar e participar de uma gravação antológica, da cabeça aos pés... Absolutamente inolvidável!
Outra experiência inusitada foi num show que fomos ver em Niterói. Tudo ia correndo bem, quando do meio pro fim o clima foi esquentando, os improvisos coletivos já passavam da estratosfera quando, de repente, vi o roadie entrar no palco e recolher o estande do percussionista... Por que? Depois, fiquei sabendo que nessa época no clímax do clímax da última música, estava virando costume do nosso personagem derrubar o estande da percussão para produzir aquele último e definitivo som... De passagem, um pouco antes do fim do show a banda começou a descer do palco, cada um com o seu instrumento e tocando foram saindo pelo corredor central do teatro e o público foi se levantando e seguindo o cortejo e de repente estávamos todos no meio da rua numa procissão-desfile noturno sonoro-musical da pesada. Todo mundo dançando e/ou andando, demos uma volta no quarteirão, o som e o público rolando, e voltamos para o teatro. Cada um foi indo pro seu lugar e a banda subiu para o palco. O show estava pra terminar e foi aí que aconteceu o lance do estande do percussionista...
Numas das últimas vezes que veio a Fortaleza, fui encontrá-lo no camarim depois do show. Ele estava só e sentado na única cadeira que havia ali. Para falar com ele, achei por bem me ajoelhar à sua frente, assim ficava melhor pra ele me ver a curta distância e a gente conversar. De joelhos, não pude deixar de pensar na simbologia da reverência religiosa. E percebi que era isso mesmo... estava ajoelhado perante uma das maiores santidades da música mundial da nossa era: Santo Hermeto Paschoal. 
Amém!
Fortaleza, setembro, 2017


ACAMPAMENTO MUSICAL


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RICARDO BEZERRA (Brasil, 1949). Músico, compositor, arquiteto. Gravou um disco, Maraponga, em que Hermeto Pascoal participa como músico e arranjador.

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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado | Farnese de Andrade (Brasil, 1926-1996)
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Agradecimentos especiais a Jovino Santos Neto
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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