sábado, 28 de abril de 2018

JOSÉ CASTELLO | Fernando Monteiro, Aldo Pellegrini



1. Fernando Monteiro e sua lâmpada
Um verso doloroso de Roberto Piva guia o poeta Fernando Monteiro em seu novo livro, “Mattinata”, que acaba de chegar ao mercado em uma corajosa coedição da Sol Negro, de Natal, RN, com as Edições Nephelibata, de São Pedro de Alcântara, SC. Diz o sofrido verso de Piva: “E para que ser poeta em tempos de penúria?” Se pensarmos bem, contudo, sempre foi assim. A poesia é justamente uma fratura na precariedade do mundo. Um talho, que faz sangrar aquilo — sol negro — que se deseja esconder.
Fazer poesia em tempos tão iluminados, remexer nas sombras quando todos se afogam nas luzes de um presente perpétuo e embriagante, parece ainda mais estranho. Pois a poesia é uma lâmpada que age ao contrário: em vez de lançar luz sobre o obscuro, ela risca traços de sombra sobre a luz insuportável. É assim, pelo menos, que Fernando Monteiro a manipula: como um perfurador, que talha e derrete a banalidade da existência.
“Mattinata”, na verdade, trata de três perfurações. Primeiro, fala do fim do amor no longo poema que empresta seu título ao livro. Em seguida, nos “Escritos no túmulo”, trata da morte e de seu poder de corrosão e empedramento. No poema final, “E para que ser poeta em tempos de penúria”, inspirado e dedicado ao falecido poeta Ricardo Piva (São Paulo, 1931-2010), Fernando chega ao mais assombroso dos rombos: aquele aberto, na casca grossa do mediano, pela agulha fina da poesia.
Começo pelo fim: pelo diálogo poético com Roberto Piva, o autor de “Estranhos sinais de Saturno”. Referindo-se ao verso que ele toma como título de seu poema, escreve Fernando: “A inquirição, franca, fende a fina porcelana de cera dos ouvidos”. Para que serve a poesia — e, antes: quem se interessa em ouvir essa pergunta? Parece inútil, deslocada, torta, e de fato é. Mas esses atributos, que fingem desenhar o imprestável, na verdade lhe conferem vigor. É com a intrusão do inútil no mundo da utilidade pura que a poesia nos agita.
Somos seres contraditórios. Fernando reconhece isso: “Sabemos da penúria,/ porém não queremos saber dela”. Querer e não querer: posição típica do humano. Vacilação, inquietação: viver. O poeta insiste: “plantamos a flor carnívora/ mas desviamos a vista”. Não suportamos o que a poesia nos apresenta. O que ela desvela do lixo em que vegetamos. Para que serve a poesia? A pergunta deixada por Piva — “de dentro para fora de sua vida” — não é um jogo de palavras, não é um exercício intelectual, não é um pensamento nobre: é uma fome. Fome de poesia: eis o objeto da poesia.
A pergunta deixada por Piva, nos diz o poeta pernambucano, “é um dedo que nos acusa, trêmulo”. Sim: Roberto Piva sofria de Parkinson, mas não é de uma doença que se trata, e sim de uma atitude. A pergunta, lançada de dentro para fora, ultrapassa o corpo, os dados em cartório, a geografia, e atinge, em c h e i o , o co r a ç ã o d o mundo. Diz Fernando: “progride em acusação, do patamar da pobreza/ para um geral mal estar na cultura”. Não se trata de “poesia marginal”, já que, não estivesse à margem, poesia não seria.
No rasto de Piva, ele chega aos versos assombrosos da norte-americana Marianne Moore, que devassam o espírito dos poetas: “Eu, também, não gosto dela./ Lendo-a, no entanto, com um/ perfeito desdém por ela,/ descobre-se na poesia/ um lugar, afinal, para as coisas/ autênticas”.
Não é de construção exterior que se trata, mas de algo que se arranca do peito. Foi esse rasgar que, nos propõe Fernando, fez de Piva “uma espécie de anjo”. Em nosso mundo de gelo, a poesia se torna absurda e sem sentido. No entanto: é aí que se guarda sua força. O bolso vazio e furado do poeta, através do qual ele toca não a moeda, mas o próprio corpo — “o corpo da noite ou da tua morte” — se oferece como outra metáfora ágil para o poema, através da qual avançamos, ouriçados pela oferta de ouro, para chegar a nossa própria miséria.
Não: Fernando nunca está satisfeito consigo. Avança, continua a escrever, mas pune-se: “Fui mal, nessa tentativa de síntese./ Sou ruim, quando se trata de ver de longe/ e de perto ao mesmo tempo”. É que entre o longe e o perto algo escapa. É desse algo que escapa que a poesia trata. Não de um objeto, ou de um valor, ou de uma consagração — mas de uma perfuração. Como, em nossos tempos de mercado voraz e luzes mercenárias, esse buraco escuro pode ter, porém, algum valor?
É a luz da manhã, atordoante luz do presente, que em “Mattinata”, poema que abre o livro, destrói a possibilidade do amor. Sim: a paixão necessidade da obscuridade. Mais ainda: dela se alimenta. O amor se alimenta do não saber, e talvez mais ainda, do não ser. No entanto, escreve Fernando, “cada instante conta: uma luz que avança”. A realidade se infiltra pela noite, impõe sua claridade cega e quebra ao meio a delicadeza dos sonhos noturnos. “São as manhãs independentes,/ insurgentes rebeldes/ criadas pela crueldade do tempo”.
O presente (as manhãs) é a afirmação do tempo. E o tempo, com suas exigências, uma “tempestade/ que invade o aposento recordado/ entre o desejo e a mágoa”. Somos prisioneiros do presente: a paixão não suporta o peso das correntes e se rompe. A cidade, porém, continua sua marcha luminosa. Escreve Fernando: “na avenida/ a liberdade dos passantes/ se oferece à escravidão/ do expediente nas firmas”. Nesse cenário, o canto das aves no amanhecer é a última voz do amor.
Diante da crueza dos dias, o amor passa de “sombra de uma sombra/ eco de um eco/ engano de um engano”. Ele resiste na obscuridade, mas “as noites esperam as manhãs com medo”. Amor e poesia ocupam, assim, o mesmo lugar devastado. Resistem, contra as pressões solares do presente. Conservam-se na beira do mundo, ali onde o humano, enfim, se afirma. Grita Fernando: “É a tempestade o tempo!” Sem dele poder escapar, resta ao humano agarrar-se a essas bordas que se entortam, que vacilam e ameaçam nos exterminar.
Ali onde a poesia se afirma, algo do presente se rouba. Fernando sintetiza assim: “Versos não precisam ser bonitos/ versos precisam ser verdadeiros”. Só a lâmpada frágil da poesia, com sua luz invertida, desvela o coração da verdade.


2. Aldo Pellegrini, literatura e vida
Na declaração coletiva que emitiram em 27 de janeiro de 1925 – lá se vão noventa anos! –, os surrealistas franceses de Breton, Artaud, Aragon e tantos outros afirmam dois princípios cruciais. Primeiro: “Não temos nada a ver com a literatura”. Segundo: “O surrealismo é o meio de libertação total do espírito”. Reencontro as duas ousadas propostas durante a leitura de “Sobre o surrealismo”, ensaio de Aldo Pellegrini (Sol Negro Edições, Natal, RN). A declaração dos escritores surrealistas franceses (copio Pellegrini) termina assim: “O surrealismo não é uma forma poética. É um grito do espírito que se volta para si mesmo decidido a pulverizar desesperadamente suas travas”. Tem a aparência de uma luta contra os escritores e sua escrita. Neles aplica, na verdade, uma injeção de vigor.
Ainda hoje muitos acreditam na “literatura pela literatura”, crença que a afasta do mundo e que nos rouba um potente instrumento de interpretação e convívio com o real. Mas, lembram os surrealistas franceses, “o canto pelo canto em si não existe (nem mesmo nos pássaros)”. Todo canto – poesia, mas também ficção – carrega sentimentos de amor, de ódio, de cólera, de desejo de viver, de desespero, de angústia de morte. Esse canto não se limita a “explicar” as coisas mas, ressaltam ainda os surrealistas, “é parte vivente do homem”. É a vida que se entrega como poesia – e, portanto, quando falamos de literatura, é da vida que, mesmo sem perceber, continuamos a falar.
Ainda hoje não é fácil defender essa ideia porque os “práticos” e apressados logo pensam na literatura panfletária, ou engajada, e a excluem. Logo reduzem a afirmação a uma palavra de ordem. Não suportam, assim, a notícia espantosa que ela carrega. Lembra Pellegrini que a obsessão pelo vital não é exclusiva do surrealismo. Na verdade, ela se espalha por toda a literatura: ela é parte essencial da literatura. Isso se excluímos a literatura escrita burocraticamente, ou que se ampara na busca dos efeitos pragmáticos. Talvez hoje as obras dos surrealistas pareçam um tanto ultrapassadas ou, pelo menos, datadas. Mas suas ideias, mostra Aldo Pellegrini, guardam o mesmo vigor. Elas não envelheceram. Estão, talvez, reprimidas pelas obsessões “objetivas”, isto é, aquelas que só consideram os resultados imediatos. Mas continuam aí.
Em um mundo que se torna cada vez mais incompreensível, a literatura, com seu olhar expandido e sua vivacidade, está aí para nos ajudar a viver. Ela afirma a importância da imaginação que, em vez de ser disfarce e cegueira, como muitos ainda pensam, é um instrumento de ampliação do real. Admite Pellegrini: “A importância dada à imaginação, ao mundo fantástico e ao dos sonhos, pode levar a crer que o surrealismo significava um mundo de evadir-se da vida”. Ao contrário, ele diz, o surrealismo enfatizava a necessidade de penetrar na vida para “explorar todas as suas possibilidades”. Necessidade que, muito além das escolas e dos grupos literários, é cada vez mais forte.


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Agulha Revista de Cultura
Número 111 | Abril de 2018
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