quarta-feira, 4 de abril de 2018

MARIA ESTELA GUEDES | A águia mecânica de Cruzeiro Seixas



Os surrealistas apreciam o misterioso, o esotérico, as coincidências que nos fazem sobressaltar o coração. Podia intitular esta nota como "A besta do Apocalipse", já direi porquê. Não tem tal título mas é como se tivesse, a antologia "Poetas na surrealidade em Estremoz", organizada por Nicolau Saião (http://triplov.com/surreal/Antologia-2007/index.html). É que a imagem da capa, uma pintura de Cesariny, ostenta o número da Besta numa berma de triângulo. Participei na antologia e por isso fui ao lançamento, a Estremoz. Comemorava-se o Dia dos Namorados, o lançamento foi na Biblioteca Municipal, onde se apresentavam painéis com imagens alusivas à efeméride. Não é que eu ligue muito a estas coisas, apesar de serem bem próprias do Surrealismo e de eu ter alguma relação com ele, mas não é que entre as imagens figurava uma foto dos meus pais em jovens, namorando-se nos seus fatinhos campestres, encostados a uma oliveira? Uma coincidência, um acaso objectivo, ou apenas uma bela fotografia surripiada do TriploV? Qualquer das hipóteses escapa ao quotidiano para nos abalar, o que é objectivo da arte que se quis sobre-, para além da realidade.
Os autores não sabem quanto às vezes sofro para arrumar os seus trabalhos neste sítio da Internet. Pensam que basta mandarem um lençol em Word e por artes mágicas de um clique ele transforma-se no que está à vista. Não é assim. O que está à vista não é feito em Word. Por exemplo, neste visual de TriploV, que tem 800 pixels de largo, no todo, eu só posso trabalhar na parte. O máximo da parte que posso utilizar, em largura, é 536 pixels. Então digitalizei o quadro abaixo, de Cruzeiro Seixas, e já direi como veio parar-me às mãos, pois é inédito, e depois tive de lhe reduzir as dimensões, para caber ali mesmo no lugar onde está. Ao reduzir, em altura ficou o número da Besta, que é número de homem, segundo o Livro das Iluminações, ou Revelações, como também se chama ao poema atribuído a S. João. Ora este número é aquele que mais toca a campainha do alarme na nossa imaginação.
Vamos à história: um poeta surrealista que eu não conhecia, amigo porém de amigos, espanhol de nacionalidade e luso-brasileiro de língua e habitabilidade, Tito Iglesias, telefona-me a gabar "A Boba" e a dizer que tem um quadro de Cruzeiro Seixas para me dar, oferta do maior pintor surrealista português a esta ocasional crítica dele, pois é verdade, ocupei-me dos seus objectos líricos há tempos, a propósito de um livro-caixa editado por Miguel de Carvalho (http://triplov.com/estela_guedes/Ler-ao-Luar/Cruzeiro-Seixas/index.htm).
Como é característico de Cruzeira Seixas, embora se trate de uma pintura a duas dimensões, o que ele cria pode considerar-se objecto, e não me refiro ao quadro, sim à coisa pintada. O objecto que temos diante dos olhos é uma criatura que seria um avestruz se não tivesse bico de águia e porte de camelo, enfim, se as pernas não fossem humanas, os pés e as mãos, e outras partes corporais, como o perfil da cabeça na região mamária de quadrúpede como um camelo. Não é um homem porque tem um castelo na zona em que peixes e dinossauros exibem crista dorsal, mas também não é um dinossauro porque os dinos são objectos biológicos sem implantes metálicos, e este parece ter patas dentadas como certas engrenagens, haja em vista as dos relógios. Mostra três espinhos no dorso como algumas plantas têm folhas lanceoladas e cortantes e mesmo espinhosas, caso das cicas ou até das palmeiras.
Podia ser uma ave, um mamífero, mas os mamíferos costumam ser quadrúpedes e bípedes as aves. Este ser ave-peixe-Mammalia-Plantae-com-dentes-de-engrenagem é trípede, e nada, que eu conheça, no Reino Natural, tem três pés, por isso teremos de nos resignar à constação de que o objecto não pertence ao mundo das realidades quotidianas, nem mesmo ao das realidades mais excepcionais.








O objecto pintado por Cruzeiro Seixas engloba potencialidades muitas, expressas na fusão de elementos de espécies várias, o que é próprio dos híbridos. Porém, para ser um híbrido, em linguagem deveras e sinceramente científica, precisava de se reproduzir e de a descendência manifestar caracteres dos dois progenitores. Ou ao menos precisava de pôr um ovo, quem sabe.
É um objecto bastante não, não é isso, por isso muito atraente, como tudo aquilo que nos desafia a imaginação, perturba a consciência e espevita a inteligência.
Não parece nada aquilo que realmente é, mas é, e por aqui me fico, enviando um agradecimento ao artista, Cruzeiro Seixas, e um abraço amigo para ambos, ele e Tito Iglesias.
O que é o objecto? - Édipo a desafiar a Esfinge às portas de Tebas, claro.


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Página ilustrada com obras de Sérgio Bonzón (Argentina, 1959), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 109 | Abril de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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