segunda-feira, 8 de junho de 2015

Agulha Revista de Cultura | Fase II | Número 11 | Editorial

Os negócios da desilusão

Reproduzimos aqui, a título de editorial, um dos trechos finais de O livro invisível de William Burroughs, peça de teatro que é uma colagem de textos de William Burroughs e Floriano Martins, realizada por este último. A peça teve sua leitura dramática realizada em 11 de agosto de 1999, no teatro da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Os atores que participam são Graça Berman (Burroughs 1), Pascoal da Conceição (Burroughs 2), Claudio Willer (Burroughs 3) e Floriano Martins (Conferencista). O livro foi posteriormente publicado pela Sol Negro Edições (Natal, 2012): http://abraxasloja.blogspot.com.br/2015/04/o-livro-invisivel-de-william-burroughs.html.

Os editores


  CONFERENCISTA – Os negócios do sexo são de grande atração em todo o mundo. Os negócios do sexo. Os negócios das drogas. Há uma ideologia insidiosa desvirtuando o desejo, valorizando as ilusões. Uma grande loja de distúrbios. Este é o alcance político que nos une a todos, a verdadeira dimensão ontológica da existência humana: o negócio das ilusões. Não há prestígio maior que o da extrema ausência de valores humanistas. Não há autoritarismo ou repressão sexual como um fim em si. Não mais. O acumulador de orgônios de Reich foi adaptado para acumular desilusões. A energia mais valiosa onde quer que pulse a besta do coração humano. Não há desregramento que convença a máquina a parar de funcionar. Há um olho cínico em sua tez metálica que pisca e revela que a desordem não representa mais nada. Os negócios estão indo bem e compõem uma intrincada rede de relações. Atingem grupos de risco e convertem em veleidade toda forma de misticismo. Não há amor sublime, mas sim desilusão. Os negócios atraem clientes como uma fonte de libertinagem. Os negócios ampliam o círculo de amizades tecidas às voltas com novas oportunidades. Avôs de alguns clientes ainda comentam sobre as leis ideais que foram exterminadas. Há um prêmio especial para aqueles que confessarem desilusão diante das declarações de parentes. Não há nisto o sentido de delação. É muito natural que uma regra nova elimine uma anterior.

[Pausa]

Os negócios dos valores intrínsecos, pequena loja de peças de reposição. Um dissabor gasto pode ser rapidamente restaurado. Uma crise nervosa interrompida pode ser rebobinada sem maior custo. Há empórios que recebem o relato em troca de um pequeno estojo de devassidão. Há campanhas eletrônicas que dão a cada desilusão um destino literário e transmissões diárias de amores impossíveis convertidos em sublimes momentos de resignação pública. Sob um controle tão excêntrico do desejo, não há naturalmente mais vida íntima. São recomendadas ações punitivas contra aqueles que se recusem a divulgar os novos métodos de circulação das desilusões.

[Pausa]

Os negócios de títulos e cerimônias. Uma pedra Beat, negociada no mercado paralelo, deve valer, com sorte, dois brasões cobertos de azinhavre de uma linhagem mística. Tais ideias de contato direto há muito caíram em desuso. Em raros colecionadores encontramos anotações pouco legíveis de uma tradição anarquista. Os negócios tomaram conta de tudo. A memória tornou-se um bem improvável. A desilusão não prevê o deboche. Há um compromisso velado com a seriedade de sua falta de propósito. Daí que os negócios prevejam hostilidade veemente e imediata a toda forma de rejeição frontal ao Grande Dissabor, seu inconfessável patrono. Os negócios da glorificação conduzem a um estado plenamente aceitável de controvérsia. Pequenas gotas de estímulo administradas em concentrada posologia. Os anúncios de rejeição, as notas de suicídio, núcleos de oração, trios elétricos, discretas campanhas publicitárias em defesa da influência implícita, as respeitáveis manifestações de um espontaneísmo induzido. A orgia rimada e metrificada. Não estaria aí o estágio mais elevado da criação?

[Pausa]

Talvez Burroughs tenha pensado, em algum momento de sua vida, que todo este cenário um dia retornasse às páginas de uma fábula pouco lembrada pelos filhos dos filhos dos filhos. Não creio. O velho Bill teimava contra seu tempo, mas antes teimava contra si mesmo. Não importava se por regressão ou expansão, seu diálogo obsessivamente buscado era com o enunciado à entrada de uma zona dada como neutra. A placa dizia: há um monte de safados lá fora. A zona ainda hoje é conhecida como comunidade literária. É bastante visitada. Em seus pardieiros moram gordos zeladores. Muitos deles parceiros discretos nos negócios de caixa, senhores no submundo das desilusões. Artistas. São conhecidos assim. Azeitam as máquinas do paradoxo progressivo. São extensões invisíveis dos estimulantes sexuais e outras formas minúsculas de emoção barata. Houve um tempo em que Burroughs achava que a realidade era uma ilusão criada por insetos monstruosos que dominavam o mundo, controlando as mentes a partir de uma dimensão paralela. Reagiu achando que na eliminação do tema haveria uma chance da narração não conduzir ao umbigo sem saída do tormento que a manipulava.

BURROUGHS 2 – As visões e todas as verdades não podem mais ser consideradas como fatos eternos e objetivos, mas como projeções plásticas do emissor e de sua linguagem. Por isso, ninguém mais pode continuar se preocupando apaixonadamente com efeitos, por mais aparentemente reais que sejam, sabendo que por dentro todas as visões e verdades são, ao final das contas, vazias. Assim, o passo seguinte é o exame da causa desses efeitos, o veículo das visões, o produtor da verdade, ou seja: palavras. A própria linguagem é a matéria prima. Assim, o próximo passo é: como escrever poesia sobre poesia, empregando um método radical que elimine o próprio tema.

CONFERENCISTA – Boa chance. Talvez ainda válida. Os objetivos foram convertidos em nuvens de esgotamento. Toda forma de abismo foi declarada inconsciente. A criatividade é uma percepção diante do vazio. Um estalo diante do nada. Não uma interpretação de fatos externos. Os negócios amaciaram tudo. Em uma mesma prateleira encontramos visões, estimulantes sexuais, manuais de argumentos inverossímeis sobre a nulidade do ser, saquinhos fantásticos e kit de reflexão sobre a percepção comum. Não há como não se sentir bloqueado. No entanto, os negócios do bloqueio faturam milhões. Não são uma ameaça. São a naturalidade. Os negócios deste e de outro mundo. Negócios do personagem que mergulha na alteridade e dela retorna pioneiro sem uma sombra de si. Suas alucinações são alheias. Seus regozijos, orgasmos, coceiras, embolias. Um merda capado de si mesmo. Este é o modo de conhecer o homem toupeira do homem. O modo de aturar as merdas decorrentes de creditar na arte toda a forma de salvação do homem. Uns bostas se aproveitam disso. É um desgaste decorrente da expulsão do homem do centro de si mesmo. A Religião não tem nada com isso.

BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 – Não.

CONFERENCISTA – A Ciência não tem nada com isso.

BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 – Não.

CONFERENCISTA – A Arte não tem nada com isso.

BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 – Não.

CONFERENCISTA – O serviço secreto dos negócios da desilusão é, de fato, uma instituição. Porém não se encontram seus membros filiados aos quadros moralistas de nenhuma dessas casas de tolerância. Os governos já não existem. À porta da velha noção de pluralismo encontramos o aviso de “não perturbe”. Não há expansão de consciência em praças de alimentação em shoppings. Todas as regras de identidade são forçadas. O homem impele a si mesmo ao hediondo crime de existência comum. Não há mais escândalo em seduzir rapazes ou comprar governos. Os negócios da dúvida são a única certeza posta ao alcance dos mortais, em taxas de financiamento de ocasião. Não há o que ser respeitado ou cumprido. Não há decreto. Não, não há decreto. Há um cinismo encorpado que nos leva a crer que prosternamos diante de uma realidade incontornável. Não fizemos nada, nem faremos. Passeatas, denúncias, shows de protestos. Um exorcismo patético. Nos livramos de nós mesmos, sem que interfiramos na rotina específica do hospedeiro cretino que nos prepara para os negócios latentes da perda de sensibilidade.

[Pausa]

Estamos caindo em anotações. Burroughs tinha alguma razão. Nada é tão específico quanto a perda de caráter. Estamos nos enganando. Não somos mais nada. Estudantes, carteiros, drogados, prostitutas. Não somos mais nada. Não há manifestações pacifistas. Os jornais estão tomados de violência. Os negócios da violência. Todos os sentidos estão sob patrocínio. Não há mais a fala real que Kerouac perseguia. A linguagem perdeu o som. O homem perdeu a respiração. Já não cai sequer em si. Burroughs fala em uma comprida colher feita de jornal, receptáculo para se aquecer a noção fraudada da existência. Idealizar queda é o mesmo que idealizar ascensão. Ritos do passado são apenas métodos revistos. Ninguém lançará um clamor de protesto sem patrocínio. Todo e qualquer vício obedece a formas básicas de manutenção. Não importa falar em frio ou qualquer salão de restrições. O prazo expira em um peido. Um barato termodinâmico, pum. Pronto. Lá se foi a existência. Não somos o negócio. Nem seu efeito. Mas somos levados a crer que o trazemos tão grudado como o farfalhar das tripas. Foda-se então a velha ordem do saca-rolha. Já temos o demônio sentado no sofá. Somos agora o negócio famélico e audaz. A transa do bueiro. Uma rolding de aspergentes que garantem nível zero de percepção diante do metabolismo anômalo da realidade. Um líquido que não indaga. Uma velha carta dando sinal da queda de um império, chegada com grande atraso. É como aumentar a dose de ilusão.

[Pausa]

Olhem bem. Olhem bem. A palavra é um espirro. O vírus é um espírito. O que sai fácil não entra como se em férias. Nenhuma gravação modificará a espontaneidade do que falo. Porém a espontaneidade perdeu todo o crédito.


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ÍNDICE DESTA EDIÇÃO


ALFONSO PEÑA | Cristina Zeledón y los Seres de Conocimiento

ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | Mário Cesariny e Luiz Pacheco: a polémica

ARTURO GUTIÉRREZ PLAZA | ¿Por qué escribo?, seguido de una entrevista hecha por Mónica Bernabé

EDUARDO R. SAGUIER | Auge y caida de los imperios amerindios e ibéricos y de las naciones latinoamericanas

ERNESTO ALVAREZ | David Cortés Cabán, el ser y la poesía, entrañables siempre

FERNANDO SORRENTINO | Conversaciones con Adolfo Bioy Casares y Jorge Luis Borges

JOANA RUAS | Outono, de António Salvado e Kousei Takenaka

JOÃO GARÇÃO | O TEATRO SURREALISTA EM PORTUGAL:  Considerações para o entendimento surrealista

JOSÉ CASTELLO | Dois encontros com Manoel de Barros

MANUEL MORA SERRANO | Introducción a la historia de la literatura dominicana

MARCO ANTONIO CAMPOS | El esplendor solar de la poesía - Entrevista a Enrique Molina

MIGUEL MÁRQUEZ | Del tao y de la furia

NICOLAU SAIÃO| Lud, habitante do outro lado do espelho
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2015/06/nicolau-saiao-lud-habitante-do-outro.html

ARTISTA CONVIDADO | JUDITH ANN MORIARTY | Cinco perguntas para J. Karl Bogartte
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2015/06/judith-ann-moriarty-cinco-perguntas.html

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Página ilustrada com obras de J. Karl Bogartte (Estados Unidos), artista convidado desta edição de ARC.

Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 10 | Março de 2014
editor geral | FLORIANO MARTINS | arcflorianomartins@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
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