quinta-feira, 4 de maio de 2017

Agulha Revista de Cultura # 97 | Editorial


● TRÊS OU QUATRO PEDRAS NA LUA

1. O silêncio não vai a parte alguma. Nem mesmo tem como nos dizer isto. O silêncio costuma ser surdo. Quando a noite progride ela inveja tudo o que permanece de pé. Um estafeta de Deus bate à nossa porta para garantir que as falhas aos poucos são prescritas. Aguardamos em casa, resignados até certo ponto, que o destino acaba mudando de opinião. O que me parece esteja por trás de tudo isto é que o mundo em sua atuação banal, cotidiana, não requer nossa paixão por sua dinâmica. Busquemos trabalho em outras comarcas. Esqueçamos os princípios da retribuição. A jogada contemporânea estaciona nos lugares menos esperados. O homem se deixou adotar por uma ideia de que seu espírito criativo se alimenta dos reparos necessários a que se considere um bom servidor. Um truque fiduciário hoje já impossível de ser removido. Cabeça para cima, cabeça para baixo, os lugares ficam próximos ou distantes, a realidade se torna cúmplice ocasional ou uma reprimenda por mau comportamento.
O contexto em que a simples dúvida atue como sugestão de ajuste já não se entende sequer como utopia. A ficção científica adotou taxas absurdas de um serviço sem concorrência para locomoção e abrigo. A inação é perpétua e preenche a nossa vida carente de preferências. O homem tornou-se o grande aparelho receptor de suas virtudes e agonias intransferíveis. Clínicas do sono se tornam tão frequentes quanto os tratamentos de regressão hipnótica. A política é uma caixa de discursos programados com suas mutações dissuadidas de que a flexibilidade seja a trilha ideal a caminho da satisfação da posse. O inferno é um serviço de controle de ambiente. Ninguém mais entra pela porta da frente. Este deslize estético foi razão quase única do malogro da arte contemporânea.
Como traduzir as teorias de abandono com que depredaram a alma humana? Pensamos em grana, em ideologias, em ilusões de toda toada. Teríamos que combater ao mesmo tempo a guerra e a futilidade, a submissão e a conjuração. Que atenção prestar ao fracasso? O ramo familiar se expande e consagra todas as formas de violência. O batismo levou por terra a ilusão de inocência. Nossos esforços buscam costurar uma malha menos punitiva de nossos pecados. Uma vez, indagada sobre o destino da humanidade, uma jovem antropóloga respondeu: Nenhum de nós será vítima de sua própria confissão. O sol pode exceder-se à vontade. O homem pode refazer em seu íntimo inúmeros devaneios. De que modo permanece sua mais confiável evidência?
Querem mesmo resposta para tudo? Quantas vezes a filosofia admitiu que o homem é somente semelhante a ele mesmo? O que criamos não está acima ou abaixo de nós. O homem não tem como livrar-se de si. Um dia acaba por compreender que em seu íntimo não existem senão outros homens que ele cuida de preparar para o ato seguinte. A eternidade não negocia com tarjetas morais. Indo e vindo, haverá um momento em que a humanidade não voltará a parte alguma. Nada de lágrimas. Ou dominante consideração. O mundo é um erro despropositado. Caminhemos pela rua. Não procuremos por mais nada. Isto há de durar uma eternidade.

2. Não estou bem certo se nenhum de nós tem argumento suficiente para irmos à direita ou à esquerda. Os próprios demarcadores ideológicos já foram de um extremo a outro e agora oscilam de acordo com a conveniência. Tornou-se mais viável crer no acaso do que nos marcadores da ideologia. Todos nós temos direito ao mais pleno erro. Erro de opção, uma fruta colhida antes do tempo, uma desilusão amorosa antes de sua cartada magnética, um país naufragando quando nem de longe sua população defendia que se começasse uma guerra. O mundo cai de tudo quanto é queda, porque talvez o mundo melhor se entenda caindo do que ascendendo a algo. A ascensão é uma ilusão humana. Até onde vamos; do que nós somos capazes; de que marco nós jamais recuaremos. A vida é essa fragrância de abismo. Quando divido teto com alguém não me oponho a compartilhar os riscos, o que significa não me opor a programar um sentido comum de existência. A vida comunitária, convertida em célula política, torna essa simples demarcação de terreno um pouco mais complexa. Mas o sentido é o mesmo. Quando somos sobrepujados na base é apenas uma jogada inicial da última cartada. Os mesmos mecanismos que aferem o erro são astutamente azeitados para aferir o acerto. Quantos somos até que um de nós venha a dizer quantos somos? E quantos somos mesmo assim? E de que servimos? Até onde somos temidos por algum inimigo? O que podemos fazer claramente diante desse inimigo? Alguém comece a me responder essas questões, antes de qualquer coisa. Antes de pegarmos uma velha espingarda e começar a atirar no vento.

3. Sobre a morte recente do compositor Belchior (1946-2017), superada a dor de sua ausência física, preocupa-me em muito o aspecto de direção a ser dado a sua obra, sobretudo a obra inédita. São inúmeras canções, letras, desenhos, pinturas, manuscritos, traduções, além de seu acervo fascinante como colecionador de obras. Tudo isto ficará em mãos de quem? E qual tratamento será dado a essa relíquia imensa? Aqui mesmo em uma edição anterior da Agulha Revista de Cultura tivemos uma matéria acerca do caráter por vezes criminal dos herdeiros de incontáveis artistas brasileiros. Nas últimas semanas, envolvendo também a canção popular no Ceará, tivemos um pequeno ensaio de insensibilidade, para dizer o mínimo, da parte da viúva do compositor Petrúcio Maia (1947-1994), disparado contra Mona Gadelha, então autora de uma breve biografia do compositor. O caso de Belchior avulta, pela variedade e quantidade do acervo deixado, sem esquecer também o destino a ser dado a sua obra edita. Boa sugestão me parece que um amigo mais próximo chame para si a responsabilidade de organizar tudo isto e encontrar uma solução jurídica. Aqui nos dispomos a ajudar no que for necessário em termos de fornecer pistas e discutir detalhes de algum plano de registro.

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Uma das anomalias mais preocupantemente comuns nos dias atuais é a declaração que acompanha – explícita ou não – cada gesto de que o mesmo está “fazendo a história”. A história não segue um curso planejado. Ela é de tal forma inesperada que muitos historiadores sentem dificuldade em prever o passado. Soa ridículo um ato, qualquer ato, não importa seu teor ou alcance, vir acompanhado da declaração de que se trata de um ato histórico. Por obviedade ou presunção. No Brasil eu observo o quanto que estamos todos desesperados por fazer parte da história. É infinitamente triste quando uma sociedade chega a este ponto de esfacelamento. Todos querem um pedaço da história, como se fosse a calçada da fama. A declaração de um ministro do STF comunga em carne & credo com a declaração de um compositor baiano. O primeiro comemora a soltura de um criminoso já de todo incontestável, em contraste absoluto com a realidade carcerária brasileira. O segundo mal espera o cadáver de outro compositor esfriar para mostrar-se superior a todas as críticas que dele recebeu em vida. Evidente que estou a tratar de Gilmar Mendes, José Dirceu, Caetano Veloso, Belchior. Todos estão fazendo a história. Como todos nós. Porém dois deles, em particular, estão obcecados por terem algum significado perante o juízo perene da história. Este é o aspecto que mais nos preocupa no momento: o fato de que no Brasil, dentro em muito breve, não sobrará ninguém para afirmar a dignidade da espécie humana.

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De um modo ou outro estamos teimando contra o Nada. Os livros que seguimos fazendo, ARC Edições e Sol Negro Edições, são um sinal de que somente os corpos queimados provam a existência do fogo. Agulha Revista de Cultura está agora fazendo um inventário de seu acervo, do material que fomos recolhendo na expectativa de que planos editoriais ainda pudessem ser cumpridos com um mínimo de obstáculo. Qualquer editor com uma ou duas gotas de consciência sabe que hoje se tornou inviável nadar até mesmo a favor da corrente. Ainda este ano será a inauguração do Centro de Estudos Literários Latino-americanos Floriano Martins na Bahia. Paralelo a isto preparamos uma série de edições virtuais especiais que certamente vão alimentar o desejo legítimo de pesquisa de quantos se aproximem de nós. É nossa inversão de valores, porque tudo isto está sendo disponibilizado sem ônus para o visitante. Apenas os títulos impressos das duas casas editoriais ainda são comercializados. Em todo o resto o acesso é gratuito. Como deveria ser a água.

Os editores

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ÍNDICE

ADÁN ECHEVERRÍA | Mirar desde Clarice Lispector

ALFONSO PEÑA | Surrealismo en Centroamérica: un manojo de llaves mágicas…

DÉBORA BUTRUCE, RICARDO H. RODRIGUES, SERGIO RESENDE E T.W. JONAS | Roberto Piva na Interzona

ESTER FRIDMAN | Todos os nomes do bem e do mal

FLORIANO MARTINS | Leila Ferraz e a delicadeza do abismo

JUAN ANTONIO VASCO | Bicéfalo, de Juan Calzadilla

KATIA IANELLI | Lembranças de Arcangelo Ianelli

MARÍA INÉS NOGUEIRAS | Ana Ribeiro y los personajes reales de la historia

MARIA LÚCIA DAL FARRA | A mística em Agustina Bessa-Luís e Clarice Lispector

PAULA VALÉRIA ANDRADE | Plinio Marcos, um maldito simplesmente genial

Artista Convidado | Arcangelo Ianelli | JACOB KLINTOWITZ | Arcangelo Ianelli, o silêncio das formas
  

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Página ilustrada com obras de Arcangelo Ianelli (Brasil), artista convidado desta edição de ARC. Agradecimentos especiais a Kátia Ianelli, Mariana Ianelli e Valdir Rocha.

Obras de Arcangelo Ianelli que constam desta página:
1. S/Título, óleo sobre tela, 180x145cm, 1973, Coleção particular.
2. S/Título, óleo sobre tela, 180x130cm, 1978, Coleção particular.
3. S/Título, escultura em mármore Espírito Santo Exportação, 280cm, 2003, Acervo do Museu Brasileiro da Escultura (MUBE-SP).
4. Outono silencioso, escultura em mármore Espírito Santo Exportação, 220cm, 2002, Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

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Agulha Revista de Cultura
Número 97 | Abril de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80






2 comentários:

  1. Linda edição! Só tenho a agradecer, querido Floriano Martins. Viva a arte e e cultura!! Viva Ianelli e vivas ao Plínio Marcos. Evoé [Paula Valéria Andrade]

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  2. Convido os amigos a lerem, debaterem e compartilharem este número da Revista Agulha. Há inclusive uma entrevista que Floriano Martins fez comigo. Ficou muito boa. Obrigada, Floriano por abrir um espaço onde eu posso colocar meu trabalho e minha maneira de pensar, de forma livre a aberta. ABRAXAS! [Leila Ferraz]

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