quarta-feira, 1 de novembro de 2017

AGULHA REVISTA DE CULTURA # 104 | Novembro de 2017 | Editorial


VÍTIMAS DA CUMPLICIDADE OU CÚMPLICES DA VITIMIZAÇÃO

1 | Há um curta de Jan Svankmajer, The Flat (1968), que é paradigmático de uma curiosa relação entre o nonsense e a tolice na criação artística. Ao que tudo indica o caminho do excesso não conduz senão ao castelo do desperdício. Cinco ou seis cenas a menos e este curta de Svankmajer seria uma de suas melhores obras. Do jeito como foi editado demonstra apenas que a tolice é um péssimo recurso quando se busca um caminho além da realidade. Comédias e filmes de terror se irmanam em excessos dessa mesma natureza. Não resta a menor dúvida de que a realidade está repleta de tolices, porém nenhuma delas se sustenta como sendo sua representação aceitável. Nem mesmo no Brasil.

2 | Evidente que ninguém em sã consciência aceitaria o retorno do país a uma ditadura militar. Está certo que uma ditadura civil é igualmente inaceitável. De qualquer modo as últimas declarações de militares dão uma medida de nossa extrema situação de risco. E nos colocam diante de uma ambiguidade que apenas confirma um dado preocupante do caráter brasileiro: a facilidade com que, ao eleger um herói, transferimos para o outro a total responsabilidade de correção de nossos erros. Cada um de nós tem quando menos um estilo próprio, porém não menos lastimável, de fugir das responsabilidades, sobretudo quando elas impõem medidas extremas e inadiáveis como é nosso caso atual. Não apenas o sistema político, mas toda a Constituição parece uma tábua de pirulitos ou uma colcha de retalhos. Um remendo a mais não resolve nada. É preciso zerar o cronômetro. Reescrever tudo. De modo mais simples, direto, abrangente. E não há outro modo de fazê-lo senão através de uma presença massiva e constante nas ruas, nas redes sociais, na clara definição de propósitos, na rejeição ao quadro político através do voto nulo, no envio frequente de cartas à mídia etc. Seria oportuno e mesmo inadiável contar com sugestões de todas as partes. Só não me digam que não há nada a fazer.

3 | A vida não é um incômodo para a arte. Tampouco o contrário deve ser aceito. O filme Manifesto (2015) de Julian Rosefeldt, é uma colagem de absurdos que orquestrados alcançam uma reveladora vitalidade ou, ao contrário, é uma colcha de retalhos que vicia a todos no espectro desconcertante da realidade disfarçada de arte? Quando a vida é arte? Quando não? A que tipo de arte interessa discutir quando é vida, quando não?

4 | Máscaras são cúmplices dos algoritmos do tempo a que pertencem. Raramente se reúnem para corrigir o roteiro banal do teatro que representam. Como lagartas meditando no interior de uma berinjela. O que levamos ao palco é uma catedral polida, uma prateleira escalada por divindades de toda ordem, as mais austeras. O invulgar espírito que veneramos é sempre alheio ao que somos. Como podes seguir assim, profanando até mesmo tuas veleidades? As histórias que ouvimos são a frivolidade da memória. No entanto, nos deixamos guiar por elas como náufragos antecipados. Certas palavras ficam melhor quando perdem uma letra. Em qual diário de bordo se oculta a página que aprendeu a separar as letras que fazem mal a determinadas palavras? Como distinguir a recompensa de tua beleza das imagens saltadas dos lábios de uma cartomante? Todos os barcos são ébrios, considerando a inconstância das marés.

5 | Teoricamente deveria haver um sistema político-social de representatividade confiável. No entanto, aos poucos fomos todos nos ausentando do simples exercício de mapeamento de atuações dos representantes que deixaram de ser nossos e passaram a representar seus próprios interesses. Não creio que se possa remendar este quadro. Sua alta voltagem de promiscuidade teria que ser eliminada pela raiz. Cabe a todos nos organizarmos em torno de uma tática que não seja a da violência urbana. No entanto, mesmo em concordância o que se escuta é sobre o paradeiro de um herói que nos lave a alma.

6 | A estatística é uma ciência canalha. Sua principal peça de montagem converte em fato qualquer aspecto meramente casual. A estatística jamais nos dirá o motivo por que mágicos no mundo inteiro escolheram o pombo para retirar de suas cartolas. 53 mil vereadores existem no Brasil. Em toda a pirâmide política esta é a base triunfante da corrupção nacional. Espalhados por 5.570 municípios são eles que preparam terreno para que as castas mais nobres da política embaralhem joio e trigo com exímio cinismo. Tal modelo se reproduz de modo voraz, pelos conselhos tutelares, sindicatos, associações de pais e filhos, sacristias de todas as igrejas etc. Temo que a saída seja nos tornarmos verdadeiros foras da lei. O poeta Dylan Thomas tem uma frase entranhável: "Para ser um verdadeiro fora da lei, há que ser muito honesto". É uma sacada poderosa porque muda por completo o conceito de fora-da-lei.

7 | A realidade raramente se mostra da maneira como a aguardamos. Somos levados – por confortos culturais ou comodismos sociais – a esperar certo padrão de comportamento da realidade e por vezes é justamente o oposto que se mostra. A realidade resulta em algo construído, projetado para atender a princípios morais que se consideram – ou assim necessitam ser considerados – infalíveis e relevantes. Por isto será sempre frustrante quando esperamos da realidade que ela se nos apresente íntima e natural.

Os Editores

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ÍNDICE



ALFONSO PEÑA | Poética del duende: Félix Arburola y su trazo indeleble

CARLOS M. LUIS | Notas sobre Ludwig Zeller

ESTER FRIDMAN | O limiar do instante ou a vida como colagem de instantes

GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Andrés Eloy Blanco y Baedeker 2000: vanguardismo y anticipación en la poesía venezolana

GRACIELA MATURO | Páginas del libro “Surrealismo en Argentina”

JAYRO SCHMIDT | Péricles Prade & a gaiola filosófica: poética ready made

KATERINE DUMONT | Três Origens & uma biografia assinada por Moara Guayi

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | O teatro de Sony Labou Tansi ou corre o rio Congo entre suas pernas

SUSANA WALD | Tres veces el oro de los tiempos

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Nietzsche, “a lhama” e a vontade de poder

ARTISTA CONVIDADO | JAIR GLASS | OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO | Jair Glass, um maneirista hoje
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2017/11/olivio-tavares-de-araujo-jair-glass-um.html





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Página ilustrada com obras de Jair Glass (Brasil, 1948), artista convidado desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Número 104 | Novembro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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